A CORUJA
De volta do funeral, a alameda primaveril banhada pelo sol afastou-me a sensação fria da morte. Por sorte, Blanche não presenciou a cena do caixão sendo baixado ao túmulo e coberto pela terra. Nesse momento, suspensa em meus braços e olhando através de meu ombro, ela se distraía com uma grande coruja pousada na lápide a alguns metros da cova. Quando os homens se aproximaram, o pássaro voou ligeiro sobre nossas cabeças e desapareceu na galharia do velho pinheiro na ala norte do cemitério. Só então a criança voltou ao mundo dos vivos e apreciou o ato final: a lápide sendo depositada sobre o monte de terra solta e circundada pela coroa de flores. O coveiro recolheu as pás e se retirou. O pequeno cortejo foi-se dispersando em silêncio. Entre sepulturas e mausoléus eu pisava com leveza, como se temesse magoar alguma alma.
Já na rua, Blanche desceu do meu colo, segurei-lhe a mão e fizemos a pé o curto trajeto até nossa casa. Eu não conseguia deixar de pensar na defunta, que morrera tão só quanto vivera. Embora avançada em idade, ela parecia saudável. Ia ao médico regularmente. Reservada, nunca mencionou familiares. Vinham à minha memória as tardes em que sentávamos ao portão para conversar e olhar a rua, quase sempre deserta. Quando tomávamos juntas o café da tarde. Ela sempre se mostrara carinhosa com Blanche, que por sua vez, retribuía. Nossas casas ficavam bem próximas no mesmo terreno e ela partira sem que eu tivesse chance de socorrê-la. Nessa noite eu trabalhei até mais tarde e fui para a cama exausta. Tive um sonho confuso com alguém lá fora chamando por mim. Olhei pela vidraça e vi D. Natalina, que se arrastava escada acima, tentando alcançar minha porta. Em seguida ela apareceu na janela de sua casa, sempre chamando por mim, o olhar angustiado e profundo. Os primeiros raios da manhã despontavam, quando batidas mais fortes finalmente me acordaram. Era a locatária, viera me avisar que a vizinha sofrera um infarto. O padeiro a encontrara caída junto ao portão...
— Mamãe, onde você está indo? — Blanche tirou-me do devaneio e endireitamos a rota.
Já em casa, paramos no primeiro degrau de acesso ao alpendre. Lá do alto, ao lado do vaso de antúrio, presente vivo de D. Natalina, uma ave grande, marrom-acinzentada nos observava tão imóvel que parecia empalhada!
— Filha! Esta coruja não se parece com aquela que vimos no cemitério?
Ela riu da minha ignorância:
— Não se parece, mamãe! É ela! Voltou aqui para se despedir.
(Fonte da imagem: internet)