A janela sabe

Um dia qualquer, em um lugar qualquer, houve uma manhã que todas as pessoas levantaram sem suas sombras. Algumas não se importaram, a sombra é uma coisa que não prestamos muita atenção, outras vezes lembramos que temos sombras quando ela está em nossa frente ou quando fazemos movimentos tolos ao vê-las em uma parede.

Mas neste dia, nenhum ser humano projetava uma sombra, das lanternas não vinham as mãos exageradas de sombras nas paredes, aqueles que faziam animais ou pessoas com os dedos nas sombras questionavam onde sua arte havia ido. Religiosos questionavam-se com esse sinal divino da volta do messias, eu, eu apenas acordei, como um dia normal.

Todos na rua testavam uma forma de fazer voltar a sua sombra, por mais ignorada fosse a sombra pelos humanos, a falta dela faziam com que perdessem sua identidade como seres vivos, como humanos ou qualquer coisa que eles se consideravam. As pessoas viram que tudo que era vivo estava sem sombra. Algumas tentavam desesperadamente estar em uma sombra de uma casa, de um telhado da garagem, entrar e sair de túneis para que a sua sombra retornasse ao seu lugar.

Cientistas, professores, estudiosos não tinham explicação plausível para o fenômeno da falta de sombra dos seres vivos, os jornais em todos os lugares anunciavam o acontecimento, debates, notícias e até mesmo no jornal já havia se espalhado que as pessoas não tinham sombra e isso abalou o dia de todos.

Por mais que tal acontecimento esteja ocorrendo na vida de todos, as aulas não foram canceladas, os diretores e escolas com medo de qualquer colapso social, mantiveram as crianças e adolescentes em um só lugar com objetivo de uma mente criativa lhes propor uma solução, paralelamente a isso, queriam evitar a qualquer custo o pânico e a vida cotidiana dos adultos atarefados.

Ao comer meu café da manhã, trocar para o uniforme e colocar o pé para fora de casa, as minhas pernas faziam refletir a sombra do meu corpo contra o chão quente do verão mineiro, todos aqueles que testavam o fenômeno, que acompanhavam as notícias, aqueles que me viram caminhando com minha sombra mantiveram seus olhares para mim.

Alguns com terror, outros indignados, todos olhavam fixamente enquanto eu caminhava em direção á escola. No momento que o porteiro me viu, impediu a minha entrada até o diretor da escola chegar aos portões, realizou um telefonema e me direcionou para a minha sala.

Todas as aulas das outras matérias haviam sido canceladas e tudo que se falava era do acontecimento dantesco da ausência de sombras dos seres, enquanto meus professores de química e física debatiam sobre o fato de somente eu ter sombra naquele momento. Colegas procuravam tirar fotos com seus celulares, outros acendiam e apagavam lanternas, foi permitido até a utilização de fósforos, isqueiros e fogo durante aquela pergunta ensurdecedora.

Entrei na sala de aula, sentei na minha cadeira e meu professor estendeu-me sua mão para que eu pegasse um fósforo, acendendo, coloquei a mão atrás e minha sombra trêmula juntamente com as chamas voltou a atenção dos meus colegas, ambos pararam de discutir teorias e olharam a projeção dançar com a ondulação das chamas. No momento que o fogo começa a queimar meu dedo com o consumir do fósforo, lancei-o e a sombra dissipou.

Todos me perguntaram o que eu havia feito, onde eu estava, o que eu estava planejando, qual era o meu problema. Em meio a perguntas os professores tentavam novamente a projeção da sombra contra luzes, fósforos e lanternas e minha sombra dançava com seus experimentos, as vezes mais fraca, as vezes forte, nítida e vívida, estava lá. Todos vimos.

O diretor subitamente voltou a nossa sala, uma das mãos na maçaneta e a outra segurando o telefone, ele me mandava para casa imediatamente. Na rua, todos ainda olhavam com seus olhos frustrados e surpresos pela minha sombra acompanhar meu corpo durante o sol de verão, até o alcançar da fechadura da porta da casa em que a sombra estava junto surpreendia os demais.

Logo eu liguei a luz e ela continuava lá, acompanhando os movimentos do meu corpo, aprisionado contra a luz, esgueirando sobre meu ponto cego de visão, somente meu espelho me possibilitava ver minha sombra contra minhas costas, ao posicionar em minha frente, ela era maior que eu mesmo, me dava uma sensação desconfortável, por ser o único normal meio a anormalidade.

Um momento ela tocou a janela e eu procurei-a com meu olhar, projetavam não somente uma, mas várias, havia um mundo em luz banhado por sombras, eu não me esqueci e eles não se esqueceram que eu poderia as ver. Seus rostos voltaram contra minha pessoa, como se eu também fosse um estranho para aquelas sombras. Eu presenciei um mundo que não deveria ser capaz de ver.

Culpei os céus pelo meu azar, talvez pelo infortúnio, seria predestinação, premonição ou destino? Eu não entendia, mas eu não conseguia parar de olhar, e eles mesmo sem olhos, orelhas, narizes, bocas, me encaravam com seus corpos em formato humano sem seus detalhes que lhe faziam humanos, o dia já não era mais dia, o tempo passava e o entardecer chegava, os céus cobriam-se com o laranja do pôr-do-sol, vinha a noite.

E eu encarei, segundos, minutos, horas, pensava que desviar o foco ou eu os veria mais perto, ou não os veria nunca mais, então mantive paralisado sob coragem ou pavor, existiam e estavam lá, nítidos e me encarando, do mesmo jeito que o meu mundo parou por causa deles, o deles havia parado por me terem em seu mundo. Meus olhos tintilavam e lacrimejavam com essa descoberta, tudo que eu queria era acordar desse pesadelo, até que eu cedi e pisquei.

Ao piscar, eles dissiparam, sua nitidez foi reduzida e eles se afugentaram da janela. Porém, suas marcas no vidro da janela continuaram no vidro da janela, foi uma memória para aquele objeto, algo que ele não quer se esquecer, um fenômeno que não ousa esquecer de seu reflexo.

Existirá naquele vidro eternamente uma memória de sombras num mundo que não deveria ter aceso? Eis que eu caio no chão, as pernas perderam as forças necessárias para se manter de pé, a janela se lembra do que eu vi e agora ela manterá as sombras para que eu nunca possa esquecer.

Ainda são 18 horas e o sol está indo, todos os objetos estão projetando suas sombras, pois o entardecer trouxe as trevas da noite.

O desfalque da luz faz minha sombra projetar cada vez maior sob a parede do quarto, engolindo-a em minutos, a qualquer momento essas sombras tocarão a lâmpada do quarto, a única luz acesa da casa, e, pela proporção e vividez da minha sombra, lutando o mais rápido possível para alcançar a única luz que ficará nessa residência.

Olhei o pôr-do-sol sob as serras da cidade, a janela sabe o que eu vi, como ela não ousou retirar o reflexo do acontecimento e a janela presenciará que eu não conseguirei ver o sol da manhã do outro dia. Sem sombra de dúvidas, acontecerá. Ao meu desaparecer, a janela sabe.

Ela sabe.

Corvo Cerúleo
Enviado por Corvo Cerúleo em 27/02/2023
Código do texto: T7728768
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