A Lei- CLTS 22

Dizem que o passado de um homem pode persegui-lo até seu último dia, que suas escolhas tecem a rede que o amparará ou o enroscará no ato final de sua jornada por esse jardim de doces amarguras... Como uma sentença lavrada por um juiz imparcial e inflexível; o futuro; sempre presente... Mas nem sempre...

Justo?

Nem sempre...

Passeando em pensamentos, Cícero mal ouvia o filho. As ruas do Centro começavam a se esvaziar às 18. Um formigueiro. O carro quebrado que só estaria pronto no outro dia os faria andar algumas quadras antes de poderem ir para casa depois de um longo dia de poucas vendas. A loja já acumulava algumas contas atrasadas, os consertos de celulares estavam em queda. Assim como a maioria dos negócios lícitos.

- Então, pai, no final das contas, nem o Ricardo nem eu pegou ninguém. Só gastamos e voltamos pra casa lisos. Mas eu tenho certeza que a Angela tava no papo... ela só não tinha percebido! - o rapaz gargalhou.

- O problema é que vocês conversam demais. “POUCAS IDEIAS” é um lema atemporal. Foi usando ele que conheci sua bendita mãe, Cabron.

- Pô coroa, fala sério, ela me contou que se apaixonou mesmo quando o senhor levou ela pra passear de “Brutossauro”...

Os dois riram.

Mais de 20 anos haviam se passado e Cícero ainda se impressionava com o rumo inusitado que sua vida havia tomado. Havia construído uma família quando praticamente todos os amigos de infância tinham sido assassinados sem sequer completarem a segunda ou terceira década. Fugira da criminalidade não sem antes deixar uma parte de sua esperança enterrada em profundos abismos... um só arrependimento...

“Não quero sofrer mais...”

O Homem não mudará. Nem o sofrimento.

A dor, refaz...

Os tempos agora eram outros, e a única coisa que o confortava era saber que só ele sabia. Daquela época só ele restara. O pingente de prata já estava há 28 anos em seu pescoço, como um lembrete constante de que o “Cíço Tripa” já não existia. Mas por que a culpa nunca o deixara?

Ele era uma criança, crianças não sabem o que fazem...

Assim como os bons pecadores?

- Eae coroa, será que vai dar tempo da gente passar lá no “Coxão da Tula”? Tô morrendo de fome e a mãe disse que queria torta salgada pra comer com café, pra variar. Já disse a ela que muito café faz mal, mas ela não ouve.

- O que faz bem mesmo deve ser cerveja, né, engraçadinho. Deixe minha preta com o preto dela. Onde fica esse “Coxão”? Se for muito longe vamo pra casa comer cuscuz. Vou só passar no Zé Manteiga pra pegar umas peças.

- Tá pertinho, do lado da Catedral da Luz.

O lanche foi rápido e as coxinhas mal deram pra palitar os dentes, mas ver a expressão distraída do filho enquanto emendava história atrás de história ainda era algo que secretamente fazia Cícero agradecer. O rapaz, era de longe mil vezes mais ingênuo do que ele havia sido quando também tinha 17, o corpo magro era quase um clone do seu antigo, a aparência sem atrativos e os cabelos cacheados e crespos era também seu legado, mas o coração era a parte mais antagônica. Os espaços destinados à malícia e maldade estavam indubitavelmente ocupados por alegria e generosidade. Seu filho era... bom. Ninguém jamais o faria mal... não enquanto ele vivesse... porque ele era seu pai... o fruto, salvara a árvore...

“Não quero sofrer mais...”

Pai e filho atravessaram a avenida por entre pessoas que seguiam apressadas. A Catedral da Luz, na esquina em frente à praça Ganga Zumba, era ponto turístico de Maceió, com sua imponência arquitetônica se erguia em torres que passavam dos 50 metros, seus enormes sinos badalavam com estridência suficiente para serem ouvidos a quilômetros.

- Foi aí que cê se batizou. Cê tinha 7 anos.

-Pode crer. Mamãe sempre me mostra o álbum do dia. O senhor tava mó presença com aqueles dreads estilo Bob Marley. Que tal a gente atravessar e tirar uma foto lá pra Maria do Café?

“Tudo pra ele é isso... Brincadeira. A vida. Viver. Uma brincadeira. Só que ela é um jogo, cruel... Cabron”, Cícero sentia-se estranhamente tomado por um instinto diferente de paternidade, um sentimento que ainda não havia experimentado. Era como um receio...

De quê?

Quando chegaram nas escadarias colossais por onde pessoas caminhavam em grupos para a missa que começaria, Cícero viu um grupo de mulheres vestidas de branco, quase uma centena, que seguravam cartazes com fotos diversas de pessoas, uma faixa por trás delas com enormes letras dizia “DESAPARECIDOS”. Outra, “MÃES ETERNAS". Cantavam hinos ao som de um violão tocado por uma delas. Inconscientemente, Cícero caminhou em frente a multidão ao lado do filho que mal notava ao redor com seu celular na mão, enquanto via os rostos congelados daqueles que não voltaram para suas casas... viu senhoras idosas e jovens com lágrimas nos olhos que ainda tinham a esperança no coração de encontrar os seus, vivos, ou mortos... Eles só os queriam, saber de seus destinos, do fim que lhes impuseram. Imaginou-se entre eles, sentiu o cheiro da saudade que exalava. Sentiu medo. No meio delas, sozinho, um único homem, idoso, segurava um cartaz feito com cartolina verde, onde uma foto com fundo branco mostrava um jovem sorridente, seus longos cabelos esvoaçavam enquanto ele batia palmas. Ao lado dele, a foto de um instrumento, um berimbau, e um nome...

Cícero travou. A catedral era o pano de fundo daquele momento de contraste. Sua pressão caiu, a garganta secou e foi como se o que tanto temia finalmente tivesse se erguido diante dele como um carrasco que portasse uma lâmina...

“Não quero sofrer mais...”

- Meu filho... adiante pra casa, chame um Uber e vá na frente porque eu preciso... resolver um negócio. Lembrei agora. Vou ter que voltar lá no Beco das Artes, esqueci de...

- Oxi, qual foi coroa? O senhor tá meio estranho... A gente num ia pra...

- Cabron, por favor. Vá pra casa e diga a sua mãe que eu chego já. Faça o que eu tô pedindo e num me pergunte nada não. Lembrei que preciso resolver uma coisa rápido, já chego em casa. Tranquilo? – Cícero se esforçou para soar convincente, a testa suando.

- Tá, coroa. Mas vê se não volta pra loja. Fazer hora não vai vai fazer dinheiro não. Pede aí o carro que eu tô sem crédito, quer dizer, tô jogando.- o rapaz parecia contrariado. Cícero notou as sobrancelhas baixas, como as dele quando algo não saia como planejava e foi como se estivesse se olhando num espelho.

Depois que o carro partiu levando o filho e sua sacola de mangás recém comprados no sebo do Aragão e mais algumas verduras para a sopa do café da manhã, numa viagem de provavelmente não mais que 20 minutos, Cícero voltou pelas escadas de mármore movido por uma sensação que embora lhe oprimisse, o acariciava como uma chance única.

“Quase trinta anos...”

Do nada, seu passado...

Presente.

Encontrou o senhor grisalho conversando com outras duas senhoras num dos pilares próximos a entrada da catedral. Quase o perdera de vista.

- Boa noite, senhor. Teria um minuto?

O olhar do homem o percorreu numa fração de segundo. Os olhos verdes selaram secamente o pavor que se erguia em seu íntimo... eram os mesmos olhos... mas Cícero estava decidido. O velho segurava um terço com as duas mãos e sua expressão carregava o leve sorriso de quem sabe muitas coisas.

- Com licença, Dona Walmira, Dona Sabrina. Nos vemos mais tarde. – o senhor beijou delicadamente as duas senhoras na testa.- Boa noite, claro que tenho. – olhou Cícero com a cabeça um pouco mais inclinada para frente - Não lembro de você, filho. Conhecia o Rafael? Ele era professor de capoeira...

Cícero sabia que o que estava pra acontecer precisava acontecer porque não havia nenhuma outra explicação para que seus passos o tivessem guiado até ali, de forma tão improvável... que chegava a parecer ficção. Mas ele acabaria com aquilo. Afinal, se tornara um homem. Pai. Só Deus poderia o julgar...

E faria alguma diferença?

- Senhor, ainda o espera? Esse tempo todo?

O olhar do homem inclinou-se um pouco para baixo e Cícero percebeu que ele observava fixamente o pingente prateado que se destacava em sua camisa vermelha. As esferas claras que se tornavam um olhar, brilharam de forma diferente... o que irradiava do seu leve sorriso sumiu num piscar, e retornou com uma súbita profundidade de intenções. Ele, o reconhecera...

- Esperar, não. Saber, isso sim. Você sabe, não é? Posso sentir... Quer falar algo, não é? Graças a Deus... Notei quando me viu. Podemos sentar naquele banco, tem uma ótima visão da praia e do porto. Rafa adorava. Vinha sempre depois dos treinos. Daí então, se é que posso lhe pedir algo sem nem saber sequer seu nome, você pode me contar o que realmente houve. E o meu perdão, já é seu. Sou Juracir, pai do Rafael, desaparecido há 28 anos, com apenas 21 anos de idade. Meu único filho... meu eterno filho... – o senhor falou de maneira tranquila, os olhos faiscando algo indefinido.

As pernas de Cícero tremiam quando eles se sentaram no banco rústico ao lado da magnífica construção, e realmente a vista era de tirar o fôlego, navios transatlânticos flutuavam num mar prateado, com as luzes do crepúsculo a refletir em nuvens rosadas e imóveis ao fundo. Os telhados do Bairro do Garnizé de alguma forma também brilhavam, e isso parecia tornar tudo irreal.

- Senhor – Cícero retirou a corrente do pescoço e em seguida o pingente - isso precisa estar com você. É seu.

O pingente prateado em forma de berimbau cintilou nas mãos magras do homem. O terço ficou sobre suas coxas enquanto ele observava a peça por diversos ângulos.

- Fui eu mesmo que fiz pra o meu garoto, quando era ourives lá em Comendador. – o velho pôs as mãos no rosto - Fale só como aconteceu... por quê... só isso... O resto, pode ficar entre você e Deus. Só quero a verdade. A verdade. Se quiser falar, não se preocupe. Justiça, só a do Altíssimo, mais nenhuma. A Lei, é Dele...

“A Lei...”, pensou Cícero, “mas não a Justiça...”

- ... e a vingança também... a mim só resta seguir... e perdoar... - o homem completou.

Alguns minutos se passaram. Uma eternidade. Ambos se olhavam. Antes de começar, Cícero chorou... Em silêncio. Parte dele sabia o porquê, parte ignorava o risco do que em instantes revelaria. Desligou o celular, não queria ser interrompido.

- Seu filho era bom, Seu Juracir? – Cícero perguntou enquanto assoava o nariz. As lágrimas tinham desfeito sua aparência pesada e ele parecia mais leve.

- O melhor...

“Não”, Cícero pensou, “o melhor deles acabou de ir pra casa...”

- Se posso perguntar mais uma coisa... a mãe dele, sua esposa, acredito, ainda é viva? Me parece que ela não est...

- Morreu faz 3 anos. Sonhando com esse dia. Câncer. O que me contar, contará pra ela também...

- Amém... Eu nunca falei sobre isso... senhor, mas... seu filho, Rafael, eu... eu o matei... senhor...- Cícero falou. Os pés moviam-se desajeitadamente, tentando disfarçar o tremor que o tomava aos poucos.

O velho baixou a cabeça resignado. O olhou profundamente e anuiu para que continuasse, em seus olhos parecia haver algo como... bondade... compaixão. Ele tocou a mão de Cícero e lhe sorriu...

Os sinos da Catedral da Luz soaram sete vezes.

***

O ano era 1995. Comendador Negromonte vivia uma das piores crises de segurança pública de sua história, com recordes nos índices de homicídio graças ao confronto diário entre duas facções criminosas rivais, a “Estrada de Barro” e os “Muleke da B”, ambos envolvidos por sua vez com as principais do país, “Comando Vermelho” e “PCC”. Chacinas em bares, corpos boiando em riachos, prostitutas decapitadas, policias fuzilados, apedrejamentos, linchamentos e o aumento excessivo de roubos entre outras barbaridades eram rotina na vida dos moradores da segunda maior cidade alagoana. Tudo com base no tráfico de drogas, na disputa por pontos de vendas específicos, na corrupção política, implantação de milícias, desemprego e todas as mazelas sociais naturais de nossa próspera terra. A fórmula para a fortuna não havia mudado muito desde a colonização. O governo FHC teorizava uma maneira de reduzir a criminalidade, porém os números só cresciam. São Paulo liderava o ranking de mortes violentas, mais de 4.000 em apenas um ano, e Comendador Negromonte se esforçava com afinco para superá-la. O número de desaparecidos triplicara.

Cícero tinha 8 anos quando o pai foi morto por causa de uma aposta na sinuca, e 10 quando a mãe foi embora sozinha com um homem que nem chegara a conhecer. Ficara sob custódia de uma tia alcoólatra que não conseguia sequer cuidar de si nem de seus 2 filhos, sobrevivendo como um cão abandonado, vendendo amendoins e torresmos pelas noites com os primos também menores, até conhecer Ticão num campo de futebol onde sempre ia ao matar aulas. Ele perguntara ao garoto se ele não queria ganhar um trocado pra levar uns quilos de “massa puba” pra tapioca e entregar no bar do Alemão... já que ele já tava com os amendoins e os ovos de codorna, era só levar de boa... e o garoto prontamente aceitou quando viu aquele dinheiro novo com uma onça a observá-lo. Talvez com ele pudesse comprar pão e salsicha e talvez também não fosse xingado e beliscado pela tia, o real valia mais que o cruzeiro, era o que diziam.

O Alemão havia se espantado quando percebera que o garoto havia passado por 3 guarnições montadas estrategicamente entre duas favelas com 1 kg de cocaína entre 4 de massa puba, como se fosse um fantasma, conseguindo até vender alguns pacotes de torresmo para alguns policiais no caminho, inocente do que carregava, e daquele dia em diante Cícero passaria a ser chamado de “Cíço Tripa”, mais um vapor, só que não descartável. Aos 12 vendia maconha e crack e atuava como olheiro, alugando sua infância pelo preço mais baixo, sem que tivesse consciência disso, já que pensava com a barriga. Não demorou muito até que fosse morar com outros “meninos” de Ticão na Vila Madalena, bairro quartel da facção.

A única coisa que ainda o fazia parecer um menino qualquer era seu amor pela capoeira. Começara na escola dois anos antes e já era requisitado no pandeiro e no berimbau em todas as rodas, amava saltar mortais e esses eram os únicos momentos em que era possível ver sorrisos em seu rosto. Na capoeira, ele não era o Tripa, era o Voador.

Naquele mês de Dezembro, Cícero já sabia manusear o revólver 32 que ganhara de Ticão com maestria, já havia atirado em árvores e garrafas, mas não em pessoas, nem queria, embora já tivesse visto dezenas de homens serem torturados e fuzilados por Ticão e seus comparsas em canaviais e matas na fronteira de Comendador Negromonte com Três Escudos. Na primeira vez que viu alguém morrer, a urina escorreu pelas pernas quando Mata Galo arrebentou a cabeça de um homem com uma marreta e depois o degolou enquanto ria de um outro que, amarrado, gritava por Deus a plenos pulmões, enquanto Pino e Urso apagavam cigarros em sua cara inchada de socos e chutes. Ticão o obrigou a olhar quando Urso aproximou a calibre 12 na têmpora do homem histérico e puxou o gatilho... e aquela lembrança ainda continuava viva em Cícero décadas depois.

-Esses cú são tudo pilantra, Tripa. Essas peste, esses verme.- cuspiu nos cadáveres mutilados - Num pode ter pena não, tem que botar pra fuder em traíra, x9, estuprador, talarico e miliça fila da puta. Você é família, é “Muleke da B”, e tu nunca vai querer passar por isso, né? De pequenino que se torce o pepino. Se tu vacilar, vai pra vala também. Agora, cê pode cavar uns buracos pra enterrar essas merda, 100 conto cada buraco a partir de agora. – falara Ticão, que na época disputava com Valério Capeta o domínio da cidade. Maceió pertencia a Mago Léo, que de dentro do presídio coordenava Ticão Matador.

E assim, Ciço Tripa havia se tornado o coveiro oficial de Ticão. Cavava covas rasas enquanto os “meninos” de Ticão cheiravam cocaína e bebiam cachaça entre escárnios e xingamentos direcionados a vítimas geralmente algemadas e espancadas até perderem qualquer força de reação, inimigos retirados de dentro de casa ou sequestrados enquanto iam ao trabalho, sob ordens de Mago Léo. Havia visto mulheres serem mortas também por terem mudado de companheiros, ou por não aceitarem se relacionar com algum membro da facção. Os que não podiam informar nada de válido, mas eram “decretados”, julgados e sentenciados à morte pela facção, geralmente eram assassinados em qualquer lugar, só os mais odiados, quando pegos, eram levados até a Mata da Oncinha, ou do Galo, para serem trucidados até saciarem a vontade do Mal que habitava aqueles corações. Cícero aprendera a ignorar o sofrimento dos homens que eram mortos porque não havia outra escolha. Sua vida também dependia disso.

Na véspera do réveillon, um domingo, Cícero estava jogando capoeira de manhã numa praça próxima do sítio de Ticão, quando ele o chamou e disse que tinham trabalho. Era assim que se referia a execuções.

- Se prepara que hoje é doidera. Ordem de cima, tem até câmera pra filmar pra mandar pro patrão em Maceió. Assim que chegar na Oncinha, tu cava 4 vala.

Era por volta das 17 horas quando os homens de Ticão adentraram na mata fechada trazendo 4 homens ensanguentados, amarrados e com fraturas visíveis. Sob a luz das lanternas Cícero pôde ver que eram três jovens e um velho. Um deles, o chamou a atenção de imediato... era alguém que ele conhecia... mas de onde... o jovem cabeludo estava tão desfigurado que só algo além da aparência poderia fazer com que Cícero sentisse que sabia de quem se tratava... foi então que ele lembrou se tratar de um professor de capoeira que conhecera em seu terceiro batizado... sim... quando ganhara a corda azul... não lembrava seu nome mas lembrava que ele havia dito que ele era bom, e que ele voava alto como um gavião... afagou-lhe o cabelo e disse que deixasse crescer e fizesse uns dreads como os dele, que ficaria massa...

Mas agora ele estava ali.

E seria assassinado. Executado friamente por algum motivo banal.

Os homens foram filmados sendo interrogados por Ticão, que segurava uma pistola e uma lanterna. Socos e chutes eram desferidos a todo tempo, o professor de capoeira Rafael era o único que não estava ali por envolvimento com o tráfico ou com a milícia. Ele estava ali porque havia sido visto com uma mulher que seria ex companheira de Dentinho, braço direito de Mago Léo, que havia sido preso e transferido para um presídio no interior do Estado, e ordenado que Rafael fosse torturado, que todos os seus dedos fossem arrancados... castrado ainda vivo... que seu membro mutilado fosse enfiado em sua boca antes de ser morto com um tiro de 12 que deveria ser disparado no peito. Ele era talarico. Os demais podiam ser amarrados em suas valas e executados a pistola, um de cada vez, esperando que cada vala fosse preenchida para que os que fossem executados na sequência tivessem mais tempo para sofrer...

Passava das 22 quando o terceiro homem foi executado. Só Rafael, jazia amarrado pelos pés e mãos enquanto aguardava seu destino trágico se concluir, sem saber o motivo já que não havia tido envolvimento nenhum com a mulher em questão. Dera uma carona de moto a ela uma vez e isso foi sua sentença de morte.

Ticão informou que iriam voltar a Comendador pra comprar bebidas e cigarros antes de terminarem o serviço, além de amolar a faca que usariam na mutilação. Deixaram Cícero sozinho no meio da mata ao lado de um homem amarrado e 3 covas récem fechadas e uma quarta aberta aguardando. Seria a primeira vez que Cícero não veria os fogos. Só mortes... o ano todo. Nenhuma luz brilhando no seu céu... só dor... sangue... desespero... e ele só tinha 12 anos...

Foi quando aconteceu.

Rafael, em sua agonia, não havia reconhecido o menino que meses antes afagara o cabelo, e só gritava...

“Não quero sofrer mais...”

Sem parar... chorando... como uma criança... chamava a mãe... o pai...

E ninguém viria...

Só mais dor e sofrimento. Quando voltassem, aquele jovem viveria o inferno na pele, e não havia possibilidade quase nenhuma de que viesse a sair vivo da situação em que se encontrava, e ele sabia disso...

Tomado por súbita tristeza e desespero, como se nunca tivesse visto aquilo antes, Cícero se aproximou do jovem moribundo e atirou no meio de sua testa...

E fim.

Sem mais sofrimento...

“Você é bom...”, Rafael dissera...

Quando Ticão e os outros homens voltaram e viram Rafael morto olharam para Cícero e riram loucamente. Só reclamaram que teriam que cortar ele morto, mas que o Dentinho ia entender quando dissessem que um pivete que tinha terminado de fuder o talarico... Mas antes de enterrá-lo, Cícero retirou-lhe o pingente...

***

Cícero não fazia ideia do tempo que levara pra terminar sua ladainha, que também era uma confissão, mas quando concluiu, o velho só o observava. Em silêncio. Mudo como uma estátua, permanecendo assim até que Cícero se levantasse e saísse sem olhar pra trás, descendo as escadas como se um cão o perseguisse.

Quando chegou à avenida, ligou o celular e uma enxurrada de mensagens da esposa inundou seu WhatsApp, eram mais de 100 mensagens e já passava das 21. Abriu a conversa e a maioria das mensagens dizia respeito da não chegada do filho, Rafael, em casa... sobre ligar e ele não atender... sobre ter ouvido falar que tinha tido acidente na Avenida Fernandes Lima... que ela já estava desesperada sem saber dos dois...

Cícero tomou uma moto-táxi e a primeira coisa que o homem falou foi sobre o engarrafamento por causa do acidente entre uma moto em fuga e um carro de aplicativo que tinha acontecido uma hora atrás, que o motoqueiro tinha roubado a mulher de um policial e uma viatura do BOPE havia saído em perseguição, com tiros e tudo mais até que num cruzamento, a moto havia se chocado com o carro, matando um jovem passageiro que não tinha culpa de nada... que ele tava com as fotos e um vídeo...

Quando o homem abriu as imagens e os mangás apareceram espalhados por cima de um jovem com o pescoço quebrado... que sangrava pelos olhos... antes que os olhos de Cícero derramassem a sentença em forma de dor... uma frase o atingiu como um disparo de 12...

“A Lei, é Dele... e a vingança, também...”

FIM

"Obrigado por vir até aqui..."

TEMAS: TRIBUNAIS\JULGAMENTOS

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 04/03/2023
Reeditado em 17/03/2023
Código do texto: T7732285
Classificação de conteúdo: seguro
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