OS OLHOS DE BERENICE- CLTS 22
OS OLHOS DE BERENICE- CLTS 22
Berenice estava entubada, em coma. Do lado de fora do quarto, Edgar, o marido, Artur, o pai e o médico, conversavam. O doutor Silva deu de 15 a 20 dias de vida para Berenice, Apesar da quimioterapia, o câncer não regrediu. Não havia mais nada o que fazer. Depois que o médico se afastou, Edgar disse: — Eu vou levá-la para casa. Ela vai querer morrer na casa dela.
O sogro concordou com um aceno de cabeça e não comentou mais nada. Já estava conformado com a situação.
— Só me avise quando ela estiver em casa. – disse Artur. Edgar ficou relembrando o tempo em que passou com sua esposa. Foram cinco anos de felicidade juntos. O casamento foi o laço que os uniu para o resto do tempo de suas vidas. Parecia que a felicidade seria constante e eterna. Mas quis a Morte arrancar Berenice de sua vida. Os primeiros sintomas do câncer, foram as dores no estômago. Os exames revelaram câncer no pâncreas. A quimioterapia foi ineficaz para debelar o mal. Edgar pensava numa maneira de preservar as lembranças, a inteligente e emoções de Berenice.
Pediu autorização para levar a esposa para casa, para que ela passasse seus últimos dias em seu lar. Como médico cirurgião, ele tinha certos privilégios no hospital, mas usou seu próprio dinheiro para comprar os equipamentos necessário para manter o cérebro de Berenice forte, enquanto os outros órgãos se degradavam. Comprou também, uma serie de instrumentos científicos, e com eles construiu um aparelho para Berenice.
Antes da esposa chegar, ele preparou uma sala especialmente para ela, limpou e esterilizou, inclusive instrumentos e equipamentos. Acompanhou a ambulância que transferiu Berenice para casa, os enfermeiros a colocaram numa cama com o soro e o monitor de sinais vitais. Quando os enfermeiros foram embora, Edgar levou Berenice para a sala especial que ele transformou em laboratório. Ainda inconsciente, ela não viu e não sentiu nada. Ao lado do leito estava uma jarra de vidro com tampa sobre uma mesinha. O frasco continha uma solução a base de água destilada com proteínas e conservantes químicos criado por Edgar. Fios elétricos conectavam o vidro a uma máquina e a um alto-falante pequeno
Os batimentos cardíacos de Berenice estavam cada vez mais fracos. Os intervalos entre uma batida e outra se tornavam mais longos. Edgar percebia que ela estava no fim e agiu com rapidez. Raspou o resto do cabelo dela, limpou o crâneo, pegou a serra cirúrgica e cortou o osso num círculo perfeito. Através da abertura, extraiu o cérebro e os olhos. Voltou a ligar os globos oculares ao cérebro, enfiou os dois eletrodos, conectados à máquina por fios elétricos na base do córtex e mergulhou no líquido do frasco. A massa encefálica ficou boiando, os dois olhos um pouco acima ligados a ela pelos nervos.
Enquanto ele observava o conteúdo do frasco de vidro, deu-se conta do último bip do monitor cardíaco e o som contínuo que indicava o fim das batidas do coração e a morte da esposa. Edgar parou diante do leito e observou o rosto pálido de Berenice. Ela já tinha se ido no primeiro dia em que entrou em coma. Estava triste, mas com esperança de voltar a ouvir a voz dela.
Voltou a examinar os gráficos que monitorava as atividades do cérebro. Mas os números permaneciam em zero, o nível de oxigênio era normal, mas as atividades dos neurônios estavam ausentes. Edgar tinha esperança que o cérebro poderia se regenerar, só precisava dar um pouco de tempo, ele não estava morto, apenas adormecido. Enquanto isso, precisava preparar Berenice para o velório. Colou a parte do crâneo que tinha cortado no lugar, colocou uma peruca idêntica aos cabelos de Berenice. Preencheu o vazio das órbitas com algodão e ajeitou as pálpebras para que se parecessem normais. Deu banho no corpo e vestiu-a com um vestido azul que ela gostava. Levou-a para o quarto e trancou o laboratório. Avisou o sogro, parentes e amigos que Berenice havia falecido.
Edgar dispensou um agente funerário, ele mesmo e o pai de Berenice colocaram o corpo dela num caixão. Edgar não queria que o agente funerário preparasse o corpo, para que ele não descobrisse o corte no crâneo dela. Cuidou para que Artur também não percebesse, mas que ele estivesse pressente e visse que o velório ocorreu normal, sem nenhum fato estranho. Berenice estava com câncer terminal e faleceu, o médico dela assinou o atestado de óbito e o sepultamento ocorreu sem incidentes.
Todos aqueles procedimentos foram feitos motivados por uma esperança maluca, mas os sentimentos, a dor e a tristeza que Edgar demonstrou pelo falecimento da esposa, eram autênticos, eram reais.
Edgar recebeu as condolências na saída do cemitério, Artur convidou-o a passar alguns dias no sitio. Ele disse que iria depois de concluir assuntos pendentes. Ao chegar em casa, foi direto para o laboratório. Examinou os gráficos e constatou que o cérebro continuava adormecido.
Foi somente na tarde do dia seguinte que os neurônios deram sinais de atividade. Para acalmar a ansiedade, distraiu-se guardando os pertences de Berenice em caixas de papelão, roupas, sapatos, joias. Olhou algumas fotos dos dois, relembrou os lugares em que estiveram.
Ao meio-dia almoçou e como estava cansado e com sono pela noite mal dormida, deitou na cama e acabou pegando no sono. Acordou ouvindo uma voz estranha. Levantou-se rápido pensando que alguém havia entrado na casa. Percebeu que a voz vinha do laboratório.
Com o coração aos pulos, abriu a porta e entrou, acendendo a luz. Parou diante da jarra. Os olhos de Berenice o fitaram. Ele estremeceu quando a voz saiu do pequeno alto-falante.
— Edgar, que horas são?
A emoção foi grande ao ouvir a voz da esposa. O som era grave e ele modulou até que se parecesse com a da falecida. Os olhos moveram-se olhando ao redor, observando o ambiente em que estava, mas não entendeu o que aquilo significava.
— Edgar, eu te vejo, mas não me vejo. Estou sonhando?
Ele puxou uma cadeira e se sentou diante dos olhos e do cérebro. Precisava fazer ela entender que o que fez foi por amor.
— Teu corpo morreu. Você estava internada no hospital com câncer. Os médicos lhe deram poucos dias de vida. Pedi autorização para trazer você para casa e aqui passasse seus últimos dias. Minha especialidade é a cirurgia e também não podia fazer nada pelo teu corpo. Porém, procurei salvar teu cérebro, tuas lembranças, Berenice. Teu corpo morreu por falência múltipla dos órgãos. Mas resolvi extrair teu cérebro do corpo. E eu tive sucesso. Você conversando comigo é a prova disso. Você continua viva, mas sem o corpo. Entende isso?
— E eu vou ficar assim pelo resto da vida, Edgar? Eu não lhe dei autorização para que fizesse isso comigo!
— Você estava em coma. Estava morrendo.
— E o que eu vou fazer sem um corpo? Quero chorar e nem isso consigo fazer!
— Eu vou arranjar um corpo para você, não se preocupe. Vai levar algum tempo. Preciso fazer algumas experiências. Por enquanto vou ajudar você a passar o tempo. Só peço que tenha um pouco de paciência. Estou de férias e temos bastante tempo para conversar.
— Me sinto horrível, Edgar. Estou acostumada a trabalhar, arrumar a casa, fazer o jantar e não posso!
— Quer assistir um filme?
— E a pipoca? Como vou comer pipoca e assistir filme se não tenho boca e nem estômago?
— Você se acostuma. O que quer assistir?
— Qualquer coisa pra me distrair.
Na manhã seguinte, Edgar acordou com Berenice chamando-o. Ele correu ao laboratório.
— Querido, estou com vontade de sair, passear. Ver pessoas, a natureza!
Edgar ficou surpreso, mas logo decidiu que precisava fazer alguma coisa. Ele teve a ideia de colocar o frasco num carrinho de bebê. Fez uma adaptação para o dispositivo debaixo do acento e o frasco por cima. Cobriu com um cobertor, deixando um vão aberto para que Berenice enxergasse o caminho e a paisagem. Colocou na Van e dirigiu-se para o parque da cidade.
Passeou com o carrinho pelos caminhos lajeados ensombrados e quem visse, achava que ele estava passeando com um bebê.
De volta a casa, Berenice disse:
— Eu também queria visitar a minha amiga Larissa.
— Infelizmente não vai dar. Eles sabem que você morreu, Berenice. Eles foram no enterro.
— Edgar, estou com coceira nos cabelos. Preciso tomar um banho e lavar a cabeça.
— Você não tem cabeça, só cérebro. Essa coceira é impressão sua.
— Sinto falta do meu corpo.
— Não se preocupe. Darei um corpo a você. Eu vou conversar com meu amigo Raul. Ele é um excelente neurocientista e vai me ajudar nesse projeto. Vamos fazer um clone de você.
***
— Como você está enfrentando o luto? - perguntou Raul, ao receber Edgar em seu apartamento.
— Tirei férias para poder enfrentar esse período tão triste. Tenho que aceitar a realidade e seguir em frente. E você com Mariana? Pra quando é o casamento?
Raul fez um gesto de desalento, falou num tom amargurado.
— Nem sei se vai haver casamento. Estou até pensando em desmanchar o noivado. Mari tem mudado muito. Está se tornando ranzinza, reclama de tudo, briga muito. Está insuportável. Berenice que era uma mulher formidável.
— Pois eu vim conversar com você a respeito dela. Lembra de nossos sonhos na época da faculdade? A gente sonhava em ser famoso. Eu dizia que queria ser cirurgião para poder fazer transplante de cérebro.
— Lembro, sim.
— Eu consegui, meu amigo. Não um transplante. Você sabe que Berenice estava doente e não tinha cura. Pois, antes que ela morresse, extrai o cérebro dela e o conservei ainda funcionado.
Raul ficou espantado e ao mesmo tempo curioso.
— Você tirou o cérebro de Berenice antes de ela ser enterrada?
— Exatamente. Conservei-o num líquido hidratante. Continua vivo, com as lembranças dela! E ela fala comigo. Criei um dispositivo para que isso pudesse acontecer.
— Tenho que ver isso.
— É necessário manter segredo.
— É claro!
***
Raul parou diante do frasco, olhou para o cérebro e os olhos e depois examinou o dispositivo ao lado. Edgar disse:
— Os neurônios estão saudáveis, as memórias preservadas, as funções conectivas funcionando perfeitamente. E ela fala, veja que acoplei um alto-falante para ela se comunicar. Berenice, diga alguma coisa para nosso amigo Raul.
— Como vai Raul? Já casou com Mariana?
— Eles não estão bem. –disse Edgar — Raul está pensando em se separar.
— Que pena! Vocês fazem um belo casal.
Raul encarou Edgar.
— Não estou ouvindo nada, Edgar. Você está delirando. Está louco se acha que essa coisa fala com você.
— Como? Não está ouvindo a voz dela, Raul? Não estou louco, não.
Raul segurou o amigo pelos ombros.
— Você deve se tratar. Berenice está morta e enterrada. Aquilo ali é um cérebro sem vida.
— Ele está mentindo, Edgar. Eu não morri.- disse o cérebro.
Edgar encolheu-se, levou as mãos à cabeça. Já tinha pensado naquela possibilidade de ser tudo uma ilusão.
— Você precisa se internar numa clínica para doentes mentais. Eu vou cuidar de você, não se preocupe.
***
Com um atestado de saúde falso, Raul conseguiu internar Edgar numa clínica. Sob efeito de tranquilizantes, ele aceitou a situação sem reagir.
Voltando à casa dele, Raul parou diante do cérebro.
— Como você está, Berenice?
— Bem. Agora você está me ouvindo?
— É claro que sim.
— Onde está Edgar?
— Infelizmente ele teve que se ausentar por um tempo. Não se preocupe que eu vou cuidar de você. Eu também tenho que dar uma saída, mas já volto.
Raul examinou a sala de cirurgia, limpou e preparou os instrumentos. Depois foi à casa de Mariana e a convidou para visitar Edgar. Disse que ele estava triste, sozinho, caindo em depressão por causa do falecimento da esposa. A princípio Mariana se negou a ir, mas depois mudou de ideia e acompanhou Raul.
Ao entrar na casa, Mariana notou a bagunça da sala
— Pelo jeito ele deixou a casa virar um lixo.
— Devemos tentar animá-lo, a não desistir de viver, a seguir em frente.
Enquanto falava, Raul pegou uma seringa sem que Mariana percebesse, segurou o braço dela e fincou a agulha em seu pescoço. A droga fez efeito imediato, antes que ela desmoronasse, Raul a pegou e levou para a sala de cirurgia. Colocou Mariana na maca. Vestiu o jaleco, as luvas, o gorro. Aplicou o soro no braço de Mariana, a anestesia local, depois raspou o cabelo dela. Desinfetou o crâneo e antes de abri-lo, foi buscar o cérebro de Berenice. Berenice que ele admirava, que tinha uma índole melhor que a de Mariana, além disso era mais inteligente e meiga. Berenice possuía um QI maior que o de Mariana. Assim julgava Raul.
Berenice percebeu qual era a intensão dele.
— Você vai me dar o corpo de Mariana, Raul?
— Sim. Mariana tem um belo corpo, mas um cérebro horrível e ela é ignorante, irritante por demais.
— E Edgar? Por que meu marido não está aqui?
— Edgar foi fazer uma longa viagem. Não se preocupe mais com ele.
Raul pegou a serra cirúrgica e abriu o crâneo de Mariana, retirou o cérebro e colocou num prato de aço inoxidável. Súbito, a porta se abriu num repelão.
Já na entrada, Edgar ouviu o barulhe da serra cortando o osso e percebeu qual era a intensão de Raul. O objetivo de Edgar era fazer um clone de Berenice, ter sua esposa de volta como ela era antes de morrer, não colocar o cérebro dela no corpo de Mariana.
— Desconfiei que você mentiu pra mim, Raul. Seu miserável!
Ele avançou para Raul e o empurrou sobre a mesa, tentando estrangulá-lo. Raul conseguiu pegar o bisturi e deu um corte no pescoço de Edgar. Ele perdeu o equilíbrio e acabou derrubando a mesinha com o frasco. O vidro caiu se quebrando em mil pedaços, o liquido se espalhou no piso e o cérebro rolou até a beira da parede junto com o par de olhos.
Edgar caiu de joelhos, soltando um grito horrível.
— Nãaaoooo!
Raul saltou sobre ele, ainda segurando o bisturi tentava cortar a artéria carótida de Edgar, que segurou o punho dele e com a outra mão pegou um caco de vidro do chão e enfiou no pescoço de Raul. Perdendo sangue, os dois morreram quase que ao mesmo tempo.
Os olhos de Berenice, que perdiam o brilho lentamente, olharam pela última vez para Edgar caído no chão. Enquanto os neurônios se apagavam um por um, o cérebro de Berenice perguntou:
— Se machucou, Edgar?
Fim
Tema; Invenções Científicas.