A LEI DAS BRUXAS

Sarah acordou, de súbito, suada e agitada. Era mais um dos pesadelos que a acometiam noite após noite desde que se mudara para aquela cidadezinha. Na mente confusa entre sensações e imagens, a fisionomia do seu superior máximo, o secretário de polícia civil do estado, irrompeu por entre as cenas pavorosas dos devaneios noturnos, ela tentava buscar forças no argumento do chefe.

— Sarah Becker, você é a pessoa ideal para a missão que tenho em mente. Você não é de Sombrero? Aquela cidadezinha no interior do estado de imigração ibérica?

— Sim, sou sim.

— Pois bem, isso é perfeito. Preciso de alguém com a mais alta capacitação e experiência para colocar em ordem a confusão que se instalou naquele rincão esquecido por Deus, sem ofensas.

— Não me ofende, senhor. Saí de lá jovem, sem tempo para criar vínculos significativos.

— Então, sei que você não deseja se aposentar sem alcançar a tão almejada posição de superintendente de segurança, entendo muito bem como é isso. Aqui está o meu acordo: você vai para lá e depois de colocar a casa em ordem, retorna para a capital e o cargo é seu.

Sarah sabia muito bem que a situação não estava boa nas cercanias de sua terra natal. O mais recente delegado de polícia, que havia seguido para ocupar o posto do antecessor que se suicidara sem qualquer motivo aparente, entregara o cargo, abandonando a cidade às pressas.

No entanto, ela também sabia que esse seria a melhor e, talvez, a única oportunidade que teria para alcançar o seu objetivo profissional. Já ostentava cinquenta e nove anos, onde destes, trinta e cinco foram a serviço da polícia. Ocupava com destaque o cargo de delegada, mas nunca se mostrara satisfeita, e a proposta do secretário lhe parecera tentadora, apesar de toda a estranheza que cercava o caso. Assim, decidida e encorajada, partiu para Sombrero, onde, nesse momento, já se encontra há cerca de duas semanas.

Refazendo-se do terror noturno, Sarah se levantou e olhou pela fresta da janela a luz do dia que começava a inundar a praça vinda das montanhas. Mesmo acabando de acordar, se sentia extremamente cansada, uma sensação pouco comum em sua vida. Apesar da idade, Sarah sempre esbanjara vitalidade. Por conta da aparência, usualmente não lhe creditavam quarenta anos. Os sinais do tempo pareciam ser incapazes de atingi-la. Mas, a sucessão de noites mal dormidas começava a cobrar seu preço, embora as lembranças em sua mente doessem bem mais do que o corpo.

A recordação dos pesadelos era algo tão palpável que a memória olfativa ainda lhe impregnava naquele instante. A visão daquelas mulheres jovens, velhas e até crianças queimando na fogueira em praça pública era aterradora. Os gritos enquanto as labaredas açoitavam seus corpos sendo cozidos por dentro eram insanos, mas, ainda assim, não faziam jus ao tamanho do sofrimento que as abraçava. Ela, Sarah, compartilhava daquela dor. Sentia o cheiro da carne queimada. Experimentava a hedionda sensação de ter a pele retorcida pelas chamas. Ela só não compreendia o porquê de vivenciar tudo aquilo.

Ao terminar de se preparar e ganhar as ruas rumo à delegacia, ela olhou para o pórtico de entrada da cidade e remoeu a cena de sua chegada, onde uma menina de cerca de oito anos cruzou o caminho de sua motocicleta, quase fazendo com que fosse de encontro ao solo ao desviar da pequena. Antes que Sarah pudesse abrir a boca para expressar qualquer palavra, a menina olhou diretamente para seus olhos como se pudesse vislumbrá-los através da viseira escurecida do capacete e falou:

— Sarah Becker, Sarah Becker. O que você quer aqui? Essa casa não é mais sua, você foi embora. Nos deixou.

Intrigada com a fala da pequena desconhecida, a delegada esboçou abrir a boca, mas a menina correu para dentro da mata, mas não sem antes lhe oferecer um sorriso mutilado, por onde uma língua bifurcada escapava.

Ao longo dos dias, a policial pôde perceber que aquele não seria um evento insólito isolado. Toda a cidade parecia empesteada por uma sutil neblina rançosa, que só não abraçava a cidade de forma plena quando o sol se mostrava exuberante em sua presença, como naquela manhã.

Mas mesmo com a luminosidade presente, o povo evitava a livre circulação, havia um sentimento coletivo de aversão em toda a parte. O fulgor da cidade definhava, refletindo no que já era um parco comércio e que agora tornava-se praticamente extinto. Quem teve condições deixou a cidade, quem não teve sobrevivia às custas dos raros animais de criação que ainda resistiam e do que conseguiam salvar da lavoura tomada por larvas e vermes imunes a quaisquer tipos de pesticidas.

Sarah circulava lentamente pelas ruas de pedra e não enxergava uma viva alma. Até mesmo os bichos, que sua memória juvenil dava conta de preencher todo o entorno, pareciam preferir a reclusão de suas tocas a perambular pelas margens das vias. Àquela altura, todo o efetivo policial, que correspondia a apenas dois policiais, já deveria estar na base, mas a delegada preferiu circular um pouco mais pela região.

Seu caminho foi adornado por cenas que partiam do espanto à total ojeriza. Um cachorro desnutrido lutava pela vida contra um bando de urubus famintos. Ela precisou disparar mais de uma vez para o ar na tentativa de dispersá-los. O antes volumoso riacho que cruza a parte norte da cidade não passava naquele momento de um traço fétido do que um dia fora, onde um sem número de peixes apodreciam. Olhando com atenção, a impressão era a de que até suas espinhas ressecadas ainda se mexiam, como se lutassem pela vida que não mais ocupava seus corpos.

Torcendo mais o punho direito, ela acelerou rumo às plantações tomadas pelos vermes. A quantidade da infestação era tamanha, que rios vivos das pestilências saíam das terras e tomavas as ruas. Para onde Sarah olhava havia podridão, fome e morte.

— Sarinha! Sarinha! Aqui!

A delegada avistou uma senhora recostada num portão de madeira e se aproximou para atender ao chamado que lhe soou estranhamente íntimo.

— Olá, senhora.

— Senhora? Sou eu, Sarinha. Isabela, não se lembra de mim? Filha do senhor Francisco, da quitanda.

Sarah puxou pela memória e se lembrou de quando tinha cerca de dezoito anos, pouco antes de deixar Sombrero. Havia uma menininha de sete ou oito anos que ficava sempre do outro lado do balcão da quitanda, olhando o ir e vir das moças para o colégio. No entanto, os traços daquela senhora passavam longe de alguém que seria bem mais nova do que ela própria.

A figura diante da delegada exibia uma postura recurvada para frente, com uma grande protuberância na coluna vertebral. Seu rosto era esquálido e sulcado. Era como se cada parte do seu corpo expelisse dor com o simples ato de respirar. Para aquela mulher, existir não passava de tortura.

Sarah mirou diretamente nos olhos da estranha senhora na tentativa de buscar familiaridade por detrás do manto amarelo esbranquiçado de suas retinas. E, com esforço, capturou uma nesga de vitalidade, mais do que isso, de humanidade, onde um grito mudo de silêncio clamava por ajuda travestido pelos traços infantis de uma menina.

— Sarinha, vá embora daqui. Essa terra está doente. A noite vermelha se aproxima, não há nada para você aqui. Elas voarão pelos céus noturnos, dançarão em volta do fogo. Nós que aqui estamos já nos perdemos em sua doença, mas não perca sua virtude, sua alma, ficando por aqui também.

— Não tema por mim, Isabela — a delegada pousou a palma da mão no rosto deformado da mulher e sentiu um calafrio percorrer sua espinha por conta da tez gelada — enquanto houver bondade e bem-querer no coração dos homens haverá esperança, minha querida. Se há uma doença nessa terra, farei o possível para curá-la.

Sarah se virou e, enquanto se afastava, olhou para trás e viu Isabela entrar no casebre onde do interior uma névoa avermelhada emanava. A delegada interrompeu seu percurso. A residência parecia queimar como um forno em brasas. Em desespero e de arma em punho, ela correu para socorrer a mulher que era cozida pela própria casa.

A oficial saltou o cercado e ao ganhar o pequeno quintal notou por entre a névoa rubra um par de olhos amarelados e um sorriso mesclados à fumaça.

— Isabela!

Uma explosão desprovida de estrondo jogou a delegada ao ar. Seus olhos fitaram os céus estranhamente escuros a despeito da luz que brilhava instantes atrás e, antes de se chocar de encontro ao solo, ela viu silhuetas femininas cruzando o círculo lunar como amazonas domando galhos retorcidos e secos. Com o choque, Sarah perdeu os sentidos.

— Delegada! Delegada! — um dos policiais tentava reanimar a chefe — Sarah, acorde, vamos, é urgente.

Tentando ajustar os sentidos, ela abriu os olhos e percebeu que a noite havia chegado, como num piscar de olhos.

— Delegada, levaram as filhas dos Batistas da Fazenda Olho D'Água, as meninas gêmeas.

— Como assim? Quem as levou? Ajude a Isabela, ela está em perigo.

— Qual Isabela, doutora?

— A da casa em frente.

— Mas delegada, há muito já não mora ninguém aqui. Os comerciantes donos dessas terras morreram logo após sua menininha desaparecer na floresta, veja.

Sarah olhou para onde antes havia o casebre de Isabela e não descreveu nada além de ruínas marcadas pelo tempo.

— Mas, como pode?

— Vamos voltar à delegacia, senhora. Testemunhas deram conta de que velhas em trajes surrados em negro levaram as crianças. Pegamos uma suspeita nos arredores da Olho D´Água. Precisamos de você.

Viatura oficial e motocicleta riscaram as ruas de pedra a caminho do centro comercial. Com a viseira do capacete levantada, Sarah olhou para o céu escuro e desprovido de estrelas onde uma grande lua amarela de bordas avermelhadas lhe retribuía o olhar. Com o coração pleno de melancolia, ela conteve o choro e acelerou ainda mais, ultrapassando o veículo à frente.

A porta da delegacia estava tomada pela população ensandecida. O policial que ficara nas instalações, de arma em punho, tentava conter a turba.

Sarah buscava abrir espaço por entre as pessoas. Memórias que ela não vivenciara invadiam sua mente, onde manifestações semelhantes acabavam sempre com mulheres ardendo entre as chamas.

— Traga a bruxa até aqui, delegada!

— Vamos queimar a maldita! Queimem a bruxa.

Ignorando os brados, Sarah entrou no prédio oficial enquanto seus homens mantinham guarda na entrada. Caminhando na direção da cela ocupada, ela sentia seu coração aumentar o ritmo e os passos pesarem cada vez mais.

— Boa noite Sarah Becker.

A delegada esperava encontrar a figura descrita pelo policial, mas, ao invés disso, deparou-se com algo totalmente diferente. A mulher atrás das grades não era apenas jovem, mas era alguém que exalava viçosidade pelos poros. Seus longos cabelos negros refletiam uma luminosidade azulada enquanto ela se movia. Dos olhos grandes e negros uma expressão enigmática sugeria mais do que os lábios extremamente vermelhos deixavam escapar. Do bronze em seu rosto não havia uma só linha fora do lugar.

— Quem é você?

— Quem sou eu pouco importa, doutora. O que realmente conta aqui é: quem é você?

— Sou uma representante da lei e juro que você vai pagar caro se for culpada pelo sequestro das meninas e por tudo o que tem acontecido por aqui.

— Será, Sarah Becker? Vejamos, de onde você acha que vem essa sua vitalidade? Sua força e juventude? Essa beleza inata? Vem do vigor da terra, da natureza, das suas origens. Você sente a dor das chamas, nunca se perguntou o porquê disso? Você pode até ter saído do seu verdadeiro lar, mas este sempre estivera contigo. Mas ouça uma coisa, doutora. Para tudo há um preço. Perceba que as linhas do tempo começaram a te abraçar desde que voltou. Eu estou disposta a fazer o que de mim se espera, e você? Está? Vivo em comunhão à natureza e a tudo o que me é mais sagrado. Você precisa definir qual será seu caminho.

A estranha caminhou em direção às grades, até então falava do canto mais distante da cela, e só então Sarah pôde vislumbrar em sua totalidade a beleza mais indescritível com a qual jamais se deparara antes. A mulher cuspiu na palma da mão esquerda e encostou no ferrolho fazendo com que este sucumbisse às suas vontades.

Petrificada, a delegada apenas acompanhou o caminhar da prisioneira rumo a parte posterior do prédio, de onde ganharia a imensidão das matas. Antes de sair, a estranha olhou para trás e seus olhares se cruzaram e, por um ínfimo instante, Sarah vislumbrou uma mostra de sua alma.

— Vá, pode ir, bruxa. Nossos destinos caminham na mesma direção.

A mulher apenas sorriu e caminhou para a escuridão.

— Delegada. Mas, onde está a prisioneira?

— Eu a deixei ir.

— A senhora o quê?

— Não importa. Eu sei o que fazer. Peça ao Saldanha para dispersar a multidão, use a força se necessário. Então, me encontrem na entrada do bosque, preciso fazer algo antes. Mas só apareçam caso tenham convicção, pois não poderemos fraquejar diante do que está por vir. Nossa força de vontade será a aliada mais valiosa.

Quando Sarah chegou ao local combinado, Pereira e Saldanha já a aguardavam. Ela percebeu medo no olhar dos homens, mas não havia como ser diferente. A entrada do bosque parecia uma grande boca escancarada para as entranhas da mata.

— Aqui, apontou Pereira, essa é a árvore onde o antigo delegado se enforcou.

— O coitado enlouqueceu quando conseguiu sair do bosque depois de três dias desaparecido, completou Saldanha.

Sarah mal olhou para a árvore, uma imensa figueira ressecada.

— Vamos.

A floresta pulsava como um organismo vivo, era como se a imobilidade das árvores desse lugar a uma palpitação no interior de cada tronco. Quanto mais adentravam em seu interior, mais se tornava difícil a respiração. Eram invadidos pela fome, abraçados pela sede. Sentiam frio e calor. Dor em cada junta de seus corpos.

— Eu não posso continuar.

— Onde está sua vontade, policial?

— Já não tenho forças para mais um passo, doutora.

— Então deixaremos as meninas nos braços da morte? Vamos, temos um dever a cumprir.

Ainda que combalido, o trio continuou por mais alguns metros até que um grito animalescamente feminino ribombou pela mata fazendo com que largassem as lanternas levando as mãos aos ouvidos.

Então, sem maiores explicações, cada um deles viu a si próprio sozinho em meio à vegetação.

“Carlinhos, Carlinhos, você não sente vergonha não?”

— Quem está aí? Quem está aí? — Pereira gritava em todas as direções.

“Que coisa feia, Carlinhos. Você acha que se esconder numa cidadezinha vai apagar o que fazia? Não. Não vai. Você ainda é o mesmo policial que fazia vistas grossas para aqueles que traficavam nas escolas. Você é um homem da lei. Não deveria se vender por trocados. Sabe quantas criancinhas perderam as vidas por isso? Você sabe? Quem você quer enganar tentando salvar as gêmeas? Suas mãos estão sujas de sangue inocente.”

— Você não me conhece! Não sabe o que está dizendo, bruxa!”

“Ah eu sei sim. Eu te conheço, Carlinhos. E sei que você vai pegar a arma em sua cintura agora.”

Pereira destravou o coldre e envolveu o calibre .38 na mão direita.

“Você quer despejar o conteúdo em mim, não quer, Carlinhos? Mas ao invés disso você vai colocar o cano na boca.”

Sem conseguir conter os próprios músculos, o policial sentiu o metal gelado lhe tocar a língua. Ele não tinha forças para resistir à voz em sua mente. Uma sucessão de imagens percorreu sua visão. Meninos e meninas estatelados no chão imundo com o olhar perdido como zumbis, enquanto agulhas cravadas em seus braços lhes drenavam a vida.

Com lágrimas nos olhos, Pereira envergou o gatilho e um estampido mesclado a gargalhadas escoou pelo ar chegando aos ouvidos de Saldanha.

“Pequeno Marcos, minha criança. Ouviu o som? Seu colega fez o que tinha de fazer. E você? Eu também sei o que você fez. Você acha certo gastar cada centavo de sua família com álcool, mulheres e vícios? Você como policial não prenderia alguém que surra a esposa a cada vez que ela pede comida para os filhos? Ouça, Marquinhos, sua filhinha está faminta. ”

“Tenho fome, papai.”

“Seu caçula, precisa de você, policial.”

“Volte para casa, papai. Precisamos de você. Não temos nada aqui.”

“Vai deixá-los com fome outra vez? Não vai fazer nada, Marquinhos? A comida está sob seus pés. Leve para eles. Agora.”

— Sim. Sim, eu levo.

Em desespero, Saldanha começou a cavar a terra em busca de algo que seus olhos viam, mas suas mãos não conseguiam tocar. As unhas ficaram pelo caminho, a carne viva irrigava o solo com sangue.

“Experimente. Veja se a comida está apetitosa para as crianças.”

Pereira arrancava tufos da terra apodrecida, onde vermes e insetos pululavam aos montes e despejava as porções na boca, enquanto continuava a cavar. Logo, um grande buraco se abriu.

“Está lá embaixo, Marquinhos, vá buscar, menino.”

Sem questionar, o policial se jogou na abertura no solo, sendo envolvido rapidamente por uma avalanche de desejos, repousando num local do qual jamais sairia.

“Sarinha, onde está você, pequena?”

— Pode chamar o quanto quiser, vadia. Sua voz não dobrará a minha força de vontade.

“Ora, não seja malcriada, menina. Sabe o que acontece com crianças levadas? Viram comida. Você quer servir de alimento ou quer se alimentar, pequena Sarah? Suas pernas já estão cansadas. O tempo já está corroendo seu corpo. Junte-se a nós no banquete. Recupere suas forças. A lua de sangue já está no céu. Você é uma de nós.”

Por mais que a delegada tentasse ignorar a voz da floresta, ela sabia que seu corpo realmente fraquejava, era como se definhasse a olhos vistos e toda a vivacidade que sempre lhe fizera morada fosse desalojada de uma só vez. Mas ela sabia que havia um caminho a percorrer, sabia para onde seguir e não deveria e nem poderia desviar do trajeto.

“Sarah, menina…”

— Cale a boca!

A voz desapareceu no mesmo instante em que uma luminosidade se avizinhava a cada passo à frente. Por entre brechas na vegetação, a delegada vislumbrou um potente e branco fulgor, onde figuras em trajes esfarrapados e escuros se destacam em meio a uma luz tão forte quanto o dia.

Conforme seguia adiante, a vegetação cerrou a imagem da clareira por um instante, mas em seguida, tornou a mostrá-la e então Sarah viu o horror em cada um daqueles rostos. Cada mulher que ali estava parecia carregar o peso das eras no corpo. Não diferiam de cadáveres envoltos em mortalhas.

Contento um refluxo, a delegado deu mais alguns passos tendo a visão nublada mais uma vez. E, ao dobrar uma abertura por entre os galhos, ela se deparou com a entrada da clareira. Mas o que ela via já não fazia jus à cena anterior. Ali, diante de seus olhos, seis jovens com uma beleza mais estonteante que a outra, se postavam em volta de uma fogueira de chamas brancas e frias. Aos seus pés estavam os trapos que antes cobriam seus corpos, os quais, agora desprovidos de quaisquer vestes, exibiam curvas esculpidas com esmero.

— Nós já nos alimentamos, Sarah Becker. Mas guardamos a outra para você.

A mulher que lhe dirigia a palavra era a mesma que estivera presa nas celas de sua delegacia. Sarah olhou para onde ela apontava e percebeu uma das meninas sequestradas presa ao tronco seco de uma árvore. A garota tinha apenas treze anos e a julgar pelas palavras da maldita, sua irmã já não estava entre elas.

— Aquele a quem servimos, doutora, teria muito apreço em ter sua presença entre nós. Venha, você sempre fez parte disso. É uma de nós. Basta você arrancar o coração daquela inocente e compartilhá-lo conosco sob esse luar tão especial.

Sarah olhou para a menina presa e percebeu a mesma névoa avermelhada e de olhar amarelo que vira na casa de Isabela envolvendo a criança dos Batistas.

As mulheres ao redor do fogo guinchavam e dançavam. De braços entrelaçados, rodopiavam como se estivessem em transe. Como eram belas. A mulher da lei sentiu uma imensa vontade de se juntar a elas, algo que parecia dominar sua alma e impulsionar seus passos.

Conforme caminhava, a delegada sentiu sua pele esticar, seus músculos enrijecerem, sua vitalidade voltar. Não era preciso um espelho para saber que estava mais vívida do que nunca.

Decidida, Sarah despiu-se e tomou um lugar no círculo de fogo, de braços dados a outras. Quem olhasse para a cena não poderia diferenciá-la das demais. Mas ela sabia muito bem quem era e qual era o seu papel.

Num impulso, a policial jogou a bruxa ruiva, a que estava à sua direita, de encontro às chamas. Ao tocar a fogueira, as labaredas antes brancas tomaram uma colocação avermelhada. O círculo se desfez enquanto a mulher gritava no fogo.

— O que você fez Sarah Becker?

— Eu não sou uma de vocês, bruxa. Quando olhei para seus olhos na delegacia pude ver o que tentava esconder de mim. Meus antepassados sempre combateram o mal que vocês causam nessas terras. Por isso tentou me corromper.

— Você é uma mulher morta, policial.

Sarah alcançou a arma no chão e com a munição embebida em água benta disparou na testa das bruxas de cabelos aloirados e de traços indígenas, ambas caíram no chão e logo seus corpos exibiram a real face cadavérica e definharam até virarem pó.

A mulher de pele negra, por sua vez, tentou correr e fugir da clareira. No entanto, ao cruzar o espaço delimitado, fora partida ao meio por uma força desconhecida.

— Não há como fugir, malditas. Eu cerquei a área com sal. Vocês estão presas aqui.

A névoa avermelhada dissipou-se fazendo com que a menina capturada despertasse do transe forçado.

A mulher de feições orientais, com um movimento, fez com que um galho seco e retorcido viesse de encontro à sua mão. Abraçada a ele, projetou-se no ar rumando aos céus, mas, a força invisível fez com que despencasse de encontro à fogueira. O cheiro de carne queimada empesteava as chamas que agora eram negras como a noite mais escura.

— Já disse, não há como escapar. O círculo está fechado.

— Você não sairá daqui, Sarah Becker, nem você nem essa criança que tenta em vão proteger. Eu sou Morgana, filha da terra e estou aqui há mais tempo do que pode imaginar, menina.

— Eu sei disso, Morgana. E sei também que estamos fora do círculo de sal e que vocês prometeram fartar a terra com alimento nessa lua de sangue. Aquele a quem vocês servem já fugiu. Não há como você escapar daí, e não há mais ninguém para alimentar a terra, além de você mesma.

As chamas se espalharam pela clareira protegida pelo sal, de modo que tomaram todo o círculo, fazendo com que Morgana se encontrasse em um dilema: ser fatiada pelas lâminas invisíveis ou consumida pelas chamas. Logo, o fogo ganhou tons azulados, enquanto os gritos que ecoavam pela floresta naquele momento não eram de manipulação ou influência negativa, mas da mais crua expressão de dor. Morgana, a bruxa mais antiga daquelas terras escolhera morrer como suas antepassadas.

***********************************************************************************************************************************************

Com a morte das bruxas, a força negativa que sugava a energia de Sombrero fora diluída por completo, de modo que a normalidade de cidade pequena aos poucos retornava por completo.

Os animais engordavam nos pastos, as plantações verdejavam vastas, longe das pragas hediondas. Revitalizado, o comércio fervilhava com o ir e vir dos transeuntes, livres do medo e da pestilência.

Da varanda de sua casa, Sarah observava sua terra natal. Há algum tempo, já havia avisado ao secretário de segurança que não tinha intenção de voltar para a capital e assumir o cargo prometido. O ímpeto e a ambição pareciam ter ficado na floresta e queimado com as mulheres do círculo de fogo.

Ela se sentia muito cansada. Era como se toda a vivacidade que sempre tivera estivesse destinada a ser utilizada para a finalidade de trazer de volta a vida da cidade. E, cumprindo o seu papel, o peso do tempo recaía para a realidade.

Sarah sentia no rosto a brisa da tarde balançar seus cabelos grisalhos. Olhando para as mãos com os traços naturais da idade, ela suspirava. A motocicleta acumulava poeira. A vontade de correr livre sempre chegava e evanescia com a certeza das terríveis dores nas costas.

Com os olhos agora adornados por óculos de grau, ela mirava o portão do colégio, de onde o sinal que anunciava o fim do turno ecoava pelo pátio. Logo, dezenas de crianças ganhavam as ruas e, dentre elas, Sarah percebeu a menina dos Batistas, a que conseguira salvar do apetite das bruxas. Sentindo as costas rangerem, a delegada se levantou e foi até a motocicleta, fazendo o motor roncar mais uma vez. Ela se sentia viva com o toque do vento em seu rosto.

— Doutora Sarah!

— Olá Samanta, você está bem?

— Sim, senhora.

— Você sabe que é muito importante para mim, não sabe, menina?

— A senhora também é importante para mim, afinal, me salvou da morte.

— Que bom, Samanta. Você gostaria de dar um passeio comigo?

— Meus pais estão me esperando, mas, claro, vou sim.

A menina subiu na garupa do veículo e Sarah acelerou pelas ruas de pedra.

— Para onde vamos, doutora Sarah?

— É uma surpresa, você logo saberá, menina.

Uma névoa avermelhada acompanhou a motocicleta.Não há lei entre bruxas.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/03/2023
Código do texto: T7749913
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.