O Cadáver
Caminhava alegremente pela avenida de minha cidade, o motivo da alegria que não me recordo. Lembro-me bem de ser uma tarde muito bem pintada. O céu estava limpo, sem poluição e refletia os sete oceanos; o sol brilhava, ardia um pouco, mas não diminuía sua beleza. Os transeuntes até pareciam mais simpáticos, pouco comum. Porém, borraram aquela bela arte a qual eu contemplava. Uma voz chamou-me. Era o senhor Antônio, um comerciante que morava três casas a baixo da minha. Era também pai de Felipe, antigo amigo que prestou-me momentos de diversões na infância. Fazia dois anos que não o via. Fui até o homem que chamava-me. Sua aparência estava horrível, havia bolsas em seus olhos, lágrimas secas e uma melancolia que se fazia sentir à distância. Quando fiquei ao seu lado, disse:
---Jovem Pedro, lembro-me bem de ter sido amigo deveras de Felipe --- eu não entendia tais proposições, mas logo vim a saber. Ele continuou --- Felipe morreu, filho. Pegou uma doença terrível!
O Senhor Antônio pigarreou, choroso e angustiado. Eu não sabia o que dizer, apenas toquei em seus ombros e esbocei poucas palavras de solidariedade. Entretanto, para o meu medo e espanto, senhor Antônio disse:
--- Venha vê-lo, Pedro, não deixe Felipe partir sem uma despedida.
Nesse ínterim, encarando aquele homem tristonho, senti minhas espinhas gelarem. Ora, o dia estava tão agradável, agora um defunto aparecia para me causar assombro. As palavras sumiram de minha boca, todo gesto deixado pelo espanto foi um movimento positivo com a cabeça. O Senhor Antônio expressou um sorriso forçado e sinistro. Ele puxou-me pelos braços e levou-me para a sua casa.
Entrei confuso. Atravessei um curto corredor da entrada, ela dava diretamente para a sala de senhor Antônio. Chegando à sala, engolindo em seco, deparei-me com o interior da casa escura, havia pouca luz, as janelas estavam tapadas com cortinas pretas. Ali, na mesma sala, bem ao centro, apertada por dois enormes sofás, estava o caixão aberto; jazia ali o corpo de Felipe. Medroso, aos incentivos do senhor Antônio, caminhei até o defunto. Quando próximo o suficiente, olhei-o, aquilo me assustou deveras. Sem dizer nada, corri dali, daquela casa, não quis olhar para trás.
Mais tarde, naquele mesmo dia, contei o ocorrido ao meu amigo Adriano. Ele apenas disse:
--- Ora, você é um medroso! O que diabos poderia lhe fazer um defunto?
Sorri vexado, não gostava da alcunha que me davam de medroso. Porém, Adriano tinha razão: Faltava-me coragem. Depois de algumas conversas cheias de anedotas, fui embora.
Fui para casa saboreando o sol poente, deixando minha bela cidade rubra. Em breve Deus jogaria um cobertor escuro com estrelas luminosas para pintar aquela noite. A esse tempo eu já não lembrava mais de Felipe ou de defunto algum.
Depois de contado todo ocorrido ao meu amigo, ter sido satirizado e refletido diante do poente, cheguei a casa. Estava só, minha mãe havia ido visitar alguns parentes em outra cidade, não voltaria naquele dia.
Depois de ter passado por todos os ritos como banhar, jantar, ler um livro fui para cama dormir. O relógio apontava para mais de meia noite. Algumas horas depois, provavelmente às duas da madrugada, fui bombardeado por pesadelos. Acordei bastante assustado, ofegante e com muita sede. Senti preguiça de me levantar para buscar água, então revolvi voltar a dormir. De repente, um estrondo na sala repeliu todo o sono de meu corpo. Rapidamente, sentei-me na cama. Acreditando ter sido uma mera impressão por conta dos pesadelos, resolvi ir logo buscar um pouco d'água. Descendo as escadas, notei os sofás um tanto afastados um do outro, algo que não havia deixado antes de ir dormir. Aproximando mais, vi algo entre os sofás. Aquilo não era possível! Ali, na minha sala, dentro de minha casa, estava o mesmo caixão daquela manhã. Ele estava aberto, ao aproximar-me ainda mais, vi o corpo de Felipe. Paralisei. Queria que aquilo fosse um sonho, mas se era, não conseguia acordar. Tentei sair correndo, só não era correspondido pelo corpo. Como aquilo aconteceu? Porém, algo pior surgiu. Felipe abriu os olhos e lentamente começou a se levantar. Ele se movia com espasmos, parecia um boneco sendo guiado por cordas, era medonho e assustador. Os olhos esbugalhados encaravam-me, sua pele e rosto estavam pálidos. Saiu do caixão e caminhou até mim. Passos fortes, pesados e o modo como andava era terrível. Algo ocorreu ao meu corpo, finalmente tive forças para correr. Nunca mais voltei para aquela casa, mas ainda sou atormentado pelas aparições casuais de Felipe. O que ele quer de mim, jamais saberei.