O fim daquele pequeno mundo lilás - CLTS 22
O fim daquele pequeno mundo lilás
Temas: Planetas desconhecidos
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Abriu os olhos e viu-se cercada por uma suave névoa lilás, em um lugar que não conhecia. Não lembrava do passado e tinha dificuldade de firmar o passo naquele presente meio escorregadio. Parecia que tudo naquele lugar era revestido pela mesma essência que reveste os sonhos. Se sentia sonolenta e tinha a sensação que tinha passado muito tempo dormindo.
Aos poucos começou a lembrar de trechos do que parecia ser seu passado. Lembrou de pessoas, árvores e muitos cenários diferentes e que aparentemente não tinham conexão, mas misteriosamente em suas lembranças confusas todos esses cenários sempre sumiam e davam lugar a mesma névoa lilás que revestia o ambiente em que estava.
Em meio às lembranças foi tentando juntar as peças de quem era e de onde estava, mas as memórias e as imagens pareciam tão confusas que não conseguia juntar as peças do quebra-cabeça. Depois do que parecia muito tempo começou a entender o que via ao seu redor. Entendeu mais ou menos o que estava fazendo naquele lugar .
Em suas lembranças sempre duas vozes se faziam ouvir, às vezes elas pareciam estar contando histórias e outras falando sobre ela e sobre os detalhes dos cenários. Mas apesar da presença constante, não conseguia lembrar dos rostos. Uma frase de uma dessas vozes foi a chave para entender onde estava:
-Amora, está animada para visitar um planeta ainda desconhecido e que não foi explorado. Todo mundo está aqui para ver o lançamento da nave dela. - uma das vozes tinha falado em meio a um cenário que Amora lembrava só vagamente. A paisagem tinha desbotado das memórias,mas o som tinha continuado.
-Amora.- repetiu para si mesma o nome. Se perguntou o que estaria ocorrendo e se esse seria o nome dela mesmo. Quanto mais repetia, mas tinha a sensação de que esse nome lhe pertencia.
Ao olhar para o lado notou que a nave citada com animação por uma das pessoas em suas memórias , se encontrava quebrada bem perto de onde Amora estava. A moça não se lembrava da queda e nem de como foi parar do lado de fora da nave. E nem lembrava se em algum momento soube que planeta era aquele ou o nome do local de onde tinha vindo. Pensou em ir até a nave para ver se encontrava algumas pistas.
Teve dificuldade para dar os primeiros passos, pois era como se ela estivesse fixada no lugar onde estava e a sensação de sonolência ia voltando. Em alguns locais parecia não ter nada, nem mesmo chão, nesses momentos tinha a sensação de está andando sobre uma estrada feita de névoa. Quando faltava pouco para chegar até a nave,tudo ficou repentinamente mais escuro e ela acabou adormecendo sem que conseguisse controlar.
Acordou sem saber dizer o quanto dormiu. Dessa vez teve ainda mais dificuldade para sair do lugar, mas após o começo difícil conseguiu se mover sem problemas. A primeira coisa que notou após alguns passos foi que a nave tinha simplesmente sumido, não apenas ela, mas as pedras e até mesmo umas montanhas que estavam próximas.
Toda a paisagem do dia anterior tinha dado lugar ao que parecia ser um tipo de floresta, com árvores de tamanhos e cores variadas. Andou para frente, ainda com a mente confusa. Tinha um fio de esperança de que em meio às árvores encontrasse a sua nave ou alguém para lhe ajudar. Tinha a sensação que aquelas pessoas dona das vozes que sempre estavam presentes em suas lembranças estavam por perto.
Depois de andar um pouco, chegou ao que parecia o limite da floresta. Para sua surpresa, depois de certo ponto, por mais que tentasse andar, não conseguia mais sair do lugar, porque era como se uma barreira invisível a impedisse de seguir em frente.
Com as mãos espalmadas, tentava analisar a barreira que estava à sua frente. Ainda estava concentrada nesta ação quando ouviu aquelas vozes conhecidas, elas pareciam vir de algum lugar além daquela barreira:
-A Amora se mexeu! Tenho certeza!
A outra voz disse alguma coisa em resposta, mas ela não conseguiu entender bem o que era, pois o som parecia um pouco mais distante. Ficou alguns minutos em silêncio, apenas tentando as ouvir. Na quietude do momento, notava que as vozes pareciam cada vez mais distantes.
Depois de alguns momentos perdida em seus pensamentos, resolveu que o melhor a fazer seria ir na direção oposta à barreira, pois por mais que tentasse não conseguia avançar. Enquanto andava, notava, com mais calma, os detalhes das árvores e da grama. Em alguns pontos, a grama não passava de traços verdes no chão e, em outros, as folhas tinham cores mais fortes e vivas, com contornos mais definidos. Encontrou pelo caminho, até mesmo, uma grama de cor rosada, e, perto dela, árvores com folhas laranjas ou amarelas. Em cada olhar, tentava entender o sentido daquele planeta.
Andou mais um pouco, e, após passar por um lago com as águas verdes, chegou até uma vila de casas, que, assim como as árvores, tinham cores e formatos diferentes. A mesma névoa lilás da floresta parecia envolver levemente todas as paisagem. Foi nesse local que ela viu os primeiros habitantes locais.
As pessoas pareciam paradas nos lugares em que estavam. Durante o tempo em que andava pelo lugar, não notava nenhum tipo de movimento e curiosa perguntou o que estava ocorrendo com elas, mas não obteve respostas. Além de não se mexerem, as pessoas também não falavam. Amora sentiu como se estivesse em uma floresta em que, em vez de árvores, eram pessoas que estavam enraizadas no chão.
Cansada de ter andado muito e sem saber o que fazer no momento, resolveu dormir um pouco, esperando que quando acordasse as coisas estivessem mais fáceis de entender e que tudo aquilo fosse um sonho. O silêncio do local a ajudou a pegar logo no sono.
Quando acordou, novamente notou que algo estranho ocorreu enquanto ela estava dormindo. Algumas casas da vila e pessoas haviam sumido. No local onde estavam, havia surgido uma névoa lilás mais densa. Ficou em choque devido ao ocorrido e abriu e fechou os olhos na esperança de que as coisas voltassem ao lugar, mas não importava quantas vezes fizesse isso o cenário continuava o mesmo.
Começou a recuar de volta para a floresta, em uma fuga silenciosa, daquela névoa lilás.
-Temos que sair daqui! - ainda tentou dizer para as pessoas que seguiam paradas mesmo diante do ocorrido. As expressões delas seguiam sendo as mesmas do momento em que Amora chegou na vila. Aquilo a deixou mais do que aterrorizada.
Depois de um tempo acabou desistindo e seguindo em direção à floresta. Quando já estava a uma certa distância, olhou para trás e levou um susto com o que viu. Outras casas estavam surgindo no lugar das que haviam sumido, porém era possível notar que se tratavam de moradias diferentes. Os contornos das construções pareciam meio tremidos e as cores não eram as mesmas das anteriores. Tudo ficou ainda mais confuso.
Aquilo a fez querer se afastar ainda mais daquele lugar. Queria ir para bem longe de todas as suas perguntas e também
queria que tivesse algum som naquele lugar além dos próprios pensamentos e da sua voz. Sentiu saudade das vozes misteriosas e decidiu que voltaria para o local onde ficava aquela barreira. Precisava de um pouco de som naquele mundo silencioso dela.
Ao adentrar mais a fundo na floresta, notou que ela também estava diferente em comparação com o dia anterior. Constatar isso a fez começar a correr em direção ao limite da floresta. Não pensaria sobre as mudanças nas árvores, pois seria muita informação para ela absorver.
Chegando no local ficou em silêncio tentando ouvir o movimento do outro lado. Tudo parecia silencioso a não ser por barulhos mais ao longe. Cansada fechou os olhos e apoiou as mãos na barreira.
Enquanto estava com os olhos fechados começou a pensar mais profundamente nas pessoas dona das vozes. Começou a lembrar que foram essas voz que falaram em algum momento do passado que o nome do lugar com árvores era floresta e muitas outras coisas que a ajudaram a reconhecer o que ela estava vendo. Tinha uma vaga lembrança delas lhe chamarem de amiga e de falarem de um mundo diferente.
Ainda pensava nisso quando de repente sentiu seus braços atravessando a barreira como se atravessassem água. Seu reflexo inicial foi os puxaram de volta, mas não fez isso, pois viu ali a chance de sair daquele lugar. Mas por mais que tentasse não conseguia passar o resto do corpo. Pensou que talvez precisasse se concentrar mais.
Ainda pensava nisso quando ouviu o que pareciam gritos de surpresa do outro lado e uma voz dizer:
-A Amora está tentando sair da parede! Eu disse que tinha visto nosso desenho se mexer.
-Temos que ajudar ela. - ouviu a outra voz responder.
Ela ainda estava absorvendo essas palavras quando sentiu mãos segurarem no seu pulso e tentarem a puxar para fora. A barreira tentava a forçar a ficar, mas no fim com a ajuda ela conseguiu sair.
Uma vez fora sentiu o impacto das novas cores e formas daquele mundo, porém nenhum choque foi maior do que o de ver de fora o mundo em que tinha estado há poucos segundos. Viu a floresta e a vila e elas não lhe pareceram tão grandes. Eram o que sempre foram somente rabiscos em uma parede pintada de lilás.
As meninas que a ajudaram a sair pegaram nela como se para confirmar que ela era mesmo real. Uma delas disse:
-Meu desenho ganhou mesmo vida. Estou tão feliz. De todas as bonecas que desenhei você era a nossa favorita. A gente escreveu tantas histórias para você e nunca deixou a mamãe te apagar.
Amora não entendeu o que a menina quis dizer. Se sentia estranha naquele novo mundo. Sentia um pouco de saudade da névoa lilás. Antes a névoa parecia assustadora, mas agora ela parecia estranhamente aconchegante, pois dava a sensação de algo que pertencia ao mundo de onde ela veio .
A outra menina parecia pronta para falar alguma coisa, mas o som de passos a interrompeu.
-A mamãe tá vindo. A Amora tem que se esconder por enquanto.
As meninas praticamente a empurraram para dentro de um lugar que elas chamaram de guarda-roupa . Por uma pequena fresta ela viu a mulher que tinha acabado de entrar no quarto.
-Vocês já desenharam de novo em toda parede? Eu disse que podiam desenhar naquele canto -a mãe das meninas falou apontando para o local da parede onde ficava a floresta - Mas vocês insistem em desenhar na parede toda do quarto de vocês. Todo dia isso. Então não me resta escolha a não ser apagar todos os desenhos. De novo.
A mulher começou a limpar a parede mesmo com os protestos das meninas.
Escondida no guarda-roupa, Amora observava a mãe das crianças limpando a parede e esfregando os desenhos. Logo as árvores começaram a desaparecer e Amora se sentiu triste quando a floresta onde tudo começou deixou de existir. A vila de casinhas foi se apagando casa por casa e as pessoas recém rabiscadas foram sumindo junto, suas figuras imóveis sendo devoradas pelo lilás da pintura original. A mãe somente parou quando não havia mais nenhum vestígio dos desenhos.
Amora notava como a tinta se diluía e escorria como lágrimas coloridas que manchavam a parede. Ela também se permitiu derramar algumas lágrimas. Sentiria saudades daquele mundo. Era um mundo estranho e que ela entendeu só depois que saiu dele, mas que agora conhecia melhor do que ela estava agora. No fundo sentia como se pena segunda vez tivesse pousado em um planeta totalmente desconhecido.
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"Numa linda passarela
De uma aquarela que, um dia, enfim
Descolorirá"
Aquarela-Toquinho