PORTAL MÁGICO
Marta acordou no meio da noite sentindo um cheiro estranho. Acendeu a luz do abajur, para procurar a origem do mau cheiro. Olhando para o marido, dormindo tranquilamente, percebeu que o fedor vinha dele, do pijama sujo e rasgado. Ela levantou-se rápido e acordou Murilo, sacudindo-o pelo ombro. Ele demorou a despertar, parecia embriagado.
— O que foi?
— O que é isso nas tuas roupas? Onde você esteve?
Ele ficou espantado com o que viu. Levantou-se.
— Não estive em lugar nenhum. Não estou entendendo!
O pijama estava rasgado numa das pernas, sujo de barro, e seus pés com alguns arranhões.
— Ande, vá tomar um banho e mudar de roupa. Eu já levo um pijama limpo.
Depois de banho tomado e roupa trocada, Murilo voltou para a cama. Marta olhou para ele, examinando seu comportamento. Ele abriu os braços, num gesto de impotência.− Não entendo o que aconteceu. Não me lembro de nada. Será que andei dormindo?
— Isso aconteceu alguma vez antes de casarmos?
— Não. Pelo que eu sei, nunca andei dormindo.
— Alguém da tua família teve sonambulismo?
— Que eu saiba, não.
— Onde você andou para ficar todo sujo? Aqui no bairro as ruas são asfaltadas, não tem barro, não tem mato. Algumas árvores e é só.
Os dois ficaram calados por um momento, tentando entender o que tinha acontecido. Marta disse: − Enquanto você tomava banho, fui dar uma olhada na porta e verifiquei que tá trancada. Vamos dormir e deixar para pensar nisso amanhã.
***
Marta trabalhava no necrotério da cidade como médica legista. Murilo trabalhava numa fábrica de alimentos. Eles estavam casados há cinco anos e planejavam ter um filho, logo que Murilo fosse promovido. O casal voltou à sua rotina e não deram tanta importância ao possível sonambulismo de Murilo. Mas na semana seguinte, algo estranho voltou a acontecer. Murilo acordou no meio da noite com o grito de Marta. Ele acendeu a luz do abajur e viu a esposa ao lado da cama com o pijama sujo, suada e os cabelos desgrenhados.
— Era uma barata. –disse ela e só então percebeu que estava toda suja. Fez uma cara de espanto. ─O que é isso? Não pode ser!
— Algo estranho está acontecendo. Talvez alguma atividade paranormal.
Marta olhou para o marido, assustada.
— O que vamos fazer, Murilo?
Ele saiu do quarto, foi examinar portas e janelas para ver se Marta tinha saído para a rua, mas tudo estava trancado. Quando voltou, a esposa estava tirando a roupa para tomar um banho. Ele disse:
— Amanhã vou comprar algumas câmeras e mandar instalar na casa, para ver se conseguimos descobrir o que está acontecendo.
***
Murilo instalou as câmeras e passou a examinar as gravações todos os dias pela manhã. Somente na semana seguinte, algo estranho aconteceu. Novamente, Marta acordou de manhã com as roupas amarrotadas, manchadas, os pés sujos como se tivesse se arrastado num chão imundo. Imediatamente ela acordou o marido e os dois foram examinar as gravações das câmeras. Na gravação do dormitório, o casal dormia tranquilamente, até que às 2 horas e 40 minutos, Marta levantou-se da cama, saiu do quarto e seguiu pelo corredor em direção da sala. Era para ela surgir na sala, porém, a câmera instalada ali, não registrou a passagem dela. Somente às 2: 52 é que ela voltou a surgir no corredor, voltou suja, suada, entrou no quarto e deitou-se o lado de Murilo.
— Doze minutos. – afirmou ele. – É o tempo que ocorreu entre o teu sumiço na sala e a volta no corredor. Há um ponto cego na sala, pois a câmera instalada ali, pega somente a janela e a porta para a rua. E o que temos atrás? O porão. Foi para onde você foi. Vamos lá ver.
Eles desceram ao porão. Ali eram guardadas ferramentas, tinha uma geladeira antiga, um espelho faltando um pedaço, uma fornalha desativada, uma caixa com livros velhos e outras quinquilharias e um duto com tela para entrada de ar. O piso era de concreto e não havia outra saída além da porta que dava para a sala.
— Será que eu desci para cá? – inquiriu Marta, olhando ao redor.- O que eu fiz naqueles doze minutos?
Murilo olhou para ela. – A resposta do mistério está aqui, no porão. Vou colocar câmeras aqui e veremos o que acontece, caso um de nós ande dormindo de novo.
Marta respondeu com um tremor na voz. – Essa casa está começando a me assustar, Murilo.
***
Marta passou a ter medo de ficar em casa sozinha. Quando voltava do trabalho, examinava as gravações da câmera no porão, para ver se havia alguma atividade paranormal lá embaixo. Mas naqueles quatros dias seguintes, nada aconteceu. Então, no quinto dia, ela acordou de madrugada, levantou-se e saiu do quarto. Mesmo no escuro, caminhou sem esbarrar em nada. Sentia-se acordada e pensava estar sonhando, caminhava sem mesmo saber para onde ia. Parecia que uma força estranha a guiava, ou por outra, a puxava para algum lugar. Chegando na sala, viu o seu destino. Suas pernas a levavam para o porão. Havia uma estranha luz fosforescente lá embaixo. Desceu as escadas lentamente, sonâmbula, sem vontade própria.
Uma claridade nebulosa emanava do grande e velho espelho encostado num dos pilares. Parecia uma abertura, um portal para outro mundo e foi justamente por ali, levada por uma força irresistível, que Marta passou para o outro lado. A luz ofuscou seus olhos e quando conseguiu enxergar normalmente, viu-se em seu local de trabalho, o necrotério. Não havia ninguém na sala de autópsias, tudo estava limpo e em ordem. Marta descobriu que já era dona de sua vontade, nenhuma força a dominava agora. Estava com medo e ao mesmo tempo fascinada com aquele fenômeno.
Resolvendo sir dali, voltar para casa, ela saiu da sala, percorreu um corredor, passando por outras salas de exames, em direção ao vestíbulo. Mas quando chegou na porta de saída, só havia uma parede nua e as janelas gradeadas, e vidraças com vidro fosco. Foi ao fundo do prédio e também não encontrou a porta de saída de emergência. Com o medo e desespero começando a pressionar seu estomago, Marta concluiu que estava presa no necrotério.
Voltou para a sala de autópsia e examinou o duto de ar, constatando que era impossível sair por ali, era muito estreito. Ao voltar-se, percebeu uma claridade escoando pela porta de uma das gavetas. Abrindo, viu que havia uma saída lá no fundo, atrás do cadáver ali depositado a espera de uma autópsia. Tirou o corpo, colocou numa maca e depois entrou na câmara gelada. Impulsionou-se com os cotovelos, mal podia dobrar os joelhos. De repente notou que estava rastejando sobre cadáveres em decomposição, o cheiro da morte penetrou m suas narinas, sufocando-a. Tossiu e quase vomitou. O terror tomou conta de si e ela achou que iria morrer, mas reuniu forças para sair daquele lugar infernal.
Quando chegou do outro lado, deslizou para o chão, caindo sobre folhas secas. O necrotério sumiu. Estava agora numa floresta sinistra. Árvores tortas, cinzentas de galhos e raízes retorcidas. Ficou parada por um momento, decidindo o que fazer, quando notou que as raízes tocaram seus tornozelos começando a enlaçar suas pernas, os galhos se agitaram como garras de um monstro, procurando agarrá-la.
Marta livrou-se das raízes e correu, evitando os galhos que se agitavam à sua frente. De repente, no afã de fugir, acabou caindo numa ribanceira. Escorregou pela grama úmida, uma longa descida até o rio lá embaixo. Mergulhou nas águas escuras, caudalosas. Voltou à superfície, respirando fundo. Visualizando a margem, para lá tentou nadar, mas a correnteza era muito forte, a carregava como uma folha seca. Sua aflição aumentou quando percebeu que algo mais estava sendo carregado junto com ela, cadáveres! Pessoas mortas, todos os corpos que passaram por exames no necrotério.
Marta julgou que morreria. Acima do rumor das águas, ouviu uma voz; — Agarre a corda!
Viu uma mulher na margem, fazendo gestos. – Agarre a corda.
Que corda? Olhando ao redor, viu adiante, uma corda atravessada sobre o rio. Chegando lá, ela ergueu os braços e segurou-se com firmeza. Pouco a pouco, foi mudando de posição até chegar na margem. Exausta, deixou-se cair por terra. A mulher surgiu em seguida. Usava roupas escuras e uma manta preta sobre a cabeça. Seus olhos eram de um azul profundo e brilhante.
— Você está bem? Está ferida?
Marta se ergueu - Estou bem, só um pouco cansada. Quem é você? Que lugar é esse?
— Sou a Sibila, aquela que tudo vê. Este é o mundo do Sono e da Magia, onde seus medos se tornam realidade. Teu marido também está aqui.
— Murilo? Onde?
— Infelizmente não posso dizer, existem regras que eu não devo desobedecer. Você vai ter que o encontrar para fechar a passagem que os trouxe para cá.
— De que jeito posso fazer isso?
— Algo abriu o portal, alguma coisa de onde você vive.
— O espelho que temos no porão.
— Existe alguma coisa especial nesse espelho?
— Era da minha avó. É grande, com uma moldura lavrada, mas está quebrado, falta o canto superior esquerdo.
— Então é isso. Vocês terão que encontrar esse pedaço que falta e com ele poderão retornar ao seu mundo.
— Como faremos isso?
— Não posso dizer mais nada. Tenho que ir.
A Sibila saiu correndo e sumiu nas brumas que cobria um pântano.
Encontrar Murilo? Aonde naquele mundo desconhecido? De qualquer forma, Marta saiu andando. Evitando o pântano, seguiu por uma trilha entre o capinzal. Logo depois chegou a uma clareira onde havia uma aldeia. As cabanas eram baixas, construídas em círculo, com um poço no meio e os moradores eram anões, criaturas pequenas de cabeça grande, robustos e feios. Ao verem Marta, se alvoroçaram, pegaram as armas, machados e lanças. A dominaram amarrando com cordas. Ignorando os gritos dela, eles a levaram para o outro lado do rio, passando por uma ponte estreita para o terreno mais alto, onde havia uma plataforma rochosa com duas colunas de granito em cada lado. Os anões amarraram Marta nas colunas e depois foram embora, falando alguma coisa num idioma que Marta não entendeu. Ali ela ficou, com os braços amarrados esticados, confusa e cansada. Aos poucos, foi percebendo que aquele lugar era uma espécie de altar e ela, a oferenda para algum deus monstruoso, com certeza. O medo começou a dominar a sua razão. Parecia que era o medo o alimento daquele mundo.
O tempo passou, o sol foi descendo no horizonte e quando começou a escurecer, algo surgiu da mata. A folhagem foi afastada, empurrada por uma cabeça pequena, com duas altas antenas, uma carapaça dura, ambarina. Os grandes olhos olharam com curiosidade para Marta. Ela gritou de medo, tinha horror a baratas e ali estava uma barata monstruosa e faminta. O monstro a roeria até os ossos.
Alguém surgiu por trás. Marta ficou surpresa e aliviada ao ver que era Murilo. Ele a desamarrou rapidamente.
— Murilo!
— Vamos sair logo daqui.- disse ele pegando a mão dela e a guiando por entre as rochas, onde o monstro não poderia alcançá-los. Correram até uma distância segura, longe daquele local e da barata gigante. Pararam para descansar ao pé de um rochedo, numa espécie de gruta.
— Esse mundo é maluco – comentou Murilo.
— Como você me encontrou?
— Acordei quando você se levantou. Percebi que estava sonâmbula e a segui para ver aonde ia. Vi que o espelho havia se transformado num portal e quando você passou, passei logo atrás. Quando passei, você tinha sumido e eu apareci no escritório da firma. Não havia ninguém na minha sala. Sai para o corredor e fui passando de sala em sala, sem encontrar ninguém. Quando cheguei na recepção, me enredei numa teia pegajosa. Quanto mais eu tentava sair dali, mais enredado ficava. De repente desceu uma aranha gigante do teto. Achei que ela me comeria vivo. Mas como estava com as mãos livres, consegui pegar o extintor de incêndio da parede e joguei jatos de espuma sobre o bicho. O monstro não conseguiu enxergar e tive tempo de me desgrudar da teia. Depois corri para a escada que leva para a fábrica e em certo momento, me vi em outro lugar. Era uma floresta sombria, coberta por um nevoeiro. Ouvi um rugido medonho e logo em seguida, o vulto de um lobo do tamanho de um homem. Imaginei que era um lobisomem. Não sei por que pensei nisso. Talvez porque fiquei com medo quando assisti pela primeira vez, na adolescência, um filme de lobisomem.
— Aqui os nossos medos se tornam realidade.
— Corri por entre as árvores e acabei saindo da floresta. Estava decidindo para onde ir, quando ouvi teu grito.
— O único jeito de sair daqui é com o pedaço do espelho que está faltando.
— Como sabes?
— Uma mulher me contou.
— Que mulher? Ela não pode nos tirar daqui?
— Não, ela é uma feiticeira, tem poder, mas não pode desobedecer algumas leis que regem esse mundo.
— Onde vamos encontrar o pedaço do espelho?
— Não tenho ideia. Já está escuro e é melhor a gente passar a noite aqui.
— É. Amanhã a gente resolve o que fazer.
***
A noite transcorreu tranquila. Murilo despertou com um reflexo batendo em seu rosto. Já era dia claro. Ele despertou Marta.
— Vamos, não podemos ficar aqui o dia todo.
— Tem alguma coisa brilhando naquela montanha – apontou Marta. – Pode ser o pedaço do espelho!
— Pode ser qualquer outra coisa. De qualquer forma, temos que ir lá ver.
Eles partiram, em direção a montanha. Começaram a atravessar uma planície arenosa quando de repente, esqueletos brotaram da terra. Armados com espadas e adagas, eles perseguiram o casal. Murilo e Marta correram o mais rápido que podiam, ouvindo atrás de si, um chacoalhar de ossos. Depois de uma corrida vertiginosa, se distanciaram da planície e dos esqueletos. Chegaram à beira de um precipício. Um Canyon largo a profundo, impossível de atravessar.
— Tem uma ponte lá adiante – disse Marta. Era uma ponte de madeira e cordas, aparentemente, segura. Eles começaram a atravessar, Marta caminhando na frente, segurando-se nas cordas, evitando olhar para baixo. Para surpresa deles, a ponte terminava no ar, a ponta suspensa no vazio.
— Isso é impossível! – exclamou Murilo e Marta respondeu:
— Tudo é possível num mundo de pesadelos e magia. Mas eu acho que nem tudo é o que a gente vê.
Ela segurou-se firme e colocou o pé na frente, explorando o abismo. Seu pé tocou o resto da ponte que eles não viam. Dali até a outra beirada do abismo a ponte era invisível. Devagar, eles atravessaram o Canyon e chegaram na base da montanha. O pedaço do espelho estava logo adiante, grudado na face rochosa. Quando se aproximaram, o portal se abriu. Marta não hesitou, com pressa de voltar para casa penetrou na bruma fulgurante do espelho e Murilo a seguiu.
Como previsto, eles saíram no porão da casa onde moravam.
— Finalmente! – exclamou Marta.
— Acho melhor quebrar esse espelho – disse Murilo. Ele foi até o armário de ferramentas, pegou um martelo e quebrou o vidro do espelho. Colocou os cacos num balde para jogar no lixo na manhã seguinte. Subiram para o quarto, tomaram banho juntos, alegres por estarem em casa e depois foram dormir.
Na manhã seguinte, Marta acordou cedo para fazer o café. Murilo desceu, pronto para ir para o trabalho. Ele tomou café, deu um beijo na esposa e se dirigiu para a sala. Ao abrir a porta, viu diante de si uma floresta, folhagens, árvores nodosas, altas, cobertas de liquens, o chão atapetado de folhas secas, o ar com cheiro de humo e resina vegetal. Na bruma verde e distante, ecoou um rugido.
— Marta! – gritou Murilo.
Fim