A DANÇA

Bill era conduzido até o seu quarto. Não precisava de camisa de força, era o melhor tipo de paciente. Mantinha um sorriso cínico diante da vida; O cinismo de quem percebeu que o mundo era mau… e insano… E ele não era… e isso fazia dele um maluco. E aquele quarto acolchoado, aquelas amarras na cama, aquilo definia quem ele era. Conheceu Iris de noite, horário da janta…

– Bem-vindo! – Ela disse.

– Você trabalha aqui…?

– Haha… não… não.

– Todo mundo aqui tem uma cara de louco… você não. – Iris sorriu e olhou pra baixo encarando o chão, como se pudesse ver todas as escolhas erradas. Bill se lembrou de um seriado de TV em que uma enfermeira observava deslumbrada as cápsulas e pilulas chovendo em sua cabeça. Iris tinha o mesmo semblante.

– Eu estou aqui há uns seis meses… Mas tá tudo bem. Fiquei ensaiando minha dança esse tempo todo, amanhã eu apresento…

– Você vai se apresentar em algum lugar depois de sair? – Bill tinha um tom pesaroso, sua voz dizia algo como: “Te conheci agora, gostei de você e você JÁ VAI SAIR?”. Iris percebeu e seus olhos brilharam de vaidade.

– Não bobo… Eu vou dançar amanhã e será maravilhoso! Ao menos pra mim… Farei minha GRANDE coreografia. As pessoas agonizarão em minha volta.

Uma sirene tocou anunciando o fim da janta e início das atividades com terapeutas. A maioria das pessoas se levantaram. Pareciam dispostos e ansiosos pela atividade… Bill ficou olhando em volta tentando entender…

– É que eles pensam que se fizerem tudo direito, sairão mais rápido daqui. – Iris sussurrou com indiferença.

– Ué. E isso não é verdade?

– Pode até ser… Mas eles não deveriam ter pressa… Não estão prontos. Toda a maldade lá fora… Simplesmente não estão prontos. Deveriam ficar aqui pra sempre e morrer aqui.

– Então, você não vai…?

– Não vou participar dessa palhaçada. Você acha que brincar de massinha e rodinhas terapêuticas curarão o que o mundo fez com você? Vou pro quarto ensaiar minha dança.

– Vem cá… E porque é que tua dança vai fazer todo mundo “agonizar”?

Iris não respondeu.

Na manhã seguinte Bill abriu os olhos e rapidamente os fechou outra vez. Não queria receber de uma só vez a verdade. Era melhor que fechasse os olhos, deixando que os outros sentidos acordassem primeiro. Primeiro sentiu o ar gelado do ar-condicionado em suas narinas… Aquilo o fazia perceber bem aos poucos que não estava em sua casa. Depois a audição foi captando as vozes estranhas lá fora. Enfermeiros e loucos… Loucos fazendo barulhos específicos de loucos. Depois a memória lhe trouxe de volta os motivos traumáticos que o trouxeram ali, e só após isso abriu os olhos com vontade… ávido por nitidez. Um enfermeiro estava na porta, sorrindo.

– A Iris já passou aqui umas quatro vezes procurando você… – Disse o homem grande com um sorriso cheio de ternura. Eles eram obrigados a imobilizar ferozmente os pacientes surtados. Mas no fim das contas, eram boa gente.

– LEVANTA! Um dia após o outro, tá vendo? Já tá fazendo amigos!

– Sim, sim… “Sim, sim… e eu nada te perguntei…” – Pensou Bill. Mas sorriu de volta.

Ao mesmo tempo em que se levantava e tomava banho, escovava os dentes e se vestia, percebia uma certa palpitação que o preocupava. “Com certeza me apaixonar é a coisa mais estúpida que eu poderia inventar, num lugar como esse…”. Aquela mulher linda e que não tinha, jamais a “cara da loucura” como o próprio Bill conceituava, mas que era SIM insana… E provavelmente das piores. Com aquela conversa de dança ensaiada no quarto. Aquela conversa de pessoas agonizando diante de sua dança, “papo de doido…”. Bill a chamava de louca por dentro e cada vez que fazia seus movimentos dentro do quarto ficavam ainda mais lentos. Ele queria demais – e não queria de jeito nenhum – encontrar sua colega de confinamento. Saiu do quarto já olhando em volta. Sentiu um cutucar agitado no ombro e se virou de uma vez, fingindo susto até mesmo pra si. Iris tinha olhos arregalados e cheirava tão bem… Bill mirou (tentando disfarçar ao máximo) os olhos pro pescoço dela, mas ela percebeu (pessoas malucas se entendem bem demais…) mas ela pareceu não se importar nem um pouco.

– Ainda bem que você apareceu! Preciso lhe falar sobre a dança. – Bill suspirou tentando disfarçar toda a opinião pré-formada que já tinha sobre aquela conversa de Iris, que começou a falar baixinho como se tivessem um grande segredo em comum.

– Sabe o que é… Eu não sei se você vai acreditar em mim mas… todos morrerão no final da tarde, inclusive você.

– Olha, qualquer coisa que você tenha em mente… pensa duas vezes. Provavelmente imobilizarão você. Aí vão te encher de remédio, e aí… – Iris encarava Bill com um olhar triste e sem paciência – … o máximo que você conseguirá com sua “dança especial” será ficar amarrada e mijando na cama.

– Minha dança tem superpoderes, cara… E… eu queria muito te salvar, sabe? Eu queria ter saído daqui e encontrado você… Em… Qualquer outro lugar menos esse.

– A gente pode se encontrar depois… “Droga, já estou apaixonado?! Como eu posso ficar bom assim?? Olha o papo dessa mulher…”… basta você ficar quietinha, tomar suas medicações, um dia após o outro sabe?

– Minha dança já estava programada antes de você… Desculpa. Teria sido sensacional te conhecer melhor, mas… A dança tá pronta. – “É isso que indica a verdade… é isso que indica que eu não sou normal… Conheci ela ONTEM e já estou decidido a amá-la pra sempre… Eu nem sei direito que ela é… É ISSO. É assim que eu me percebo como um doente mental.”.

Passavam das 18h… Iris pediu licença e saiu. Foi para o quarto se arrumar… Bill estava apavorado com a suposta vergonha que ela passaria… quando percebesse que sua dança não afetaria ninguém. E que no máximo… no máximo… ganharia algumas palmas, ou terminaria a noite amarrada na cama. Bill se deu conta de que nem mesmo sabia se a tal dança era mesmo uma dança ensaiada e coreografada… Ou se simplesmente a garota começaria a se balançar, se sacudir esperando que alguma coisa acontecesse. “E quando ela ver que isso tudo é besteira?!” – Bill esfregava uma mão na outra, sentindo seu coração tão disparado que palpitava no pescoço e nas veias da testa. “Ela nem é nada minha…”, pensou. Mas tudo aquilo, todo o sentimento que tinha por ela… era avassalador e incontrolável.

Iris entrou…

Todos olharam, inclusive os médicos, terapeutas e enfermeiros, todos olhavam porque ela estava linda. Ela vestia uma roupa de fada e olhando-a de longe, realmente parecia uma fada real, pronta para voar daquele lugar. Primeiramente parou em frente a cada um e soprou confetes nos seus rostos. Todos estavam encantados com sua beleza e Bill mal podia piscar. Sentiu um misto de felicidade (diante da real possibilidade de ficar “algum dia” num futuro próximo, com ela) e um mal estar terrível de vê-la pronta para expor as coisas que ela acreditava ser capaz de fazer… seus “poderes”… Os pensamentos de Bill foram interrompidos pela dança. E a dança interrompeu seus pensamentos e desconfianças com a verdade.

A coreografia começou no meio do pátio. Alguns estavam do lado esquerdo, onde ficam as mesas da janta e almoço. Outros estavam sentados em volta da piscina. E alguns curiosos iam surgindo de seus quartos, saindo devagar. Sua dança era quase boba, mas era repleta de movimentos graciosos. As pessoas batiam palmas como se estivessem vendo um membro do Circo de Solei. Como Bill era o mais atento… Bill foi o primeiro a ver o primeiro homem que caiu. Era um enfermeiro, ele foi se agachando e parecia sentir uma forte dor no peito. Antes que Bill pudesse gritar por socorro, toda a equipe médica presente sentiu a mesma dor… caíram no chão. Iris dançavam como se o mundo fosse uma caixinha de música. Os internos sentiram fortes dores na cabeça e atiraram-se no chão gritando por socorro e clamando para que a dança acabasse. Bill foi atingindo por uma fisgada forte nos olhos e se ajoelhou no chão com as mãos tapando a visão. Em menos de vinte minutos de dança, todos agonizavam no chão… o sangue saindo dos olhos e ouvidos, mãos no peito e gritos de dor. Iris ainda dançou até completar uma hora, mesmo todos já estando mortos. Sua apresentação durava uma hora. Era a dança mais linda e mais mortal de todos os tempos. Ela se aproximou de Bill, caído no chão, com febre, suado em delírios de dor. Seria o último a morrer, no grande final. Iris se agachou até ele e o beijou na boca. “Juro que não te queria aqui…”, disse em seu ouvido, chorando.

– Você…. é a morte…?

– Não sei… Será que sou? Talvez seja…

– Maldita seja… eu amaria você…

– Eu também amaria você…

Afinal, Bill não aguentou e morreu. As câmeras daquele hospício viram tudo. Depois de toda a dança e todo o massacre. Apenas uma jovem, vestida de fada foi vista driblando os corpos no chão. Procuraram por ela, procuraram família, e nunca a encontraram. Saiu pela porta da frente e deixou todos os corpos pra trás. Ela parecia feliz e cantarolante… Pois fizera uma dança… A dança mais importante.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 17/02/2023
Código do texto: T7721564
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