O sapo equilibrista - CLTS 22

Estava chegando a noite, de repente surgiu das névoas um grandioso navio feito de madeira e velas enormes, se aproximou da costa e de lá uma pessoa pulou dando uma pirueta, caindo perfeitamente na superfície. Muita gente, já assustada pela rara embarcação, ficou atônita para descobrir quem se tratava. Se via que era um homem, de corpo bem feito e uns cabelos meio longos até a nuca. Ele observava o navio ir embora, com uma feição cheia de si e as mãos cerradas na cintura – apesar da estranheza de todo o acontecido, as pessoas olhavam para ele com certa admiração, aquela imagem parecia uma pintura de um herói mítico. Então, elas discutiam discretamente quem deveria ir recepciona-lo, e, quando finalmente alguém decidiu se chegar, o homem iniciou uma sequência de mortais e só parou alguns minutos depois, diante de uma moça que vinha da floresta com uma cesta de gravetos. Abraçou sua cintura e carregou a mesma até uma casa abandonada. A mulher não conseguiu protestar, ficou com os olhos esbugalhados sem entender o que se passava, mas quando foi posta sobre uma cadeira e viu seu sequestrador arrumando o casebre, ligeiramente se aliviou, abandonando as más cogitações, pois sentiu algo naquele homem que parecia dizer: “te escolhi como minha esposa”, e, veja só, ela era um pouco carente, desesperadamente carente... tanto que impediu aquele povo, outrora curioso, agora revoltado com paus e porretes, de surrar o “tarado”; ficaram sendo marido e mulher.

Com essa sucessão de esquisitices, o indivíduo tornou-se um personagem suspeito: ninguém dizia gostar dele, apesar de, no fundo, continuarem o achando um ser original; diziam ser, também, um vagabundo (e isso, de certa forma, era uma injustiça, pois antes mesmo dos pescadores saírem ele já estava acordado, a postos no telhado de sua casa, na ponta dos pés, bem na quininha, procurando um fiapo de palha que não prestasse, desse jeito ficou sendo um trabalhador de inutilidades). Porém, que fiquem todos sabendo: nunca aquela jovem felizmente raptada passara fome nas mãos dele – tudo o que conseguia era com o próprio esforço, não se sujeitava a ninguém. E mesmo que precisasse, a coisa era dificultosa: ele não falava a língua dali. Se comunicava com a mulher via mímica e nunca respondeu ninguém sobre de onde vinha et cetera. Sua comunicação era ruidosa. Gritos, gemidos, roncos. Aos pouquinhos, ganhou simpatia das pessoas – e a moça sempre se mostrava feliz com ele (ora, claro que ela não podia ir à rua que a gente ia pra cima, saber mais sobre seu marido). Vocês querem saber o nome dele? Se nem a esposa sabia... só sei dizer que a mania de ficar pulando e se pendurando nas alturas deu a ele o apelido de sapo equilibrista, fica então o nome: Sapo.

E o nome combinava com o lugar: tinha o espírito pantanoso. A terra era escurosa e com jeito movediço, tudo ali era um pouquinho mais escuro e pegajoso. O ar parecia turvo de verde ou cinza, o próprio lago lá tinha esses tons. Era um vilarejo, apesar de tudo, agradável. Pântanos são tranquilos. Tinha o povoado, que era riscado de chão batido e as casinhas simples em volta. Povo muito pacato, quase sem graça demais para aquela figura. A vida ali seguia tranquila – e até mais alegre com o tal do Sapo, fazendo tudo tão estranhamente cômico.

Passadas algumas semanas, o Sapo, ao acordar, pareceu estranho à mulher. Ele queria dizer algo, olhava em seus olhos, e então fez uma apresentação com as mãos. Depois de muitas tentativas ela descobriu que o marido queria um filho, aí se perturbou, a ideia de dar à luz lhe aterrorizava, para piorar tinha o medo de negar-lhe a vontade e perde-lo. Ficou calada, novamente de olhos arregalados, sem dar um pio, olhando para o nada, com um turbilhão na cabeça. O Sapo pareceu demonstrar segurança (mesmo com os problemas, tinham uma sintonia inacreditável), olhou para ela e pediu que esperasse. Foi voando até a floresta (gostava de ir lá para pensar), por coincidência lá encontrou um garoto... pelas vestes mais cobertas, de lugar frio, se via de cara que era estrangeiro. Era o vendedor de especiarias. O coitado vinha de outro país a pé, de canto em canto vendendo aquilo, depois tinha que voltar e não lhe davam um tostão (os pais diziam que roupa, casa e comida já era demais e ele tinha de agradecer muito).

- O senhor gosta... – abriu e boca e calou na mesma hora, o Sapo saltou até ele e ficou cara a cara de modo que até bateram as testas. Seus olhos cresciam cada vez mais, e cresciam, cresciam, cresciam até que o menino já estava quase caindo, com as pernas tremendo tamanho esforço. O homem, então, se endireitou, pareceu satisfeito e agarrou o menino como uma ovelhinha. Talvez a coragem que aquele rapaz demonstrou com um esquisito o agradou. Agora veja a cena: um homem carregando nos ombros um garoto desesperado no meio da floresta. Ele tentou se debater, mas o Sapo segurou uma de suas pernas com uma mão e os dois braços com a outra, restaram os gritos. Todo mundo se admirou quando viu a coisa acontecer no meio da praça; e os temperos deixavam um rastro colorido e cheiroso no meio do caminho para os mais espertos pegarem. O menino só foi ao chão novamente quando chegaram a casa. A pobre esposa ficou louca quando viu aquele garoto, e teve ainda a surpresa de ver que a pretensão de Sapo era torna-lo filho do casal; adivinhem, ela não teve muita escolha. Facilitou muitas vezes as tentativas de fuga do rapaz, entretanto Sapo sempre (sempre mesmo) pegava-o com a boca na botija. A população nem ligou tanto, por mais que a cena tenha sido muito espalhada entre todos (e deve ser algo grave em qualquer lugar comum do mundo), essas coisas já entraram na cabeça deles como normais, vindas de quem vinha. A mulher, na casa, em pouco tempo se acostumou à ideia e já tratava o rapaz com certa afabilidade, e não tardou para que ele fizesse o mesmo, pois era a única pessoa dali com quem confiava.

Demorou alguns dias para ele aceitar a ideia de que agora aquela era sua família. A coisa começou quando ele desistiu de fugir e passou a refletir melhor a vida e como ela andou a ponto de o fazer ser sequestrado por um parente compulsório. O caminho nem foi tão doloroso: sua família biológica já não era lá aquelas coisas, não podia dizer com toda as letras que os amava, porque desde pequeno a relação entre eles era muito mais de patrões e empregado, vivia de fazer o que mandavam, então se fosse para viver um parentesco falso... a coisa não alterava tanto; e também não nutria nostalgia por sua terra natal já que vivia como vendedor viajante, mal aproveitou a vida por lá - que saudade tinha? Com esses pensamentos, a coisa pareceu mais tranquila para ele, e assim dias depois resolveu viver um lar que nunca vivera – foi questão de tempo para os afagos com a nova mãe virem e a figura de Sapo se tornar a de um pai, com as caçadas que acompanhava.

Eu conto essa história e fico pensando se quem se depara com ela consegue levar a sério... se acha ela estranha por demais para ser ao menos levada em consideração. É uma pena que estejamos todos numa realidade tão esmagadora que uma pequenez destoante dela seja algo tão risório assim, mas que posso fazer? Foi assim que me contaram, além: me mostraram. Eu caminhava por aí, caçando ideias até que me perdi. Aí numa alameda escura, em plena tempestade, me surgiu uma pessoa. Conversamos um bocado, parecia ser alguém muito gentil; no caminho foi me contando muita coisa até chegar a essa que vos conto agora. Eu mesmo, na hora, não quis acreditar... e ele percebeu minha incredulidade. Veja que ele parou a caminhada e olhou no fundo da minha alma, parecia até que nós brilhávamos ali. Ele perguntou e eu disse sim, então me pegou pela mão e me levou para esse vilarejo ao rasgar um véu invisível no ar. Passeamos por aquelas ruas, visitei sua casa, olhei o lago... parecia um espelho. Se você acha que essa história é estranha, eu te peço perdão, ela ficará ainda mais.

Certa tarde o nosso Sapo fez um furdunço. Ele apareceu gritando como um louco (não que já não fosse considerado assim). Todos correram para o socorro e se formou um monte de gente ao seu redor. Penava para beber água devido a sua síncope. E todos ferviam por dentro, porque parecia que ele iria, enfim, falar algo... mexia a boca como quem se prepara para o ato e arfava, era uma agonia geral para vê-lo dizer, tal como um bebê e suas primeiras palavras.

- É agora!; - Com certeza, de hoje não passa!; - Não há dúvida que ele vai falar...; - Isso aí tem jeito de quem vai falar e é coisa bonita!; - Com certeza, se não for um poema vai ser uma declaração.; - Pra ele tá assim vai bem dizer que tem um exército vindo para cá...

E todos bem atentos, era a hora. Ele tentava, mas tinha muita dificuldade: - Cu... Cu...

- Mas cu!?

- Cu... Cuidado... Cuidado com as moscas!

Bzzzzzzzzz! Uma varejeira pousou no toco que ele tava encostado.

- Ah, pelo amor de Deus...; todos saíram. O episódio, mais tarde, virou uma piada quase folclórica.

Na casa, chegada a noite, Sapo apareceu com algumas coisas para o jantar – o acontecido o atrasou, então sua esposa teria de improvisar a comida. Como faltava lenha, pediu para que o filho fosse buscar alguns gravetos na floresta. O garoto pegou o machado e foi pisando em sorrisos sinceros – a mulher ficava muito alegre ao ver que o rapaz, de uns 15 anos, não tendo obrigação nenhuma com eles, agia daquele modo (diferente de alguns paparicados do povoado, né...). Seguiu a trilha até a entrada da mata e andou um pouquinho até achar umas árvores boas, de tronco bem fininho, ia picar algumas e levar. Mas aí ouviu um zumbido. Olhou para os lados e não viu nada, o pior que aquilo de repente vinha, sumia, e depois voltava. Já duvidava de sua audição, quando nitidamente ouviu algo gosmento cair atrás de si. Ao virar se deparou com dois gigantescos globos de cor vermelha, cheios de pontinhos. O bicho se aproximava com aquelas patas negras de mosquito. As duas da frente pareciam mãos de uma mente diabólica. Tentou se defender com o machado, mas não deu um segundo e o monstro lhe ergueu brutamente. Viu o povoado se distanciar e a imagem era uma agonia tão grande que desmaiou. Quando abriu os olhos, estava num chão coberto de saliva. Até parecia uma teia, por mais que se esforçasse, não saía. Ao seu lado havia restos de comida, inclusive fedendo. Tudo ali era fétido. Mas antes fosse só isso, viu de longe um corpo, esse estava com um buraco bem na barriga, com alguns órgãos aparecendo. Como se não fosse o suficiente para embrulhar o estômago, o cadáver era freneticamente devorado por larvas brancas. Podia ouvir o barulho da carne ser perfurada por dezenas delas, cada uma caçando a melhor parte. Tentou com toda a força, as veias de seu corpo saltavam e seu nariz chegou a sangrar, mas em vão, era quase uma cola. E seus movimentos chamaram atenção. Aquele monstro ressurgiu pousando bem em cima dele, e aproximava sua cabeça, com um tubo asqueroso lhe derramando um líquido no rosto. Foi uma coisa terrível, com todo aquele zumbido explodindo seu cérebro... toda a situação, mas aquele demônio apenas voou novamente, parecia se divertir. Quando o garoto viu, o terror: as larvas agora iam para si, naquela torturante lentidão.

O tempo passou e nada do filho voltar. Sapo correu a floresta em questão de segundos e encontrou o machado abandonado... Cheirou o ar e sentiu um arrepio, voltou a casa e beijou a testa da mulher, fez um sinal com a mão para que ela esperasse, nisso se agachou e deu um pulo que chegou a alcançar a lua. Quando desceu, sua pele estava diferente: da cor da prata. Deu um chamado ao mundo três vezes e partiu, aos pulos. Em poucos saltos parou naquele mar imundo o qual seu filho se encontrava, prestes a ser consumido por aquela asquerosidade rastejante. Quando cantava, surgia em si uma bolsa mágica. Dela tirou uma adaga brilhante e cortou cada um daqueles vermes. Mas não estava acabado, o zumbido veio...

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzz...

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzz...

Bzzzzzzzzzzzzzzzzzz!

Parecia irritado. O ser voador surgiu novamente e o duelo era claro. Estava em desvantagem devido as asas do demônio, porém o que é capaz de parar o nosso herói? Aquela coisa não se movia uniformemente, fazia zigue-zagues no ar e se aproximava tão ligeiro que quem visse de longe tamparia os olhos, tamanha ansiedade. E foi numa dessas investidas que Sapo agarrou uma das asas iridecentes e a jogou longe. O monstro já não podia voar. Sua cabeça era puro ódio, aqueles pelinhos todos eriçados e a nuca metálica distraíam o olhar... Aguardava o momento certo para atacar e destruir Sapo. Numa investida repentina ele se esquivou, e com seu canto retirou um chicote vermelho que prendeu o ser, então deu um salto, tirando, na queda, uma espada que decepou o inimigo. O zumbido acabou. Escorreu do monstro uma massa esbranquiçada e o corpo dava alguns espasmos. Respirou fundo, andou no chão grudento e retirou o filho dali. Levou ele até o lago escuro, o menino nada conseguia dizer, nada, tudo parecia um sonho dos piores. Sapo apenas disse: - Cuidado com as moscas..., e pulou para dentro da água. Nunca mais foi visto. O filho, porém, nunca deixou de olhar pelos cantos, para ver se via algum sapo, de cor tão valiosa. E também todos observavam, desconfiados, aquele lago, sempre esperançosos de ouvirem dele sair, por mais fraquinho que fosse, o canto ao luar novamente.

É, meu amigo, quem me contou essa história foi uma pessoa muito amável, e por isso gostaria de ver que não existe pessoa que a ouça com desdém... claro, unicamente em respeito a esse alguém. É uma pena que há quem desconfie de uma alma tão delicada assim. Mas veja, é essa a diferença de lá para cá. Tem uma coisa que vocês não sabem... lá pode até ter um espírito escuro, turvo, mas depois das chuvas o ar fica com uns pontinhos luminosos – e todos juram que são vivos! Dizem que eles protegem o lugar de coisas ruins enquanto estão vivos de luz. A pessoa que me levou para esse lugar incrível também me apresentou o dito lago. Suas águas são bem negras, pantanosas mesmo, e hipnotizam. Vi do meu anfitrião uma certa emoção ao ver aquele ambiente. Enfim, amigo, um dia eu posso pedir para que ele te leve até lá também...

Tema: Histórias de Espada e Magia

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https://www.youtube.com/watch?v=GOvtu1cbhFY

Algumas considerações: não que tenha sido planejado, mas esse foi o meu conto que mais fugiu do intimismo explícito; certo que eu tentaria algo assim, porém, enquanto escrevia, não pensei nisso. Foi também a edição do concurso mais complicada para mim, pois fiquei um tempão sem escrever e acredito que isso atrapalhou minha prática, porque eu não consegui encontrar um enredo bom pra nenhum tema (e ele costuma aparecer instantaneamente)... isso resultou em três contos diferentes, os quais joguei todos fora por vários problemas. Aí há uns dois dias atrás, numa grande trivialidade, imaginei essa história - e espero que agrade ao menos um de vocês.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 03/03/2023
Reeditado em 12/03/2023
Código do texto: T7732046
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