Os mortos cuidam das crianças depois da festa

Era por volta das vinte duas horas e todas as luzes se apagaram. A festa de inauguração do edifício residencial acontecia tranquilamente e parecia que toda a confusão que aconteceu desde o começo da construção tinha, agora, ficado no passado. Até que todas as luzes se apagaram. O som parou. Todos ficaram gritando animadamente como se tratasse de uma falta normal de energia. Quinze minutos depois todas as luzes se acenderam e a festa continuou. Mas faltava algo, algo havia mudado durante os quinze minutos de penumbra e demoraram a perceber isso. Faltava uns sons, umas pessoas correndo entre as mesas, ou chorando ao cair, ou pedindo mais doce… As crianças que estavam na festa sumiram durante o apagão e os pais, ou responsáveis, notaram isso uma hora depois. O sumiço das crianças, na verdade, gerou neles mais liberdade para aproveitar as músicas, as histórias quase fúteis de quase pessoas ricas.

- Agora começa o show, agora começa o teatro, agora a cortina se abre e as pessoas encarnam os personagens que mais lhe convém. Não porque de fato são assim, mas porque o efeito que isso causa nos outros lhes engrandece. Mães e pais e tios, e outros quase responsáveis fingindo que se importam com aquelas trinta e duas crianças sumidas.

Uns gritavam, outros choravam, outros procuravam debaixo da mesa - é impossível terem subido para os apartamentos pois todas as saídas estão trancadas. Alguns pais mais energéticos quebravam os pratos, as mesas, os copos, socavam as paredes. Algumas mães fingiam desmaiar.

-No fundo todos sabemos que estavam felizes - que liberdade é essa que me abraça e me consome. Vou lhe contar uma historinha sobre o esquecimento.

Todas as luzes se apagaram de novo, não na cidade, ou no bairro, ou na rua, mas somente as do prédio residencial - que chamavam de São José Operário. É o fim da festa. É o fim da vida. Amanhã os jornais contarão que todos que estavam bebendo e dançando alegremente neste salão sumiram.

***

Se alguém entrasse no salão viria um amontoado de corpos largados no chão, como se a vida dos que até pouco cantavam e dançavam alegremente estivesse esvaziada. Quando a luz foi embora pela segunda vez, para não mais voltar até o dia amanhecer, e os olhos se acostumaram aos poucos ao escuro, dois pontos de luz azul começaram a circular sobre a sala. Os pequenos pontos se aproximavam das pessoas e as deixavam paralisadas, nem a pálpebra do olho batia. O ar, parecia que…, era pouco. A respiração ficava, a cada segundo, mais difícil. Os dedos dos pés começavam a esfriar e depois o frio tomava conta de todo o corpo. E quando o pontinho de luz azul, estranhamente incomum para aquelas pessoas, tocava a testa de algum dos seres imóveis, eles o viam e ouviam.

-É hora de vivermos uma história.

É hora de todos experimentarem nossas histórias.

E cada um, por sua vez, agora podia se mover, o corpo voltou ao quente, podiam olhar ao redor, estavam em outro lugar, um lugar longe que nunca foram, um lugar seco, o show era seco, as árvores eram secas… Eles olhavam para as mãos e viam que não eram suas mãos, o cabelo era outro, as mãos eram outras, os corpos eram outros, e corriam a procura de um espelho e entravam na casa que lhes parecia familiar e se sentiam bem ali e encontravam uma bacia de alumínio com água e viam o rosto refletido, um rosto que não era deles, e a luzinha azul voltava.

Olha pra mão esquerda… Cortei quando tinha cinco anos. Queria cortar uma manga. Tava com fome. A faca escorregou e entrou na minha mão. Lembro que lavaram. Lavaram com água e sal até criar uma casca que coçava.

E os teletransportados para aqueles mundos queriam falar, queriam pedir pra voltar, queriam saber onde estavam as crianças.

Aqui você não pode falar, a história é minha, nem fazer nada, só assistir e sentir. Eles não te vêem.

E tudo se apagava e eles entravam de novo pela porta da casa.

Agora cada um vestia uma roupa rasgada que usava para tentar se proteger do sol, o corpo banhado de suor, as mãos cheias de calo da enxada, chamou sua mãe, mas ela não respondeu, chamou seu pai, mas ele não respondeu. E cada um ia seguindo o fluxo, sentindo tudo o que aquele corpo sentia, mas sem controle nenhum. E cada um, na sua vez, tirou as botas. Enxugou o suor. Andou até o quarto e viu. Viu os corpos de seus pais lado a lado, dormindo profundamente.

- Naquele dia eu tinha arrumado um empréstimo, eu saí pra arrumar um empréstimo, ia comprar pão, ia comprar carne, a gente ia comer juntos e a fome de dias ia acabar, mas eles não esperaram.

Quando eram invadidos por esses sentimentos queriam sair dali, mas só conseguiam sentir a dor e o amor, e a vontade de ser Deus e ser justo e devolver a vida pra eles e pro mundo. E aquilo era incômodo. Nunca sentiram nada assim. E tudo parece um sonho, os que habitam esse corpo sem nome - vão ao enterro, vendem a casa e a terra, por um preço mais simbólico do que ela valia, pegam o ônibus e vão pra São Paulo, não podiam ficar ali. Ia enlouquecer, mas eu queria voltar… descansar ali do lado deles. Prometo que voltarei. Diziam, mas a voz não era deles. Quando chegam lhes falam da construção do prédio residencial que vai empregar muita gente e vão atrás da vaga e conseguem. E morri um ano, cinco meses, dois dias e quatro horas depois.

Eu também morri, meu corpo, ou o que os vermes deixaram dele, está a uns cinco metros do dele. Quando ele se afastava da testa de alguém, o corpo ficava sem vida no chão. Era minha vez, me aproximava da testa e eles me viram, mas não me conheciam, nem sabiam meu nome e eu os levava até um ontem.

E cada um agora era levado pra um outro corpo, uma outra casa, uma outra família, e enquanto estava sentado na calçada, cada um tinha uma lembrança, que não era deles, mas doía como se fosse, e por dentro gritavam - não quero sentir isso. Lembravam do dia que eu a conheci, de como o amor foi construído aos poucos - e são justamente esses que duram, do casamento, do dia que soube que ela estava grávida, de como a seca chegou e parecia que ia durar anos e eu deveria ir trabalhar e juntar dinheiro e voltar para viver com eles. E lembravam que agora sentia uma saudade de alguém que nunca conheceu, o seu filho, nem irá conhecer, e saudade de uma vida, de um amor, de um dia, de um café quente enquanto olha pro seu amor e pensa - faria qualquer coisa pra lhe ver feliz.

E voavam para a construção do prédio, agora trabalhavam, tinham calos nas mãos, suor no corpo e a força de voltar para quem os espera, pra viver ou para descansar, eternamente. Mas nunca voltamos.

***

O prédio ficava no meio de um parque de preservação. Conseguiram uma licença para construírem no meio da floresta nativa.

- Quanto mais árvores ao redor, maior o valor do apartamento. Amam as árvores, mas as destroem. Como aqueles amores desavisados. Mas outras empresas ficaram interessadas em construir ali também. Não conseguiram.

Mudou- se o governo e a licença foi caçada. A construção, quase próxima do fim, deveria ser interrompida. O governo depois, segundo o decreto, a transformaria em uma residência popular. O dono deveria pagar uma multa que não agradou. Ofereceram, ao assinante do decreto, dinheiro, ouro, terras, viagens, só de ida, com ida e volta. Como preferir. Mas nada adiantou.

O dono do empreendimento tinha que achar uma solução para aquilo e sempre tem uma. Em uma quinta feira, um ano, cinco meses, dois dias e quatro horas depois, chamou todos os operários para uma festa de despedida, mandou dois de seus três filhos irem também. Pediu, algumas horas antes, para outros funcionários lavarem o prédio com gasolina. E naquela quinta-feira, durante a festa, vários canos de gás explodiram e queimou tudo e todos, segundo o relatório. A empresa foi indenizada pelo estado, afinal a empresa de gás era estatal. O dono da construção passou anos dando entrevistas de como sentia a morte dos seus pobres filhos queimados pela injustiça. Os corpos que não puderam ser identificados, de todos os operários e dos dois filhos - o IML demoraria meses para fazer exame de DNA em todos, e sairia muito caro procurar e trazer os parentes dos operários para coletar os dados, foram enterrados numa vala enorme dentro do parque, onde, também, construíram um memorial.

Dedicado aqueles que não sabemos o nome, mas foram amados por alguém, que também desconhecemos, mas, em algum lugar, os espera.

Anos depois a empresa conseguiu uma licença para continuar o empreendimento, que agora se chamaria Edifício Residencial São José Operário, em homenagem aqueles que mataram. Mas diziam que eram em homenagem aqueles que foram mortos… mortos...

E nós… nós, enquanto estávamos sendo devorados pelos vermes, não conseguimos descansar e resolvemos aparecer na festa de inauguração…

Foi nos permitido, não pergunte por quem, pois também não sabemos o nome, a levar cada um que estava naquela festa a passar no nosso corpo o que passamos.

E a parte mais divertida foi o dia da explosão. Quando todos que festejavam e não lembravam de nós sentiram o fogo adentrando a pele e a carne até chegar aos ossos. Eles sentindo a vida esvaindo sem poder fazer nada. Eles sentindo que a vida fútil que levaram, o dinheiro que tinham, ao menos nesse momento não valia de nada, mas sabemos que fariam tudo de novo. Eles querendo falar, mas silenciados, como sempre fomos.

Depois que sentiram como morremos os corpos e as almas sumiram, não sabemos pra onde foram. Mas tomara que haja inferno, seria injusto demais para todos os pobres que não exista inferno…

O nosso inferno é aqui na terra, e os deles depois…

***

No outro dia, quando a polícia chegou, não encontrou ninguém no edifício, nem adultos e nem crianças. O salão de festa estava como se aquilo tivesse sido interrompido, copos com bebidas, comidas nos pratos, a luz voltou e a música também. Tocava uma música leve. Nós que escolhemos. Pompeia redescoberta.

- Saíram pelo parque procurando por alguém mas só encontraram as crianças dormindo, bem aconchegadas no chão, com o semblante que dizia que estavam tendo um sonho feliz.

Pensamos muito nisso, resolvemos dar uma chance pra eles, mas sabemos que serão iguais aos seus pais. Mas todos merecem poder escolher um outro caminho….

Ficamos por aqui.

- E nossos nomes? Não vamos falar?

- São vários, e eles já sabem todos, ou quase todos…

Augusto Aurelio
Enviado por Augusto Aurelio em 22/03/2023
Reeditado em 08/04/2023
Código do texto: T7746157
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