VOLTE PARA NÓS, QUERIDA!
Texto de Fael Velloso
O barulho era assustador para quem estava ali perto. Lembrava, mas nem de perto parecia a cena que, por si só, já assustava e impressionava nos filmes e séries que a maioria ali acompanhava. O barulho elétrico, o corpo saltando do chão e se estremecendo envergado, quase formando um “n”.
Soraya estava morta diante de todos. Morta. Sentiram seu coração parar, seus olhos se arregalarem, e sua pele arroxear. Puderam ver seu último suspiro. E ali viram que agora, era só um corpo. Mas mudou. Algo mudou com a chegada do doutor. A ambulância estacionou no meio da vila de casas antigas, em sua maioria sobrados, e de cara dois enfermeiros socorristas se ajoelharam ao lado da menina.
- Dezenove anos! Pulso nenhum! – gritou um deles, antes de desfibrilá-la.
O corpo novamente se envergou. O barulho elétrico, a espuma saindo pelos cantos da boca da jovem. Os vizinhos tentando esconder tal cena das crianças da vila, que, naquele momento, assistiam à final do campeonato Carioca na quadra da vila, em um telão improvisado em um lençol branco.
Soraya estava viva. Puderam ver seus olhos se abrirem e tentarem entender o que havia acontecido, ou onde estavam. Mas seria mesmo a Soraya?
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Dois dias depois foram suficiente para que Dona Aurélia, mãe de Soraya, notasse que havia algo de errado com sua filha. Antes falante, ao ponto da própria mãe pedir para calar a boca, agora a jovem se mantinha calada. Bem, calada quando se tratava de conversar com outra pessoa. No quarto, sozinha, encurralando-se sobre si mesmo em qualquer um dos quatro cantos, ela cantarolava músicas desconhecidas, dava gargalhadas sussurrantes, e evitava qualquer contato com a luz.
Dois dias foram suficientes para que Dona Aurélia chamasse sua prima espírita, Leidiane, para tentar conversar com a prima e entender se aquilo era de fato um choque pós-traumático, ou o temido “algo mais”. O tal “Algo Mais”. Algo estava errado com a jovem. Algo mudou. Sim, ela esteve morta por alguns segundos, isso conta com certeza, mas ela não parecia ser mais ela.
Uma semana... uma semana foi suficiente para Dona Aurélia ter certeza de que havia algo estranho na casa. Gotas de sangue espalhadas pelo chão durante a madrugada, sem qualquer vestígio de quem ou de onde teria saído. Rachaduras nas paredes antigas, que até então, nunca tinham aparecido em trinta anos que morava na mesma casa. Animais que, ao chegarem perto da porta da casa número 35, simplesmente corriam para longe, dando em sua maioria como desaparecidos. A filha não morrera ali, mas também, era impossível dizer que quem estava ali agora, era Soraya. A doce e alegre.
No quarto, por quase um mês, ela só comia suas próprias unhas, e Às vezes, era vista bebendo água direto da torneira. Às vezes, foi vista revirando carnes na geladeira, assim como na lixeira. Foi vista, em um domingo, comendo restos estragados de um pirão de peixe, deixado em uma panela esquecida, no parapeito da janela da sua cozinha. Tudo estava estranho. E dona Aurélia tinha certeza de que sua filha estava sob influência de algo mau. Ruim. Algo que se apoderara de seu corpo. Que tomara a carcaça de Soraya como cálice assim que ela morrera naquele estranho acidente, na entrada da sua vila.
Demoraram quatro dias para que o padre aceitasse ir até a casa delas. Quatro longos dias, nos quais Soraya gritou palavras em idiomas desconhecidos, e não fazia outra coisa que não fosse vomitar, xingar elementos sagrados que lhe eram apresentados, além de o tempo todo, usar objetos pontudos e fálicos como dildos em seu corpo, já se auto dilacerando.
Dona Aurélia não demorou nada para clamar que o Padre fizesse algo. E ele, do alto de sua extrema experiência, ao bater os olhos, notou que havia algo de errado com Soraya. Seus olhos estavam negros, completamente tomados pela escuridão e cólera. Sua pele, antes alva e sem qualquer imperfeição, agora apresentava rugas, manchas, secreções e abscessos purulentos. Seus dentes, cada vez que ela mexia, caíam um a um, como se nada os prendessem à gengiva da moça.
Dona Aurélia só aguentou cinco minutos dentro do quarto, enquanto o Padre tentava confrontar o que estava ali, aos berros e risadas lunáticas e sádicas do que agora nem de longe parecia sua filha. – Volte para nós, querida! – disse ela antes de sair aos prantos.
O padre ergueu sua mão. A casa se estremeceu. E de repente, tudo ficou em silêncio. Como se o som não existisse. Como se, de repente, eles se estivessem entrado em um vácuo ou algo do tipo, que não permitia que o som se expandisse. Ficou frio. Ficou calor. E ali dentro, ficou noite. Silêncio.
- Soraya se foi! Ela deixou o corpo vazio. O demônio entrou assim que Soraya saiu.- disse o padre.
Demorou uma hora, até que, da sala, Dona Aurélia ouvisse um barulho oco novamente, vindo da frente de sua casa. Devagar, ela se levantou, ainda com pernas e mãos trêmulas, agarrada ao seu terço bizantino que já deixava marcas em suas mãos tamanha a força que o apertava.
No chão, diante do jardim seco de seu quintal, o padre golfava sangue, na tentativa de respirar, com o pescoço quase que todo virado para trás. Dona Aurélia olhou imediatamente para cima. E apenas viu sua filha – ou o corpo dela – subir pelas telhas, se movimentando como uma aranha, e sumindo dentro da vila.
Para sempre.