Certamente Abril é o Mês Mais Cruel

Pensei mais uma vez em tudo o que ocorreu e, para ser sincero, eu queria ter deixado registrado as memórias daqueles tempos. Eu estava destruído por dentro, sem propósito, andando entre ruas onde todos os postes da cidade eram decorados por anjos e estrelas de Natal, na noite quente e abafada, contrastando o espírito natalino com as garotas de programa ocasionalmente me chamando e os bares funcionando para além do horário permitido. Bebia ainda nesta época, mas eram dias que eu evitava beber. Sabia que a dor da solidão era maior quando não há limites para o que falar ou sofrer.

Passei no mercado e saí com uma garrafa de água com gás e outro maço de cigarro. Eu usava sapatênis na cor marrom e jeans azul desbotado na altura do joelho. Minha camiseta vermelha sem estampas logo abaixo de uma camisa social preta não era porque eu queria aderir ao espírito da temporada de fim de ano. Era coincidência. De onde eu estava, eu caminhei ainda no estacionamento, primeiramente porque a vista para a avenida principal da cidade aliviava a sensação de importância. Parei por alguns momentos observando os veículos abaixo e um prédio onde o letreiro iluminado quebrado somente permitia-se ler a palavra boulevard.

--Ei, Vinny? -- desde a época do ensino médio eu não via Bianca. Sentia vergonha de ser visto fumando, mas ela continuou. -- Vinny, quanto tempo!

-- Pois é, gostei do que fez com seu cabelo, e aí, o que tem feito da vida? -- De fato, gostei. Diante de mim se encontrava uma garota magra, mas com uma aparência diferente de quando eu a vi na escola. Ela usava cabelos castanhos, com uma franja reta. Seus cabelos continuavam para as pontas artificialmente onduladas, mas que combinava com o seu visual como um todo. Tênis All-Star vermelho com meia de rede na cor preta até os joelhos, saia plissada xadrez em tons vermelhos e blusa de alcinha preta com uma ilustração do Junji Ito. Seu rosto delicado não eram em nada afetado pelos óculos vermelhos, pelo contrário, eles realçavam sua beleza natural, mas, obviamente, não sou a pessoa certa pra falar de maquiagem.

-- Bom, semana passada fui ao casamento do meu irmão. Agora é apenas eu e minha mãe na minha casa. Lembra dele?

-- Se eu lembro? O Bruno era legal, gostava de ver ele tocando violão.

-- Não sei, mas ao ter que ouvir a mesma pessoa tocar a mesma música sem parar, eu fico -- gesticulou como tampando os ouvidos. Ri da expressão que ela fez. -- E você?

-- O de sempre, trabalhar, ir para casa, trabalhar novamente. Digo que tem sido bem parado. -- não ajudava quando eu sentia meus amigos evitando a minha presença. Ou se casando. Ou simplesmente desaparecendo sem dar sinal. Quem eu vi este ano? Consigo contar nos dedos.

-- Mas é assim mesmo, lembra da Talita, que andava sempre comigo? Eu visitava a casa dela, desde então nunca mais a vi. Ligo, a mãe diz que não está. Ela não responde minhas mensagens. Falando nisto, mudou de número? Tentei te ligar para falar "feliz aniversário" e não consegui.

-- Olha, saímos do ensino médio já faz cinco anos, eu nem imaginava que ainda tinha meu número. -- para ser honesto, não mesmo. -- Mas anota o meu celular, será menos provável que eu mude de número.

-- Haha, era exatamente o que ia pedir. E, Vinny...

-- O quê?

-- Ainda continua escrevendo? Eu adorava seus poemas.

--Haha, ocasionalmente, mas, não sou um escritor profissional.

-- Mas devia investir nisto! E em tocar guitarra! Aposto que abandonou, sim?

-- Na mosca.

-- Há algo de errado?

-- Bom, haha, eu te reencontrei depois de tanto tempo e quer que eu desabafe?

-- Se sentir vontade.

-- Bom, quando fiz vinte e um, eu e minha ex discutimos. Aparentemente a mãe dela tinha receios de eu virar empecilho já que ela conseguiu cidadania italiana e elas pretendiam ir para o exterior. Ela disse que nosso relacionamento seria difícil de se manter pela distância. Serei honesto, eu queria e ao mesmo não queria que ela fosse.

--Quem quer, tenta. Se ela não tentou, iam terminar mais cedo ou mais tarde, se anime! Bom, preciso fazer as compras, mas depois nos falamos.

Com um selo seco no rosto dela e vendo seu sorriso e aceno, me despedi. Com o tempo, fiquei mais e mais intrigado com ela. Eu estava no segundo semestre de psicologia e querendo jogar tudo para o alto, ela estava no primeiro semestre de letras, e a paixão que ela demonstrava era superior a tudo o que sonhei. Ela me causou parar de fumar, melhorar o humor, melhorar minha relação com o trabalho e as pessoas, me fez, da noite para o dia, ser o meu melhor.

Um dia, combinamos de assistir a um filme. Após conversarmos a respeito do mesmo sentados em uma mesa, comendo um lanche de fast-food decidimos passear um pouco. Nosso beijo, no estacionamento, selava o inevitável: os últimos meses me apaixonei por Bianca, seu jeito animado, apaixonante, e eu tinha boas relações com a mãe dela, que era uma senhora dedicada ao trabalho, embora sentisse saudades do filho.

Liguei o carro e levei-a para casa. Riamos, nos divertíamos, e ela era o centro do meu mundo. Eu não conseguia tirar os olhos dela, mesmo enquanto dirigia.

Admito que a culpa é minha que não tivesse reparado que ela evitava falar do pai dela. Que a mãe dela ainda usava aliança de casamento e eu não reparava haver alguma coisa errada. Ao chegar na casa dela, um homem de barba para fazer, irritado, com uma garrafa de cerveja nas mãos e me fuzilando com o olhar apareceu.

-- Eu, te ligo depois -- disse ela.

-- Não é melhor eu abrir a porta pra você e ir falar com ele?

-- Não! Eu, eu te ligo depois -- disse ela com a voz tremula. Eu a conhecia bem para saber que algo estava errado.

Este depois virou minutos, que virou um dia, que virou uma ligação. Fui questionado sobre a última noite com ela. Alguns dias depois o enterro, onde vi rostos de parentes semi desconhecidos para mim e muitas lágrimas naquele mês de abril.

Certamente Abril é o mês mais cruel.

Hoje, após anos, sei que só resta a mim, limpar a cova. Fiquei sabendo da notícia que o culpado -- o pai dela, que a agrediu, molestou e depois a assassinou -- ainda tem vinte anos de pena para cumprir, mas, embora a lei não permitisse normalmente, conseguiu indulto de Natal.

Hoje, não há mais anjos iluminando a noite. Não há mais Bianca para preencher minha vida de alegrias. Deveria ter registrado melhor os momentos que passamos a dois.

Seriam as últimas coisas que o monstro veria antes de morrer.

Psycho Vincent
Enviado por Psycho Vincent em 02/01/2023
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