A COMPANHEIRA DAS ÚLTIMAS HORAS

Lençóis, BA (novas lendas)

Uma mulher fora constantemente violentada e espancada, tantas e tantas vezes… que acabou morta. E isto não conta nada da história… Ela tinha sido maltratada 999 vezes em dez anos e contava cada surra que levava de seu marido e malfeitor, cada absurdo que sofria… Entrava no cemitério contando as chagas enquanto arrancava mato e enfiava-os na bolsa. “De tanto apanhou que ficou louca.” diziam. “Novecentas. Eu aqui…”, ela dizia. E então, se debruçava no túmulo de qualquer pessoa e chorava… “Novecentas e vinte e três. Eu aqui…”, dizia, arrancando um mato e se escorando numa cruz. Ossos doídos… quebrados… olhos roxos… Tufos de cabelo faltando… Maus-tratos… raquítica… íris perdida no tempo… moradora da lua e das estrelas. Sonhadora da fuga que nunca vinha. Quando afinal a violência de número 1.000 chegou… A mulher cortou os próprios pulsos e deitou-se de braços abertos em forma de cruz, numa grama do cemitério. Foi encontrada com olhos de quem estava prestes a sorrir… Aqueles olhos de quem acaba de acordar e encontra um céu bem azul. Olhos de quem vê um primogênito gargalhar pela primeira vez… "Ela deve ter dito assim: ‘1000, e eu aqui.’", disse o coveiro. Olhos de quem encontrou o mar…

Dizem que até hoje – muitos anos após a tragédia, que na verdade ninguém se importou – ainda pode-se ouvir no hospital. Que é ali bem pertinho… A voz e os lamentos. Algumas mulheres em leito de morte (e alguns médicos e enfermeiros também) puderam ouvir. Algo entre doce… e muito assustador….Era algo que, atingindo nossos ouvidos vivos; fazia-nos desfalecer imediatamente sentados, amolecidos de tristeza e pavor. Mas… Aquelas que estavam quase morrendo, não se sentiam assim. Tinham um olhar parecido com dela. A viam de branco, por todos os lados. E a ouviam… perambulando pelo hospital. E sua voz as acalmava. Ela deixava um matinho ao lado do pé de cada uma delas dizendo em seguida: “E nós aqui…?”. “Não estamos sozinhas, amém…”, respondiam antes de morrer.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 25/12/2022
Código do texto: T7679238
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