Gafanhotos

Durante minha estada no Quênia a negócios, em virtude da apreensão, do susto e, diria, não menos da tristeza por que todos passaram, uma noite foi especial e deixou em meu espírito recordações difíceis de serem apagadas. A fazenda de meu anfitrião apresenta aspectos distintos das outras do mesmo gênero. Além das fileiras dos pés de café a se perderem de vista, há pomares que, apreciados de longe, descansam os olhos e nos fazem esquecer o calor quase insuportável que faz ali. Parece que as pessoas já a se acostumaram àquela temperatura de rachar as palmas das mãos e ensopar, grudando no peito, nossas camisas.

Como vinha do norte, onde pude contemplar e desfrutar de um ar ameno, ao chegar ao Quênia, logo que desembarquei do avião, pressenti que sofreria com a temperatura. Fomos transportados em carro aberto até o nosso destino. O sol parecia ter se deslocado de sua órbita e se prostrado sobre nossas cabeças; a sensação era de fogo. O capô do automóvel teria censurado o sofrimento e a exposição caso pudesse falar em protesto contra a falta de piedade do astro rei.

Eu mal podia parar quieto em meu assento porque a quentura do estofamento não me permitia qualquer sossego. A pressão do ar era pesada e claustrofóbica. Tudo era de uma luminosidade afogueada. Os bancos de areia à beira da estrada apresentavam tonalidade amarela, resultado da falta de chuva de vários dias. Todos no carro estavam mal humorados e silenciosos como se falar fosse submeter-se a um enorme sacrifício.

A noite para mim foi das piores que já passei; não consegui dormir por causa do calor. Não via a hora de o dia amanhecer e me levar para o pátio da fazenda e fazer qualquer coisa que me fizesse esquecer a temperatura. Geralmente as primeiras horas da manhã, antes de amanhecer o dia, são frescas e salutares, mesmo em meio ao pior dos verões. Mas não era o caso ali. Quando abri a minha janela mal havia amanhecido. Contemplei o cafezal. Vi as leiras esverdeadas e ressequidas pela estiagem, mas ainda cheias de vida como a resistirem ao castigo fragoroso do clima. Estava próxima a colheita.

Os pés carregados regalava a visão. As mangueiras de água enroscavam-se entre as árvores. Os tubos de irrigação espargiam o precioso líquido. Esta parte do terreno era a menina dos olhos de meu amigo. Os funcionários de sua propriedade, como que não ligando ao calor, iam e vinham, cuidando de suas responsabilidades. Via-os em toda parte, a conduzirem os carrinhos de mão, as enxadas e os tesourões; como vestimenta uma bermuda rudimentar e um chapéu de palha, a pele negra do africano, forte, resistente, acostumada ao trabalho pesado. Cães, aqui e ali, seguiam-nos ou se deitavam ao pé de uma árvore; resfolegavam, tendo à mostra a língua cansada do pequeno esforço feito.

Ao longe, ao pé das colinas, para a direita, desaparecendo na curva da propriedade, o laranjal, imponente e carregado. No lado oposto as bananeiras subiam a encosta do morro. No milharal, ainda tímidas, as primeiras espigas davam o sinal de vida, prometendo farta colheita em breve. Esta era a propriedade do meu amigo, farta, bela e aconchegante. Reunimo-nos para o café da manhã e eu não tinha apetite.

Bebi leite de cabra com um pedaço de bolo de aipim; em seguida, um café forte e pouco adocicado deixou-me mais do que satisfeito. Conversávamos à mesa do café e meu estômago embrulhava ao ver a quantidade de comida que tinha ali. Os trabalhadores braçais comiam as carnes, os mingaus, devoravam as fatias de bacon e os bolos doces e salgados com a maior das facilidades; deviam estar acostumados, mesmo num clima tão pesado, a comer daquela maneira.

Procurei me distrair com um livro à sombra da laje; próximo a mim, na varanda, meu amigo distribuía as ordens do dia aos empregados. Não custei a sentir sede. Pedi licença para passar no meio deles e fui para a cozinha. Retornei; nas mãos um copo com água. Concentrado nas palavras e nas orientações do meu amigo, não percebi o pequeno alvoroço que se formara próximo a nós, do lado de fora da casa. Um rapaz saiu do grupo em que conversava e, atoleimado, anunciou ao chegar na varanda.

- Os gafanhotos!

Olhei para o rosto do meu amigo e o que vi foi uma palidez, numa expressão de puro horror. Todos os funcionários, sem exceção, os que estavam dentro da casa, preparando-se para o trabalho juntaram-se aos outros do lado de fora. Panelas, objetos metálicos, paus pedras e outros foram distribuídos e passaram a ser utilizados. Batiam-se tampas, alumínio com alumínio, objetos de ferro iam contra outros objetos de ferro e de metal; o estrondo passou a ser ensurdecedor. As tentativas para afastar a praga faminta, destruidora, não cabiam dentro da criatividade do africano.

Saí de onde estava e olhei para o céu. Não vi, a princípio, nada de anormal. Ao voltar a visão para baixo, no entanto, percebi uma sombra, uma sombra descomunal e gigantesca vindo, lenta e sorrateiramente, de nordeste em direção à fazenda. Não consegui, todavia, distinguir o que era, mas havia no ar, ainda quase inaudível, um ruído sibilante como se uma pequena rajada de vento abraçasse a vegetação. Todos os galhos e folhas permaneciam, porém, imóveis.

Olhando em direção ao cafezal percebi uma nuvem. Foi só então que, já acima de nossas cabeças, eles se aproximavam. À medida que a nuvem descia mostrava-se mais distinta. Só então tive ideia e consciência da apreensão do meu amigo. E tive pena. Toda a área circunscrita pela parte central da fazenda foi tomada por aquela nuvem e, ao aproximar-se, uma escuridão momentânea dominou o ambiente. Vinham, grudados um ao outro, formando um único corpo, com suas asas cor de chumbo a confundirem-se com o aspecto plúmbeo da atmosfera. De repente abriram-se em bandos e desceram para a terra.

As tentativas agora eram no sentido de fazer com que fossem mínimos os prejuízos. Os funcionários corriam para dentro e para fora da casa. Janelas e portas foram fechadas às pressas. Tudo se tornou esverdeado; gafanhotos enormes, do tamanho de um dedo, ocupavam cada centímetro do solo, da vegetação, nas mesas, nos focinhos dos cachorros e dos cavalos. Paus, enxadas, vassouras e mesmo mãos eram utilizados para matar e eu me incumbi também desta tarefa cansativa e asquerosa.

Abateram-se sobre os galhos que enfeitavam os vasos. Cobriram e tornaram invisível todo o conjunto do cafezal. Ao longe se via suas asas frementes sobre as árvores frutíferas. Algumas janelas serviram também de assassinas de gafanhotos posto que viessem em espantosa velocidade e estatelavam-se de encontro aos vidros transparentes para, aos montes, se acumularem, mortos, no chão de terra. As comidas tornaram-se imprestáveis. Potes de maionese, deixados abertos, agora se impregnavam de gafanhotos. Travessas de carne se tornaram esverdeadas e, em alguns pratos de sopa e de mingam, boiavam corpos dos pequenos seres.

Cansei de matar e fui para dentro da casa. Foram inúteis os esforços de fechar portas e janelas, pois havia tantos desses insetos dentro como fora da propriedade. Entrei, fechei-me rapidamente e tentei seguir para o meu quarto, mas não consegui. Eles batiam em meu rosto por mais que eu tentasse afastá-los. Zuniam em torno da minha cabeça, sem contar com o cheiro nauseabundo que me causava enjoos.

As frestas das portas não eram estreitas o suficiente para impedirem a sua passagem. Entravam e saiam por ali insistentemente; por cima, por baixo e se acumulavam, agarrando-se às cortinas que, de cima a baixo, ficaram impregnadas. Meu braço já não mais aguentava do movimento que fazia para matá-los. Quanto mais eu os abatia, mais surgiam a minha volta e por todo lado. Quando olhei para fora vi que usavam agora fogo para tentar exterminar os gafanhotos.

Portavam tochas e esticavam rastilhos de pólvoras. Isto funcionou um pouco, pois a fumaça e o fogo assustavam-nos, debelando-os em grande parte. Mas agora era tarde demais; a festa já havia sido feita, deixando um rastro de perda e destruição.

Novamente não consegui dormir. Ao voltar de um rasgo de sono percebi que a matança continuara noite à dentro e ainda permanecia ao abrir da manhã. Meu coração não escondeu um pesaroso sentimento de dó e solidariedade ao meu amigo quando, da janela, olhei para fora. Nada sobrara após a passagem da praga. As árvores eram esqueletos. Os galhos desnudos deixavam-se pender abatidos e secos.

As poucas frutas que restaram nos pomares estavam generosamente acolhidas por uns restos de folhas esquecidas e deixadas em seus lugares. Talvez uma colheita fosse ainda possível para salvar o que fora rejeitado. Nesse momento remexiam a terra e jogavam para dentro dela, aos montes, os últimos insetos mortos.

Havia, espalhando-se para todos os lados, pequenos focos de chama. Precisei fechar minha janela para evitar a entrada da fumaça a se propagar rapidamente. Nos rostos dos empregados máscaras brancas contrastavam com a pele escura e o ar era turvo e escurecido ao volatilizar o negrume da fumarada.

Ao cumprimentar meu amigo à mesa do café da manhã, sua fisionomia era de um abatimento pungente para o qual eu não tinha palavras de ânimo ou de consolo. Vi, pelo inchaço dos olhos, o quanto tinha chorado.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 04/05/2023
Reeditado em 30/09/2023
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