O Moço do Bolinho - Um Conto de Terror
Tamanha foi a alegria das crianças, que ficava impossível ter qualquer pensamento triste, ou achar que a tristeza poderia se fazer presente ali. Mas a gente não consegue ver a chuva chegar, caso não haja nuvens.
A cidade recebia o circo. Não era um circo muito famoso, nem de qualidade inquestionável. Era um circo que se dizia colombiano, mas no qual todos os funcionários, sem exceção, falavam em um portunhol improvisado, que muitas vezes, dava lugar ao mais genuíno português brasileiro popular.
Na frente do circo, que tinha uma lona desbotada que mal dava para diferenciar o azul do roxo, e o vermelho do laranja, um senhor barbudo, de cabelos ralos e barba branca, porém com pequenos tufos de poeira negra, distribuía panfletos alegremente. Sua aparência chamava a atenção por ser um senhor de idade, algo perto dos oitenta anos, mas se portar de pé, sem encurvar sua coluna, do alto de seus quase dois metros de altura.
- O Circo chegou! A Alegria também! Venham! Venham! – Dizia ele, em alto e bom tom, usando como um improvisado megafone uma lata de óleo enferrujada qual o fundo ele mesmo havia retirado.
As pessoas passavam por eles e sorriam de volta. Os jovens, outrora o público alvo daquele circo anos antes, passavam apenas filmando para suas redes sociais de vídeos instantâneos, buscando aprovação e interação de seus seguidores. Eles não estavam interessados naquilo. Para eles, aquela coisa apenas tirava deles a praça e o campo de futebol aonde fora instalado.
Mas as crianças sorriam e se divertiam. Na lateral, próximo aos foodtrucks ainda fechados naquele começo de tarde, um palhaço de roupas vitoriana, calças largas e maquiagem bem viva surgiu fazendo malabarismo com maçãs do amor. Ao seu lado, uma dançarina magricela, com os cabelos penteados para trás e assim mantidos com algum tipo de óleo, parecia o apresentar para os pedestres. O circo iria estrear naquela noite de sexta-feira. Naquele horário, as crianças estavam saindo de suas escolas. E elas sim, queriam conhecer o circo.
...
Então a noite chegou. A praça estava cheia, mas a grande maioria das pessoas estavam ali no Happy Hour, bebendo suas cracudinhas (garrafas de cervejas menores), comendo espetinhos de carnes de procedências duvidosas, e tentando de alguma forma, conseguir alguém para beijar e terminar a noite juntos. Aliás, falando na carne, a fumaça da churrasqueira tomava conta do local, dando um ar de neblina artificial, seguida pelo cheiro inconfundível de carne sendo torrada no fogo e carvão.
Duas crianças brincavam próximas ao escorrega da praça. Os demais brinquedos deviam ser interditados, pois ou a ferrugem já se tornava nociva às suas vidas, ou a madeira já corroída, poderia causar cortes bem perigosos. As crianças, jogavam bola. E logo repararam que, do outro lado da rua, próximo às caçambas de lixo, amarrotadas de restos que ali permaneciam por dias, sem qualquer serviço de coleta, um homem amigável, todo vestido de branco e segurando um tabuleiro de madeira, preso ao seu pescoço por um pedaço de elástico grosso, olhava para elas.
Com pouco mais de oito anos de idade, elas se encantaram com aquela figura que sorria do outro lado. Seu chapéu parecia um barquinho de papel bem dobrado, e suas roupas brancas se sobressaíam em meio ao breu e sujeira onde ele estava parado.
As crianças eram primos. Uma menina e um menino, e por alguns instantes, esqueceram de olhar para a bola com a qual brincavam. Estavam apenas curiosas com aquela figura tão pacífica do outro lado da praça, e que parecia que somente eles podiam ver.
Um flash surgiu e os cegou por alguns instantes. E quando puderam enxergar novamente, ao redor do homem, haviam mais crianças, algo em torno de dez ou quinze. Todas sorrindo, e sendo servidas por ele. Aquela figura, aquele homem de branco, dava-lhes bolinhos. Na verdade, cupcakes lindos, enfeitados, deliciosos. Felizes eram aquelas crianças, lambuzadas de creme, chocolate, doce de leite...
Como? Como era possível? Elas agora ouviam, em notas musicais que pareciam sair de um xilofone, a canção “O Moço do Bolinho”. E novamente sorriram. Era ele... ele existia. Não era tipo o Papai Noel, que eles sabiam que era, na verdade, o Tio Paulo quem se vestia...
Vocês conhecem o moço do bolinho? O moço do bolinho? O moço do bolinho? Vocês conhecem o moço do bolinho, que vive aqui pertinho – cantava ele com sua voz doce, mas que parecia sobreposta por outra voz mais grossa.
Nesse instante, as crianças jogaram seus bolinhos para cima e fizeram uma roda ao redor do Moço. E assim, começaram a cantar, enquanto ele, sorridente e olhando para o céu da noite, com seus olhos aparentemente totalmente brancos e leitosos, dançava sem ritmo.
Sim, conhecemos o moço do bolinho! O moço do bolinho! O moço do bolinho! Sim, conhecemos o moço do bolinho que vive aqui pertinho. – respondiam animadas enquanto rodavam.
De repente, outro flash. Os dois primos se cegaram, e a visão, desta vez, demorou um pouco mais para voltar. Tateavam ao redor tentando encontrar um ao outro, mas não conseguiam. Ouviam risadas, e ao longe, o xilofone ainda tocava a música, que estava se tornando assustadora devido à velocidade que era ouvida. Mais lenta, mais grave, como se a bateria de um instrumento que não necessita de bateria estivesse fraca.
Aos poucos a alegria e curiosidade deles foi sumindo. E a música, agora praticamente sem vida, foi acompanhada pelo cheiro de massa de bolo queimada. Eles não ouviam mais as vozes, ou sentiam cheiro de churrasco. Sentiam calor, muito calor. Como se estivessem ao lado de um forno. Tentavam gritar, mas de suas bocas, saía calda. Podiam reconhecer o sabor de morango, com algumas sementes. Depois, baunilha, chocolate, até que sentiram um gosto que não souberam reconhecer de primeira. Mas a menina logo se lembrou da tarde em que estivera no dentista após quebrar um dente. E o gosto era de sangue. Sangue vivo. Sangue dela. E aos poucos ela já não conseguia mais respirar pela boca. E a tentativa de gritar era inútil. Sua visão, antes leitosa, apenas reconhecendo cores e luzes, se apagou.
UM FLASH...
Os fogos começaram a explodir no céu, e o palhaço de quase dois metros abriu as portas do circo. Duas mulheres chamavam por dois nomes em meio à multidão, mas não eram respondidas. Estavam começando a ficar nervosas. Mas logo esse nervosismo daria lugar ao pânico, ao medo, à tristeza. Uma outra mulher que bebia em um bar deu um grito agudo de desespero. Todos imediatamente olharam para ela, que se encontrava perto das caçambas de lixo, num canto da praça que já havia sido motivo de reclamação com as autoridades por meses, devido à falta de serviços de coletas urbanas de lixo.
Com as calças arreadas, e com pingos de xixi caindo sobre elas. A mulher parecia não acreditar no que via. Duas crianças, sem vida, com suas bocas abertas de maneira assustadora, fora do normal, e dorsos totalmente virados, como que se torcidas, jaziam em meio ao lixo e à pilhas de bolinhos.
Ao longe, um homem todo vestido de branco seguia dançando, cercado de crianças, jogando bolinhos intermináveis para cima, e agora, com dois novos seguidores cantando junto, e sem perceberem ou fazerem qualquer ideia de para onde estavam indo.
No dia seguinte, todo o circo sumiu da noite para o dia. E a prefeitura... Finalmente foi lá retirar as caçambas amarrotadas de lixo.