A quarta-feira de cinzas

A quarta-feira de cinzas (José Carlos de Bom Sucesso)

A festa do carnaval se foi. Foram três dias oficiais de muita festa, de bebedeira, de samba, de marchinhas carnavalescas, de blocos, de festa... Com ela, também, se vai o mês de fevereiro. A estação do verão caminha para os últimos trinta dias. Assim, no calendário astronômico, breve o hemisfério sul entrará na estação de Outono, ou seja, a estação das frutas, das mudanças de temperaturas e da aproximação do inverno. É mais um novo ciclo anual, que se repetirá por longo tempo.

Então, a zero hora após o último dia do carnaval, já é “quarta-feira de cinzas”, aquela em que se coloca cinzas sobre a testa dos católicos, dando início ao período quaresmal. Espaço de tempo em que várias são as penitências, conforme cada um.

Na quaresma, também, é o tempo dos mitos que se formam em cada mente humana. Bem longe da cidade, no alto do morro, perto da pedreira, onde têm árvores baixas e pequenas cavernas, o fazendeiro mais vivido, com idade mais avançada, em companhia do João, outro ancião, amparados pela Julieta, outra anciã, também amparada pela Maria e assim sucessivamente, vão subindo a ladeira. Alguns usam a bengala como forma de amparar o frágil corpo e aos poucos vão vencendo a distância até chegarem a pequena clareira, que dá vistas às luzes de várias cidades ao redor.

Lá, sorvendo o perfume da natureza, ouvindo o vento soprar as copas das árvores, ainda muito fraco, vão se ajeitando como podem, pois a reunião será longa e com muitos assuntos para serem discutidos.

João, o mais velho da turma, preside a congregação. Ao lado da Julieta, também contando com seus mais de noventa anos, a Marta, com cento e poucos anos, a Márcia, mais jovem, com setenta anos. Tem o Antônio que será o sucessor, isto é, se não perecer no intervalo do ano até o próximo ano. Assim, um a um, vão conferindo as presenças.

O presidente ascende várias velas. Todas estão acesas e nem mesmo o vento que se fortalece gradativamente é capaz de apagar alguma. A noite será longa e muitos assuntos serão tratados. Lembram da Manoela, do Pedro e da Mariquinha que partiram da vida. Foram úteis para a irmandade. Neste dia, vão votar para a escolha de outros que ocuparão as vagas deixadas pelos falecidos. Muitos são os candidatos, divergências serão apresentados, porém, elas não serão atravancas para o sucesso da reunião.

As cantorias começam. Cada qual quer cantar o mais alto possível. Nas cidades, ainda restam algumas luzes carnavalescas e poucas músicas tocadas. É final de festa e o cansaço rodeia o folião.

Repentinamente, João levanta bem rápido. O movimento dele é mais alígero do que um jovem de dezesseis anos. Não se sente nada. O reumatismo ficou para trás. As dores nas costas não mais existem. A prótese na perna direita ficou para escanteio, pois é mais atleta do que o campeão do mundo de futebol. Das mãos trêmulas, surgem a força vital que se compara a dois ou mais tratores. Da mesma forma, os que ali estão presentes são rejuvenescidos e se parecem que voltaram à juventude. As cantorias aumentam de tal modo que em um ano anterior, o jornalista da televisão da Capital teve que sair correndo às pressas, pois ficou surdo. Viu ele coisas do além naquele lugar. Machucou-se todo, com cortes nas pernas, nos braços e por pouco não caiu no abismo de quase dez metros.

O presidente João despe do paletó e da camisa social. Vira a grande cambalhota e rola pelo chão afora. É noite de lua cheia e suas luzes brilham sobre o frágil corpo que era e agora se torna o mais musculoso e atlético. Os cabelos brancos vão desaparecendo e dando lugar a logos e grossos pelos na cor negra e caem sobre a testa. Os olhos, que eram verdes, transformam em grandes olhos vermelhos como as brasas de fogo. As dentaduras caem sobre a terra e longos e grandes dentes aparecem instantaneamente na pequena boca, que se transforma em duas ou três vezes maiores do que a boca original. Aos poucos, o peito, os braços e as pernas são cobertos por pelos na cor preta. A voz é diferente, pois a voz mansa, baixa, afável se transforma em ruído que mais se parece com trovão.

Julieta não fica atrás. Vai logo se despindo da blusa e do paletó, ficando apenas de sutiã. Cai por terra e logo lhe aparecem pelos tais como os pelos de cavalo. Os braços e as pernas são substituídas por patas de cavalo. A cor negra predomina. A cabeça, o rosto, os olhos e o nariz desaparecem e no lugar deles abri algo semelhante a uma chaminé e linguetas de fogo vão saindo dali.

A luz da lua cheia vai iluminando o local. Todos que ali estão se transformam. Os homens se transformam em “Lobisomem” e as mulheres em “Mula sem a cabeça”.

A reunião demora cerca de três horas. Nela, elegem os sucessores dos cargos vagos. Brigam entre si e sempre há o vencedor. Rolam pela terra. Dão gritos, rosnam, rincham e fazem coisas que jamais alguém duvide. Assim que o presidente declara encerrada a reunião, eles saem correndo pela mata. Assustam pessoas, mordem, fazem tudo o que lhes é permitido pelo estatuto.

Desta forma, durante todo o período da quaresma, eles estão soltos em cada lugar. Correm mais do que a velocidade do som. Estão em matas, florestas, bairros afastados, nas margens de rios, pedreiras, nas escolas, nos quintais, nos galinheiros e até mesmo nos chiqueiros.

Quando se aproxima a Semana Santa, no “Sábado de Aleluia”, eles retornam ao mesmo lugar para o final da temporada. Voltam ao estado normal. Têm suas vidas normais e no próximo ano se reúnem novamente para mais outra reunião. Os convites foram feitos aos candidatos. Alguns aceitaram e outros não. Quem aceitou, leu e confirmou presença na próxima reunião. No decorrer do ano, eles serão treinados. Se alguém deixou a vida, será substituído por outros.

Então, cuidado com a quaresma, pois eles estão soltos por aí.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 23/02/2023
Código do texto: T7725672
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