O Poço na Beira do Abismo
Faz mais de quatro horas que o Sr. Lima dirige.
O cano de sua Beretta 96 FS apertada contra a lateral da cabeça do Sr. Faria.
Pegara sua presa no bairro dos Jardins quando o executivo de meia idade acabava de fazer sua meia hora de musculação à tarde.
Lima o para, fingindo pedir uma informação sobre vias e o rende.
- Por quê? - pergunta o Sr. Faria que treme.
Após alguns segundos de consideração o assassino de aluguel responde:
- “Eles” não esquecem.
Seis meses antes o rico empreiteiro fez declarações bombásticas à imprensa sobre o esquema de corrupção envolvendo ricos e poderosos políticos brasileiros.
Houve CPI´s, inquéritos e muita gente acusada e exposta na mídia.
Um ou outro elo fraco da corrente acabou sentenciado.
Com o esquecimento do público em geral chegara à hora da lição.
- O Sr. Fuma?
Trêmulo, o homem de meia idade balança a cabeça negativamente.
- Faça-me o favor, acenda um cigarro e ponha na minha boca. – ordena o assassino.
Desajeitadamente o executivo acende o cigarro e põe na boca do Sr. Lima.
Este aperta instintivamente a arma mais forte contra o crânio de sua futura vítima.
Ainda percorreriam mais duas horas de estrada antes de chegarem ao destino final.
O Sr. Lima é um dos assassinos de aluguel mais solicitados do mundo.
Limpo, frio e impiedoso. Se aceita um contrato a pessoa já é considerada morta.
Está na casa dos trinta anos e seu cabelo comprido brilha em um lindo rabo-de-cavalo.
Com a barba sempre bem aparada, seus frios olhos verdes estão sempre atentos.
Viaja o mundo inteiro atrás de contratos. O último fora na Espanha três meses antes.
Um político do partido de oposição morreu esfaqueado em uma bela praça de Madri.
Um crime atribuído a drogados turcos, concluiu a polícia na época.
Mas o Sr. Lima gosta mesmo é de matar em São Paulo.
Saindo da capital, conhece um paredão de rocha no Vale do Ribeira.
Na beira desse paredão existe um profundo poço.
Mais de trezentos contratos, que é como ele chama os assassinados, havia executado lá.
O Assassino calcula que o poço tenha uns cinqüenta metros de profundidade.
A borda do poço tem quatro grandes pedras, gravadas com estranhos símbolos indígenas.
Ele fica na beira de um imenso paredão de rocha, duas horas de caminhada mata adentro.
O Sr. Faria murmura uma oração. Parece velho e murcho ao lado do Sr. Lima.
Entrando por uma antiga trilha de terra batida o assassino logo para, algema o executivo e camufla o carro contra possíveis olhos curiosos.
O céu está encoberto. Sem lua, sem estrelas.
Olhando a data no relógio de ouro o matador tem um leve sobressalto. É sexta feira treze.
O Sr. Lima quase ri.
Não é supersticioso. Não entende o motivo de sua própria reação.
Tira as algemas do Sr. Faria e começa a guiá-lo pela trilha tortuosa que ele conhece muito bem.
Está bem mais frio que o normal para essa época do ano. Nada que desestimule o assassino.
Uma neblina envolve os dois em seu manto frio.
O assassino acende sua lanterna a prova d´agua para iluminar os trechos mais escuros.
Oito horas da noite.
-Quanto?
O executivo tenta desesperadamente saber o valor do contrato para cobri-lo.
- Isso importa? Eu sempre cumpro meus contratos... Mas, pelo Sr. não ter me dado trabalho, vou lhe poupar ao máximo o sofrimento. – esclarece o Sr. Lima.
Caminham em silêncio até a borda de um enorme paredão de rocha.
De onde estão podem ver o precipício além.
- Se o senhor quiser alguns minutos para rezar eu entendo. – permite o executor.
- Acabe logo com isso! – berra desesperadamente o homem de meia idade.
- Como quiser.
Um tiro seco na nuca e o barulho do corpo caindo sem vida no chão.
Algo que o Sr. Lima nunca se esquece.
Ah! Como é poético e mórbido esse som.
A pessoa não cai simplesmente. Desaba.
E o assassino quase enxerga a alma saindo do corpo pelo furo da bala.
Mas deixando as considerações de lado ainda resta muito trabalho a ser feito.
Ele arrasta o corpo do Sr. Faria até a borda do poço.
Com seu canivete suíço o assassino corta um cacho grisalho do cabelo de sua vítima.
Seu souvenir.
Ele levanta o corpo morto, tentando sujar o mínimo possível seu paletó italiano, e o atira dentro do poço.
Acompanha a queda e o barulho do corpo afundando junto com outros já em adiantada decomposição.
Súbito sua lanterna, que está no chão, se apaga.
- “Maldição!” – pensa com desgosto.
Além da escuridão a cerração parece mais forte e o assassino pisa na lanterna quebrando-a, ao tentar pega-la.
O vento começa a uivar cada vez mais forte ao redor de Lima.
Ele procura se afastar o máximo possível do poço e do precipício.
Vultos atravessam o mato a todo o momento.
Passando ao seu lado em alta velocidade.
Segura a Beretta 96 FS tensamente pronto para qualquer sinal de inimigos.
Ele tenta se guiar na escuridão, mas começa a andar em círculos.
Bate em algo grande e quase dá um tiro em uma árvore.
Ouve ou pensa ter ouvido uma voz.
Um animal passa ao seu lado e é abatido pelo assassino.
Lima está completamente perdido.
Começa a corre sem rumo certo.
A bússola de seu relógio não faz sentido.
Finalmente ele enxerga uma fogueira e se aproxima cautelosamente.
Ele pode sentir o calor do fogo próximo à sua pele suada e fria.
Fora do círculo de luz, as trevas são compactas e cada vez mais penetrantes.
Sobrenaturais.
Lima fica longos minutos de pé. Não ousa se mover.
O mato se abre a sua frente.
É apenas um velho índio com duas grossas toras de madeira ressecadas, uma sob cada braço.
O Sr. Lima acerta três tiros na cabeça do velho.
Ele não se mexe.
É um fantasma.
Os olhos verdes do assassino se esbugalham. O velho índio aponta seu dedo encarquilhado dirigindo impropérios em uma língua desconhecida.
Assustado o homem não se move.
O fogo vai sendo consumido lentamente e quando sobra apenas um fio de luz, o idoso põe um dos galhos reavivando a chama.
Lima continua de pé. A arma apontada firmemente para a aparição.
Os dois se encaram por longas horas.
E o fogo fica fraco novamente.
Com alguns gestos o velho índio orienta Lima a por a outra tora no fogo.
Com um péssimo pressentimento, o assassino continua de pé, sem se mover um milímetro.
O fogo se apaga envolvendo os dois nas trevas da noite.
As brasas só deixam o vulto do velho visível.
A única fonte de iluminação é da brasa de seu pito de barro.
Após mais algumas horas parado, o velho olha por cima do ombro.
Levanta-se e grita mais algumas palavras incompreensíveis para Lima e vai embora.
A luz da madrugada começa a dissipar a serração.
Incrédulo, o assassino se vê bem abeira do abismo, apontando sua arma para o nada.
Qualquer movimento que tivesse feito teria sido fatal.
Solta uma gargalhada insana.
Havia frustrado um fantasma!
Após dar um passo atrás percebe seu erro.
Cai no profundo poço. A arma salta de suas mãos.
Lima grita ao atingir o fundo, sente algo se quebrando, o cheiro pútrido invade suas narinas.
Algo se arrasta entre a lama e os corpos.
Sanguessugas colam em seu corpo.
Mordem-no impiedosamente.
O assassino tenta se agarrar às paredes lodosas do poço.
O peso de seu desespero o faz afundar.
No alto do poço vê o velho junto a borda; os dentes apodrecidos, a boca aberta em uma gargalhada muda.
Seus pulmões começam a se encher de lama.
Uma estranha sensação de dormência toma seus membros quando começa a morrer.
Uma dor aguda.
Lima escuta uma voz conhecida.
- Bem vindo ao Poço.
- Que-Quem disse isso? – pergunta assustado.
- Eu. O Sr. Faria.
- Ma-Mas... Você está morto! – grita o executor.
- Bem vindo ao Poço das Almas Perdidas... – avisa outra voz conhecida.
Muitas mãos começam a agarrar Lima. Ele, o assassino frio e inclemente, agora pede piedade.
Começam a puxar os cabelos do executor.
- Você tem algo que é meu! – grita alguém conhecido.
- E meu!
- E, meu...
- E Meu também!
- Meu!
- Meu!
- MEU!
Ali no poço.
Ali, além da morte.
No poço.
Fim.