O velho casarão da Rua 6.

Adriana Ribeiro

 

     A Rua 6 era cheia de casarões antigos. Muitos dos quais remontavam ao Período Colonial e ainda conservavam a estrutura arquitetônica da época, com seus imponentes sobrados construídos sobre porões escuros que serviam de abrigo, tanto para os animais como para os escravos. Mas nenhum deles era tão famoso quanto o velho casarão que ficava no final daquela rua sem saída.

     Era uma espécie de palacete, construído em três pavimentos. Assiduamente frequentado no apogeu de seu funcionamento enquanto residência do Comendador Augusto Ludovico de Bragança, representante da Corte Real na Província Bela Freguesia.
    Cada pavimento tinha sua função social. O primeiro era onde ficava o hall de entrada, amplo e ricamente mobiliado, de onde se podia acessar os demais cômodos do mesmo nível. Ao fundo ficava uma imponente escadaria que dava acesso ao segundo pavimento. Ao lado da qual ficava uma belíssima sala de estar, com suas poltronas de veludo em tons pastéis e arremates de seda em tom dourado. Do lado direito do hall de entrada ficava a maravilhosa biblioteca, com amplas janelas que davam para a própria Rua 6. Mas os janelões de madeira e vidros quase nunca eram abertos e apenas as cortinas transparentes impediam que o imenso cômodo ficasse às escuras.
   Do lado esquerdo havia um imenso salão de bailes, cujas portas ao fundo iam dar num maravilhoso jardim de rosas de várias espécies, cores, tamanhos e aromas. Vestígios do qual ainda era possível encontrar em uma visita mais aventureira ao local durante o dia.
   Ao lado da biblioteca ficava a magnífica sala de jantar, com uma mesa de dezesseis lugares cuja madeira e torneado remontavam ao mobiliário real da Coroa portuguesa e, próximo à mesma, ficavam a copa e a eficiente cozinha.

     O segundo pavimento, tão imponente quanto o primeiro, era onde claramente ficavam os  cômodos particulares da residência, como os quartos da família, as saletas de chás e quartos de hóspedes. Já o terceiro e mais alto pavimento, era uma espécie de sótão que se assemelhava a uma torre de vigília, com suas grandes janelas arqueadas e telhado abobadado com duas gárgulas de sustentação, cujas figuras eram uma mistura de pássaros e morcegos. Um cômodo nada vistoso para quem contemplava a casa do início da rua.

       Mas o que muitas pessoas não sabiam era que, há muito tempo, embaixo daquela majestosa residência de mais de três séculos de história, também havia um enorme porão cheio de pessoas, animais, objetos de todos os tipos, tamanhos e serventias e também muitos vinhos e alimentos estocados. A essa parte da casa só se tinha acesso pelos fundos da residência ou por dentro dela. Olhando a frente da residência ninguém percebia que, por baixo daquele casarão, havia um mundo paralelo, onde a pobreza, a falta de higiene e a total ausência de direitos predominavam.

     E mesmo com mais de meio século de abandono, muitos rumores esquisitos ainda circulavam sobre o lugar. Histórias sobre maus tratos, assassinatos, suicídios e até assombrações se espalhavam pela região de Bela Freguesia.
  Por conta desses rumores, as pessoas ainda evitavam passar perto do antigo sobrado. Principalmente à noite, quando muitos acreditavam que o lugar amaldiçoado ficava infestado de espíritos atormentados que vagavam pela casa e até mesmo pela rua.
   Muitos moradores da vizinhança disseram ter visto e ouvido alguma coisa no casarão e que, por essa razão, se mudaram dali. Assim, salvo algumas poucas moradias da Avenida Bulhões, cujas construções ficavam na esquina da Rua 6, às casas vizinhas do palacete foram abandonadas. Algumas já estavam em estado avançado de deterioração. 

     Mas foi uma tragédia mais recente que acelerou esse processo de abandono. E o fato ocorrido em meados do séculos XX ainda é bastante comentado nos dias atuais. Contam que, certo dia, alguns amigos decidiram visitar o velho casarão à noite para tentar desvendar os mistérios que cercavam o lugar. Acreditavam que explicações lógicas poderiam resolver o problema do lugar e desmistificar algumas superstições daquele povo cheio de crendices.
    O grupo era formado por três estudantes da capital que estavam na cidade interiorana visitando um amigo em comum que havia sido acometido de pneumonia e fora mandado para se tratar em casa. Os amigos aventureiros eram dois rapazes e uma moça. Todos com aproximadamente dezoito anos e cheios de ideias científicas nas cabeças.
  Com a intenção de investigar e conhecer por dentro todo o velho casarão, eles se prepararam com lanternas e equipamentos fotográficos para registrar tudo o que encontrassem de interessante ou estranho, pois estavam decididos a desvendar os mistérios daquele lugar.

     Ao chegarem à Rua 6, notaram que a casa abandonada estava estranhamente iluminada pela lua que brilhava àquela hora da noite, inteiramente exposta no céu escuro e sem estrelas. As janelas quebradas do sótão e provavelmente os objetos metálicos ali dentro ajudavam a luz a penetrar e se espalhar no ambiente, deixando-o mais claro que os pavimentos inferiores.

     Quando o trio entrou no velho sobrado encontrou um ambiente completamente escuro e mofado no primeiro pavimento. Com ajuda das lanternas puderam observar as paredes desgastadas pelo tempo, os móveis empoeirados e as enormes teias de aranha por todos os lados. Todo aquele cenário de abandono, somado a um silêncio mórbido que tomava conta do lugar, deixava os amigos bem inquietos e desconfortáveis, como se algo os estivesse espreitando.

     Enquanto exploravam o primeiro andar, um dos jovens disse ter sentido o cheiro de perfume feminino ao passar pela escadaria que levava ao pavimento superior. Mas nem bem terminou de relatar o fato estranho, ouviram um barulho de porta batendo vindo do andar de cima. Os três subiram correndo as escadas e chegaram a um corredor escuro, com várias portas. Cada porta que abriam, ouviam outra mais adiante bater e, assim, saiam em busca de quem, supostamente, estava tentando fazê-los de tolos.

      Mas a chegarem ao final do corredor deram de cara com uma porta trancada. A última que ouviram abrir-se rangindo muito e fechar-se com um barulho estrondoso. Depois de várias tentativas para fazer o trinco ceder, decidiram arrombar a porta e entrar no cômodo. Assim, aos empurrões e pontapés finalmente conseguiram entrar. Tratava-se de um quarto feminino, todo empoeirado e com o papel de parede puído em vários lugares. O mobiliário antigo contava com uma cama velha, um estreito guarda-roupa e uma penteadeira  com um espelho oval antigo de fundo. Sobre o móvel estavam dispostos alguns objetos pessoais. Entre eles, uma escova de cabelos, um frasco de perfume com resquícios do líquido ainda dentro e uma velha caixa de música parecendo uma espécie de porta-joias. Tudo ali era muito antigo e não havia sequer um inseto vivo no ambiente empoeirado, pelo que puderam constatar.

     Um dos jovens aproximou-se da penteadeira e pegou a escova de cabelo passando a olhá-la com mais atenção. Era um objeto delicado, ricamente ornamentado por minúsculas rosas desenhadas em estilo rococó. Olhou o lado das cerdas e percebeu que ainda haviam alguns fios dourados ali grudados. Aproximou o objeto do clarão da lanterna e tentou tirar alguns fios da loira madeixa para guardar como prova da investigação.

    Mas, ao vê-lo fazendo aquilo, a moça que os acompanhava se sentiu estranhamente incomodada e interviu dizendo:

     ___ Não mexa nas coisas dos mortos, Job! É pecado!

     Ouvindo a recomendação da amiga, o rapaz tentou devolver a escova ao lugar onde estava, mas esbarrou sem querer na caixinha de música sobre o móvel, fazendo-a ressoar no ambiente com um som melancólico e doce.
      De repente os amigos olharam para o espelho e notaram que uma figura de mulher, pálida e assustadora, estava refletida nele. Começaram a gritar e a correr para sair dali, mas a porta do quarto havia sido trancada e, por algum motivo, eles não conseguiam abri-la.

     A figura no espelho de repente se apresentou inteira ao lado da cama e começou a se aproximar do rapaz que tocara na escova com ambas as mãos estendidas e dizendo com uma voz sinistra bastante imperiosa:

     __ Devolva o que me roubaste!

     O rapaz estava paralisado enquanto o espectro da moça chegava cada vez mais perto repetindo o estranho pedido.

     __ Devolva-me! __ Como ousa roubar o meu anel de noivado para dar à essa escravazinha imunda?__ Você ficou louco Bernie?__Vou contar para o papai e fazê-lo chicotear essa bastarda até a morte!

     E dizendo tais palavras ameaçadoras seguiu em direção à moça que se recostara na porta extremamente assustada.

     De repente, os três jovens ouviram um tiro seguido de gritos e choros abafados. Os sons estranhos pareciam vir de algum lugar embaixo da casa. Nesse momento o rapaz paralisado voltou a si e correu até a porta com a clara intenção de arrombá-la para fugirem dali. Mas, ao girar a maçaneta, esta se abriu com facilidade e todos saíram. Por pouco o espectro da moça desconhecida não os alcançou.

     Do outro lado do corredor os rapazes tentaram abrir uma das portas com socos e pontapés, mas esta parecia ser feita de chumbo. E enquanto lutavam para conseguir sair daquele lugar macabro, uma porta lateral se abriu com um rangido horripilante. Eles correram para lá e perceberam que dava acesso a uma espécie de porão escuro e fétido.
    O Espectro da moça já estava saindo do quarto à procura deles e na ânsia de se livrarem daquele ser medonho que agora os perseguia, desceram pela escadaria estreita que parecia interminável até chegarem ao que lhes pareceu, de início, ser uma senzala.

     Ali, ouviram o choro abafado de uma mulher e os gemidos de dor de um homem. Os sons pareciam vir de uma baia mais ao fundo. Todo o lugar estava cheio de feno armazenado. As palhas velhas e mofadas conferiam um cheiro desagradável ao ambiente, mas a curiosidade dos jovens os conduziu ao local da mais triste cena fantasmagórica.

     Se aproximaram devagar e em silêncio do local até que viram, claramente, três figuras prostradas e em prantos. O vulto de uma moça loira que estava ajoelhada e com uma arma nas mãos estava um pouco mais afastada dos outros dois, que também eram jovens. O rapaz, muito bem trajado como um Cavaleiro, estava caído e sangrando, enquanto uma moça vestida de modo simples e com um turbante de mesmo tecido cobrindo a cabeça, tentava pressionar o ferimento para que parasse de sangrar enquanto chorava copiosamente.

     Os três estudantes pararam estupefatos diante da cena que parecia real. Logo passaram a ouviram também aquelas vozes sofridas:

     __ Não morra meu amor! Por favor! Fique comigo!

     __ Você tem que fugir Annie! __ Depressa! Amélie vai dizer a todos que foi você quem atirou em mim!

     Mas a moça não ouvia o que o rapaz lhe dizia.

     __ Você não pode morrer meu amor! __Lute! __Por mim!

     __ Fuja meu amor! Você será enforcada se eles a encontrarem aqui!

     Mais distante, a moça que segurava a arma murmurava, também em copioso pranto: __ Eu não queria feri-lo meu amor!__ Me perdoa! __Eu só queria assustá-la! __ Porque você tinha que protegê-la?__ Era ela quem merecia morrer por ter te roubado de mim.

     De repente um grito de profunda dor saiu da boca da moça de turbante indicando que o rapaz não havia resistido ao ferimento causado pelo tiro. E em meio àquele choro convulsivo um novo estouro da arma se ouviu. Dessa vez a moça loira havia atirado na rival e esta caiu lentamente sobre o peito do jovem cavaleiro morrendo imediatamente.

     Em seguida a assassina pegou a arma, mirou no próprio peito, puxou o gatilho caiu. Agonizante  saiu se arrastando até onde o jovem estava deitado e, ao segurar-lhe a mão direita que jazia estendida, também expirou. Provavelmente não suportara o remorso de ter causado a morte do jovem que amava.

     Os três amigos pareciam em transe diante daquela cena sobrenatural e nem ao menos ousavam respirar. Era como se assistissem a um filme trágico de época, tanto pelo cenário quanto pelos trajes dos personagens envolvidos. E foi assim, em uma espécie de transe paranormal que eles ficaram por longos minutos ali parados.

     Naquele momento todo o enigma se esclareceu e os amigos perceberam que eram os espíritos de três jovens que haviam morrido na casa há muitos anos e que, por isso, viviam assombrando o lugar. Eles ainda não haviam superado o que tinha acontecido no passado e permaneciam aprisionados no velho casarão como castigo por haverem cometido assassinato e suicídio.

     Extremamente consternados, e na ânsia de ajudar a libertar aquelas almas tão sofridas, voltaram ao casarão às pressas para tentar queimar a caixinha de música que aparentemente seria o portal por onde aquelas almas voltavam ao mundo dos vivos.
   Assim, de volta ao quarto da jovem morta, o rapaz chamado Job, correu até a penteadeira para pegar o objeto amaldiçoado. Porém, devido à pressa, seus pés escorregaram na poeira do chão e seu corpo esbarrou na penteadeira fazendo-a balançar violentamente e derrubar a caixinha de música que se estilhaçou completamente no chão do quarto.

     Diante da cena, um coro de: __ Oh, não! Se fez ouvir no ambiente.

     Todos lamentavam a destruição do objeto antes que eles houvessem se certificado de que o fantasma da loira estava do lado certo. Mas não havia mais jeito e, enquanto tentavam juntar os cacos do objeto para queimá-lo, os três espectros apareceram no quarto.
   Um dos jovens, apavorado, correu para perto da janela enquanto o casal, se sentindo encurralado, permaneceu imóvel por mais alguns instantes. Mas vendo que não teriam como escapar dos espectros, abraçara-se e fecharam os olhos enquanto gritavam aterrorizados. O amigo, parecendo petrificado, assistia a tudo de onde estava sem conseguir sequer gritar. Viu quando os espectros do casal assassinado a tiros tocou em cada um dos jovens abraçados e estes de repente se transfiguraram. Já não eram mais o rapaz e a moça da cidade moderna, e sim, os jovens amantes do passado. A intriga entre o triângulo amoroso recomeçou e, sem parar para pensar no que estava acontecendo o terceiro jovem se jogou pela janela do sobrado, caindo violentamente na calçada de cimento da rua e ficando seriamente ferido.      
Os gritos chamaram a atenção da vizinhança e alguém chamou a polícia. Socorreram o jovem caído na calçada e resgatam os dois corpos  encontrados naquele lugar. Dessa vez com os pulsos cortados. Perto das mãos de ambos acharam os estilhaços cortantes da velha caixinha de música quebrada.
   O rapaz que pulou a janela foi levado ao hospital e, por causa dos traumas provocados pela queda, demorou a sair de lá.

     Meses depois recebeu alta médica mas, por causa de uma concussão cerebral traumática, havia perdido parcialmente a memória. Quase não se comunicava verbalmente e quando tentava fazê-lo as pessoas não lhe davam crédito devido às circunstâncias do ocorrido. Muitos atribuíram o episódio sinistro a um desentendimento entre os dois jovens por causa da moça.

     Desde então as pessoas da cidade passaram a exigir a demolição do velho casarão da Rua 6. Muitos temem a permanência do velho sobrado ali, pois acreditam piamente que é um lugar amaldiçoado. A história dos dois jovens mortos virou mais uma lenda local. Mas, para aqueles que perderam seus entes queridos naquela terrível noite, o Casarão da Rua 6 é um lugar que nunca será esquecido.

    Ou será que esquecerão, assim como esqueceram as inúmeras vítimas dos seus eternos e perversos moradores? 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 08/04/2023
Reeditado em 09/04/2023
Código do texto: T7758595
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