O NECROTÉRIO
Não espero que acreditem nos relatos que adiante contarei, pois minhas próprias percepções se negam em aceitá-los.
José Trindade era um homem magro, de estatura mediana. Deveria ter uns sessenta anos.
Ele usava um tênis conga azul de jeans “cansado” e uma camisa “ustop” de dois bolsos com um maço de cigarro Arizona, cujas pontas do tabaco eram exibidas em um dos bolsos.
Trindade era vigia do supermercado Montreal na Cidade de Cárpoles ao norte do Estado do Paraná.
Até não sei por qual razão, contratavam um homem magrelo e fraco, que fumava mais que um motor de opala 1969 (e tinha apenas um cassetete na cintura), para ser vigia de supermercado das sete da noite às seis horas da manhã do dia seguinte.
Houvesse um conflito, certamente os ladrões, (normalmente armados), levariam a melhor.
Mas parece que o senhor Trindade era homem de respeito naquele lugar e já fazia mais de doze anos que vigiava o estabelecimento, sem nenhuma intercorrência.
E foi em uma noite dessas, mais precisamente em uma madrugada, que ele começou a ouvir barulhos, vindo do necrotério, que distava aproximadamente cem metros do supermercado e logo abaixo, mais uns cem metros era a “cidade da última morada”.
Os proprietários do Mercado nunca tiveram problemas com a clientela por causa disso, pois o mercado funcionava durante o dia e por essa razão, ninguém se preocupava com sua localização, pelo fato de estar próximo ao cemitério.
Mas naquela noite, Trindade ficou perturbado. Afinal, nesses doze anos, ele jamais teria ouvido aquele som peculiar.
Era um tipo de “voz” aguda e velha com uma certa rouquidão de tom feminino (com um tipo de presbifonia intensa) misturada a um crocitar de um corvo.
Ao mesmo tempo que a voz emitia aquele som peculiar, ouvia-se uma batida forte de latão dentro do necrotério.
Trindade, homem velho, vivido e sofrido, passara de tudo na vida e não tinha medo de nada. Só não enfrentara o diabo, porque o bicho ainda não havia cruzado seu caminho.
Mas, mesmo assim, naquela madrugada fria do mês de agosto, ele ficou impressionado, já que em todos esses anos, era a primeira vez que ouvia aquele tipo de coisa. Aquele som perturbador misturava-se ao canto agourento das corujas e ao barulho de grilos e tudo era escuro e absolutamente sombrio.
Ele acendeu seu lampião de querosene que sempre levava consigo (lá pelas duas ou três horas da manhã) e se dirigiu ao necrotério. As batidas no latão eram mais intensas e aumentavam significativamente quanto mais ele se aproximava.
Trindade clareou a parte de trás do necrotério e naquele dia não havia corpos, não havia cadáveres, guardados ali.
Ele conseguiu destravar uma das janelas e clareou forte o “farolim” de querosene.
Era uma criatura horrenda, um tipo de corpo inteiramente liso, que parecia ter estado em decomposição e retornado agora. Mas andava de mãos e pés nos chãos como se, de quatro patas, igual a um cachorro. Os olhos eram negros e brilhantes.
O velho Trindade ficou branco e balançado e sentiu um forte arrependimento por não ter comprado um 38 do compadre Atanásio quando teve oportunidade, pois assim, teria estourado os miolos (se é que havia) daquela coisa horripilante.
Mas, aquele espírito deformado e com aparência extraterrestre emitiu uma voz rouca, trêmula e assustadora que o vigia conseguiu ouvir. O grito disse em um tilintar medonho:
“Sepultura 21”.
José Trindade, correu mais do que podia e desceu, pulando o muro do cemitério, adentrou à ala direita em direção ao jazigo 21 e ouviu vozes de desespero e socorro.
Ele “voou” de volta para as proximidades do mercado e apanhando as ferramentas, novamente desceu em direção à sepultura 21 e com cuidado removeu o concreto ainda mole.
Seu horror aumentou ainda mais quando uma moça morena de vestido vermelho, correntes, anéis e brincos de ouro pelo corpo, saiu correndo ofegante e em desespero, aos gritos insanos que ele não mais conseguia definir.
Ele recordou que, naquele mesmo dia, havia falecido a filha do maior fazendeiro de Cárpoles.
Ao subir de volta, José Trindade estava abatido, assustado e confuso.
Ele iria arrombar a porta do necrotério e entrar, quando o corpo médico do hospital de Cárpoles trazia mais um corpo para ficar ali até o velório do dia seguinte.
Tremendo forte e sem entender nada, ele apenas ouviu quando o coveiro do cemitério chegou ao necrotério e confirmou aos médicos:
“Ela será enterrada amanhã, na sepultura 21, seus pais já deixaram tudo certo”.
Era a moça morena de vestido vermelho, correntes, anéis e brincos de ouro pelo corpo, exatamente a mesma da sepultura 21 que ele teria avistado e que agora, era trazida para “repousar” no necrotério até seu velório e sepultamento, no dia seguinte.
José Trindade voltou à sepultura e havia apenas um buraco aberto, preparado para sepultamento.
Ele partiu de Cárpoles no início daquela manhã cinzenta, sem que nunca mais ninguém tivesse qualquer notícia dele.