O SENTINELA - CLTS 22

Após o tsunami no oceano Índico em 2004, especificamente na Ilha Sentinela do Norte, localizada nas ilhas do arquipélago de Andaman, na baía de Bengala, o governo indiano enviou ajuda para os habitantes, mas os helicópteros foram recebidos com flechadas mortais e tiveram de se retirar rapidamente.

Misteriosamente, há relatos de que nenhum habitante do arquipélago foi morto pelo Tsunami, enquanto se esperava que fossem exterminados do planeta. Eles conseguiram prever o episódio catastrófico, por meio do contato íntimo e respeitoso com a natureza, observando até mesmo o comportamento dos peixes e de outros animais.

Essa história foi contada para o mundo...

A pequena ilha localizada longe dos principais assentamentos de Andaman, coberta por florestas, abriga um grupo de indígenas, os sentinelenses.

O que se sabia é que a quantidade estimada era de 500 indivíduos. Os sentinelenses são extremamente hostis, rejeitando qualquer contato com outras pessoas. Curiosamente, estão entre os últimos seres humanos a permanecer praticamente, ou melhor, completamente intocados pela civilização moderna.

A última tentativa de contato foi em 2018, um missionário, que alegava ser necessário passar a palavra de Deus aos indígenas, acabou morrendo.

A culpa da morte foi jogada nos nativos, pois o corpo foi encontrado à margem da ilha com flechas cravadas pelo corpo, arma utilizada pelos sentinelenses.

O corpo foi jogado na água e encontrado por pescadores. O que intrigou os médicos legistas foi que na necrópsia a razão do óbito foi por esmagamento dos órgãos, asfixia e que as flechas foram cravadas depois da morte.

Judie, jornalista e especialista em povos indígenas, sentia haver algo mais interessante para ser pesquisado. Organizou a missão, sabia o que precisava para chegar com segurança, mesmo clandestinamente, na tribo. Depois dos estranhos desaparecimentos e mortes comprovadas, as autoridades com as forças militares indianas mantinham os sentinelenses mais protegidos do que nunca. O que não é muito complicado, pois eles não fazem nenhuma questão de companhia externa.

Julgava certo o êxito nessa expedição. Já havia sido refém de uma tribo africana em uma pesquisa anterior e quase comida por índios canibais brasileiros, pensava já ter passado seus piores momentos em suas aventuras jornalísticas. Havia um certo receio, entretanto, pensava que as histórias contadas poderiam ser um tanto quanto exageradas e que a tribo, provavelmente a receberia de braços abertos para um documentário. Bastava levar alguns presentes.

Imaginava que o mais difícil seria passar pelas autoridades que os protegiam, depois que estivesse na ilha seria fácil a convivência e suas filmagens. No entanto, sua passagem foi facilitada por um bom suborno. Seria a maior e melhor matéria sobre povos indígenas de todos os tempos.

As histórias de pescadores que passavam perto da ilha e eram atacados pelos sentinelenses com suas flechas de pontas afiadas não parecia ser real, pensava serem notícias falsas para manter os curiosos longe do local.

Em 2006, dois pescadores foram mortos pelos sentinelenses, é o que diziam. Judie supunha que provavelmente se perderam no mar. Já havia visitado muitas tribos, descobrira nas viagens que muito que se falava sobre eles, na maioria das vezes, era mentira.

A certeza que Judie carregava era sobre o risco de aniquilação dos povos que visitava. No caso dos sentinelenses, até os governos decidiram deixá-los em paz. Qualquer contato com a civilização representaria a extinção em massa da tribo, já que seus corpos não estão preparados para as doenças dos habitantes do mundo moderno.

Judie parecia não se importar com isso, havia saído da maior emissora de TV dos Estados Unidos. Queria um tempo para engravidar. Prometera a si mesma voltar ao trabalho quando seu bebê tivesse pouco mais de dois anos. No entanto, não resistiu a tentação de voltar para a emissora com a melhor história que qualquer jornalista pudesse imaginar. Essa seria sua garantia financeira.

Contratou uma equipe com dois ex-soldados, um cinegrafista desempregado e dois índios das tribos vizinhas.

Tudo preparado para a viagem. Judie sorria para os colegas, nada havia contado sobre a hostilidade dos sentinelenses. Sabia que se conseguisse êxito em seu documentário, faria com que autoridades olhassem com bons olhos para esse povo considerado o mais ameaçado da terra e seus companheiros ficariam ricos e famosos.

Ancoraram o barco que os levava a uns dois quilômetros da margem e continuaram em pequenos botes de madeira. Mesmo com a proteção dos militares, preferiram não facilitar. Por menor que fosse o barco, optaram por mostrar humildade chegando com apoio dos remos.

Todos os outros cantos da terra já haviam sido explorados e, agora, Judie estava a poucos minutos de conseguir o maior feito que um jornalista já conseguiu.

Chegaram divididos em três botes. Judie viajava com os soldados e o cinegrafista com os índios. O terceiro bote trazia os presentes e os equipamentos de filmagem.

O mar estava sereno e eles remavam tranquilamente. Essa calmaria toda acabou quando avistaram um grupo de crianças portando arcos e flechas. Assim que viram os botes na direção da ilha, eles começaram a lançar as flechas, não tinham força para acertá-los e os soldados riam da situação. Eram crianças ainda bem pequenas, de dois a três anos.

Josh, o soldado mais velho, coçava sua longa barba grisalha e fumava um grande charuto. Apenas levantou o boné e sorriu. Will era mais falante e contador de histórias, usava chapéu estilo cowboy e colete de couro. Logo começou a contar suas experiências:

– Acalmem-se, no Vietnã vivíamos isso o tempo todo. Crianças apareciam querendo nos atacar. – Levantou o chapéu, cuspiu nas mãos, as esfregou e continuou. – Deixa que eu resolvo.

Will abriu a mochila e retirou alguns doces. Tinha certeza de que isso os acalmaria.

Oscar, o cinegrafista, fotografava tudo que se movia. Registrou aqueles pequenos indiozinhos pelados, tentando acertar as flechas nos botes.

Estranhamente o bote que trazia os índios começou a seguir mais lentamente.

— O que está acontecendo? — Questionou judie, fazendo gestos para eles entenderem que precisavam ir mais rápido.

Oscar largou a câmera e pegou o remo, começou a remar e disparou:

– Esses indígenas são uns preguiçosos. Devem estar querendo mais espelhos.

Os ex-soldados gargalharam.

– Espero que não tenham entendido o que você disse. Exclamou Judie.

Assim que chegaram na areia, as crianças correram em direção à floresta.

– Eu disse. São apenas crianças que imitam os pais, mas são medrosos. – Falou Will.

– Se eles imitam os pais, precisamos nos preparar. – Josh, tirou a arma do coldre e com o binóculo avaliou o local.

Os índios que acompanhavam a equipe ficaram nos botes. Judie já nem sabia mais por que havia os trazido, não entendia nada do que eles falavam e eles menos ainda.

Will cravou estacas na areia para prender os botes. Quando se preparava para amarrar o terceiro, um dos índios que os acompanhava apontou um facão em sua direção e disse:

– Saavadhaanee Nayan ee. – Remaram ao contrário e partiram.

Ninguém pareceu entender o que ele disse. Will apontou a arma na direção do bote, mas nesse exato momento, uma chuva de flechas encontrou seu corpo. Com o susto ele apertou o gatilho enquanto caía, acertando o braço direito de Josh.

Oscar correu em direção aos botes, virou o que estava vazio e usou como escudo. O ataque parou.

Judie ficou paralisada olhando a cara de dor daquele que era o mais bruto da equipe. Josh levantou a sobrancelha, recolheu o boné e perguntou:

– O que são os olhos? O que realmente fazemos aqui?

– Não entendo sua pergunta. – Disse Judie.

– Saavadhaane Nayan ee, quer dizer “cuidado olhos” no idioma Hindi. Falou rispidamente Josh.

– Como você sabe disso? – Questionou Judie.

– Não importa como. Importa que eu sei, e agora quero entender no que estou me metendo.

Passado o susto, Oscar saiu de trás do bote e correu até uma das malas, retirando o kit de primeiros socorros, foi em direção à Will, mas era tarde, estava morto.

– Vamos sair de baixo desse sol. – Disse Judie.

Judie e Oscar andaram até as primeiras árvores. Josh não os acompanhou, sentou com o olhar paralisado no corpo de Will, bebeu um longo gole d’água e disparou:

– Sim! Eu lembrei. A lenda dos sentinelenses. Ao menos, meu avô contava como lenda. Eu era muito pequeno, tenho vagas lembranças. Ilha na Índia... Cuidado olhos... Preciso sair daqui!

Levantou-se rapidamente e correu em direção aos botes. Dois sentinelenses cortaram as cordas que os mantinham na margem, empurraram para dentro da água e foram na direção de Josh.

Mais três apareceram correndo da floresta. Pareciam tentar segurar os que já estavam lá prontos para atacar o ex-soldado.

Ninguém entendia o que eles diziam, nem Josh identificava o idioma. Eles apenas se viraram, agacharam como se fossem defecar ali mesmo, levantaram as armas feitas de pedra e correram em direção à floresta.

Josh começou a andar para trás até chegar em Judie e Oscar.

– Vamos morrer. – Disse.

Judie tomou a dianteira, Oscar tentou segurá-la, mas foi inútil. Ela seguiu na direção dos indígenas.

– Estamos perdidos, não há como sair daqui. – Disse Oscar.

– Não! Eles nos respeitam. Deixaram-nos vivos e saíram. – Completou Judie.

– Vivos? Os índios que nos acompanhavam é que estão vivos. Saíram enquanto ainda era tempo. Will está morto. Lembra? – Josh falou esbravejando e agarrando o braço ferido.

– Sim, eu sei. Estou triste por isso, mas não tem mais jeito, temos que continuar. – Judie disse não demonstrando sentimento algum em relação à morte do soldado.

– Seguir? Eu não vou sair daqui, não entro nessa floresta nem morto. – Josh puxou um charuto do bolso e acendeu.

– Então fique aí. Vamos Oscar.

Judie não olhou para trás, seguiu o caminho que os sentinelenses haviam ido. Oscar pegou uma das câmeras portáteis e a seguiu.

Assim que entraram na floresta, ouviram um grito de Josh:

– Nayan ee... Olhos... Nayan ee... olh...

Judie não parou, sentia-se confiante. Algo dizia estar segura. Caminharam por entre as árvores até chegarem perto de um grupo de indígenas que faziam uma espécie de ritual, agacharam-se e ficaram a observar. Havia um bebê que passava de mão em mão, em volta da fogueira. Todos o pegavam e o erguiam, até parar nos braços de uma mulher com um cocar amarelo. Parecia um batismo.

– Está filmando isso, Oscar? – Falou erguendo o corpo, mas paralisou quando viu uma criatura de cerca de três metros de altura sair do meio da mata. Aquele monstro aproximou-se do que parecia ser o chefe da tribo, aguardou a mulher que segurava a criança despedir-se e a pegou.

De onde estavam não dava para ver os detalhes da criatura, mas Oscar a chamou para ver com o zoom da câmera.

A criatura tinha pernas aparentemente humanas, usava sandálias de couro de algum animal nativo, o tronco era largo e liso com duas grandes cicatrizes posicionadas lado a lado no peito, braços compridos, mãos enormes com apenas três dedos pontudos. A cabeça tinha uma grande boca com dentes em formato de serra, uma presa maior no centro e um orifício que parecia ser um nariz. As orelhas pareciam de gato e moviam-se para frente e para trás.

– Ele não tem olhos? – Perguntou Oscar.

– Calma. Preste atenção na barriga.

O monstro ergueu a criança e aquilo que pareciam cicatrizes em sua barriga, se abriram, revelando olhos gigantes e avermelhados. Escorreu um líquido escuro e nojento. Pareciam lágrimas com sangue. Aparentava não querer fazer aquilo.

Abriu a enorme boca e encaixou o pequeno corpo nos dentes de baixo, imediatamente o sangue da criança começou a pingar em seus olhos e se misturar com o líquido que jorrava cada vez mais forte.

A criatura fechou os olhos e a boca em simultâneo. O dente central cravou o coração do bebê. Judie que já estava com os olhos marejados, esfregou a mão na barriga escondendo o gesto de Oscar. Não havia contado estar grávida, na verdade, ninguém sabia.

O cinegrafista soltou a câmera e correu na direção do ritual. Judie não conseguiu dizer uma palavra sequer. Os indígenas viraram em sua direção e apontaram os arcos, quando foram atirar, o monstro ainda mastigando, desferiu um urro ensurdecedor. Eles soltaram as armas e puseram as mãos nos ouvidos. Judie e Oscar que ainda caminhava na direção do monstro fizeram o mesmo gesto.

Os sentinelenses ficaram parados observando a coragem de Oscar, que durou até ficar cara a cara com o monstro gigante.

A criatura terminou de mastigar aquele pequeno corpo e ergueu as mãos mexendo freneticamente os dedos pontudos. Oscar percebeu que seu ato heroico fora equivocado e ajoelhou-se em frente à criatura. O monstro abriu os olhos, mirou o homem que já estava molhado de medo, baixou as mãos e o levantou pelo pescoço.

Oscar sacudia seu corpo tentando sair daquela situação. Seus braços para baixo denunciavam que o ar estava acabando. Quando o homem estava prestes a perder os sentidos, o monstro o soltou e colocou o pé em seu rosto, espremendo contra o chão.

Judie gravou todo o ato. Assim que percebeu que os olhos da criatura viraram em sua direção, ela correu para a margem da ilha.

Os sentinelenses a seguiram, mas após o monstro soltar mais um urro, todos pararam.

Judie chegou até a margem, avistou os corpos jogados no chão. Pegou a arma que estava na mão de Will e foi fazer o mesmo com Josh. Quando levou a mão em seu coldre, Josh abriu um dos olhos, o outro estava com uma flecha cravada.

— Judie! Eu sei... Eu sei... Ele se alimenta do sangue e carne dos bebês. Um por ano... Precisa do sangue para abrir os olhos. — Falou com muita dificuldade.

– Não entendo! – Exclamou Judie.

– A criatura protege a ilha e os sentinelenses, mas há um preço. – Foi a última frase de Josh.

A jornalista começava a ligar os pontos em relação aos corpos que eram achados. Os sentinelenses cravavam flechas após as execuções do monstro. Incriminavam-se, mas seguiam com proteção do mundo externo.

Ela olhou para a floresta e percebeu que a criatura a observava de longe, não saía do meio das árvores. Alguns indígenas vieram ao seu encontro, ela mirou a arma, no entanto, não teve coragem de atirar, mesmo sentindo serem seus últimos momentos. Os sentinelenses fizeram um círculo em sua volta e miraram os arcos. Judie ajoelhou-se, soltou as armas no chão, retirou a câmera filmadora do pescoço e passou a mão na barriga pedindo perdão aquela criança que não nasceria. Percebeu o erro que havia cometido.

O monstro assistia de longe o que seria a última execução daqueles que ousaram entrar na ilha. Porém, ao ver o gesto da mulher em relação a sua barriga, mais uma vez soltou o urro ensurdecedor, dessa vez com timbre mais agudo. Todos baixaram as flechas parecendo entender a ordem. Escoltaram-na até a floresta. Ao chegarem perto do local do ritual, Judie percebeu que a tribo estava toda ali, não mais que cem indígenas.

A criatura foi na direção de Judie e colocou o cocar de flores amarelas em sua cabeça.

— Não! Meu filho não.

O monstro parecia entender o que ela dizia. Apontou para a barriga das mulheres que estavam em volta. Elas começaram a chorar copiosamente. Nenhuma delas estava grávida. Apenas Judie gestava, e seria a próxima a fornecer vida à criatura. Na tribo, era um gesto de mulheres privilegiadas, para a jornalista era o fim de um sonho.

As mulheres em fila traziam frutas e pedaços de carne de javali. No início, Judie tentou resistir, mas precisava se alimentar. Juntava forças para tentar fugir. Não conseguiu.

O tempo passou, todas as tentativas de fuga foram frustradas pelos sentinelenses. Era bem tratada, mas sabia que carregava o maior e melhor presente que eles poderiam querer. Sua barriga cresceu e suas dores do parto logo chegaram.

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Na casa branca chegava uma câmera filmadora. Os dois índios que haviam fugido ficaram observando os acontecimentos de longe. No momento em que levaram Judie para o meio da floresta, criaram coragem e foram buscar o aparelho que a jornalista soltara junto ao corpo do soldado.

O presidente americano junto ao general assistiram as cenas gravadas. Assim que o vídeo acabou, o presidente ordenou que entrassem em contato com as autoridades indianas e que em comum acordo destruíssem a ilha.

O plano foi posto em prática, as autoridades já tinham conhecimento da tal criatura, não havia risco para o mundo externo, no entanto, não gostariam que outras nações soubessem o que acontecia lá. Manter em sigilo era a melhor forma de manter as melhores impressões.

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No dia da cerimônia em que o bebê de Judie seria a oferenda, o monstro, que ela não via há muito tempo, estava com aparência cansada, os olhos não abriam e parecia muito fraco. Ela entendeu as palavras de Josh. Sabia o que o mantinha vivo e, consequentemente, protegendo a tribo.

Aviões sobrevoavam a ilha. Os indígenas pareciam hipnotizados, não olhavam para cima. Suas atenções eram para a criatura e o nascimento do bebê que garantiria a vida de Nayan ee.

Judie levantou e começou a gritar imaginando ser o resgate que esperara por meses. Já havia perdido as esperanças, mas naquele momento suas ideias eram clareadas como o sol que brilhava no céu.

Quando parecia que pousariam, ela percebeu que caíam objetos de dentro dos aviões. A criatura emitiu o urro, colocou Judie nas costas e saiu em disparada sendo seguido pelos sentinelenses.

As bombas caíam e explodiam assim que encostavam no solo. As explosões eram gigantes. Praticamente toda a ilha foi queimada. Helicópteros rondavam os arredores do lugar esperando alguma movimentação, mas aparentemente nada mais estava vivo lá.

As autoridades indianas mantiveram distância do lugar. Os americanos, não. Seguiam clandestinamente investigando a ilha. Entravam, mas não saíam mais.