Quando a bruma do mistério se dissipou -CLTS 21
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma "
(SONETO DE SEPARAÇÃO)
*
Mabel ouviu o som de algo batendo forte na janela. Pensou ter sido o vento ou algum galho. Olhou na direção do barulho de forma sonolenta esperando não ver nada fora do normal, mas o que viu a surpreendeu e a fez gritar. Havia um pássaro esmagado na sua janela. Não qualquer pássaro, mas um certo animal que sempre povoava os seus pesadelos desde que ela tinha ouvido uma história sobre ele.
Uma mistura de sangue e penas deixava o pássaro grudado na janela. Sem reação ela viu lentamente ele ir escorregando até que somente a mancha ficou no vidro. Quando o estado de choque estava passando ela foi atingida por um susto ainda maior. Um forte som de vidro quebrado tomou conta de todo o quarto no momento em que um pássaro parcialmente esmagado e com uma asa torta invadiu seu quarto. A menina gritava sem conseguir correr devido ao choque e se perguntava porque seus gritos não tinham acordado a sua mãe e o seu irmão mais novo.
Mabel acordou ainda gritando, mas aliviada por ter sido somente um sonho. No mundo real seus gritos chamaram a atenção da sua mãe.
-Querida? Está tudo bem?
-Foi só um sonho. Está tudo bem. -Mabel tentou tranquilizar a mãe. Não queria a deixar preocupada e além disso a menina achava que ela já tinha idade para encarar o pesadelo. Ela e a mãe ainda conversaram por um tempo, antes de ambas irem dormir.
A mãe logo deve ter pego no sono, mas a menina ainda demorou para dormir. Encarando o teto ficava pensando que fazia anos que ela não sonhava com esse pássaro. Sua mente voltou ao passado para onde tudo começou.
Antes de ser adotada, Mabel morava em um orfanato. Nesse local uma das professoras costumava ensinar história por meio de lendas e mitos de povos antigos. A menina amava essas aulas, até que um dia sua professora contou a lenda de um pássaro chamado Tunkuluchu que segundo os mitos maias costumava sobrevoar as aldeias para assustar os moradores , pois todos temiam que ele anunciasse tragédias.
A professora continuou falando sobre o significado histórico dessa lenda, mas Mabel não ouvia mais nada, pois estava com medo do tal pássaro. Algumas noites chegou a sonhar com isso e quando andava pelos corredores escuros do orfanato tinha quase a sensação de que podia ouvir ao longe o bater de asas e um canto distante que parecia querer a assustar, era quase como se o som da ave dissesse que ela poderia ficar no orfanato para sempre. Por aqueles corredores o medo do pássaro a seguia e assustava como o medo de nunca ser adotada.
Quando foi adotada os dois medos sumiram. Os corredores escuros do orfanato eram um combustível para pesadelos, enquanto a casa de sua nova mãe parecia saída de um conto de fadas. Os sonhos com o tempo pararam e ela nunca mais pensou no pássaro, até aquela noite.
-Foi apenas um sonho. - disse decidindo voltar a dormir. Ela já tinha dezesseis anos, não era mais a garotinha de dez anos que se assustou com a lenda.
Foi apenas fechar os olhos e dormir para os estranhos sonhos voltarem. Dessa vez ela se viu na rua da sua casa, mas o local estava totalmente coberto de neve e envolto em uma bruma pesada, como a que aparece no começo de manhãs frias. O estranho pássaro estava sobrevoando o local e se atirando contra as janelas das casas e um som de vidros se quebrando eram ouvidos. Até que a ave parou no ar e mesmo através da camada de névoa, Mabel sentia que ele olhava na direção dela. A menina recuou, mas logo ficou claro que o olhar não era direcionado para ela.
O pássaro olhava na direção de um menino que brincava distraído na neve e voou acima dele como se quisesse a atenção dele. Mabel também olhou naquela direção e não conseguiu segurar um grito quando de repente o garoto foi atingido diretamente no olho por uma estrutura de metal pontiaguda, semelhante a usada para reconhecer folhas no outono. Mabel correu para o ajudar, mas quando estava perto o objeto de metal foi arrancado de vez do rosto do menino.
O garoto parecia dopado, não reagia. Mabel gritou por eles dois quando viu a pessoa que o atacou. Ela se viu diante de um homem segurando em uma mão a haste de metal e nas costas levava um saco. Ele poderia ser confundido com as pessoas que recolhiam e levavam as folhas de outono em sacos, se não fosse o detalhe de sangue escorrer do saco de pano e dele ter um olho espetado no objeto de metal.
Acordou ainda mais assustada desse sonho. Levantou da cama meio zonza e desceu para tomar café da manhã com sua família.
-Bom dia querida, você parece exausta. Não conseguiu voltar a dormir?- perguntou sua mãe.
-Acabei perdendo o sono, mas está tudo bem. O Robert está dormindo até mais tarde?- perguntou tentando mudar o foco para o irmão.
Sua mãe ia responder quando alguém bateu na porta e ela se levantou para abrir. No silêncio que ficou no ambiente a mente de Mabel sempre voltava ao sonho e para aquela aula de história do passado em que ouviu a lenda do pássaro. Ela tentava lembrar algo que sua professora havia dito sobre o pássaro, porém não conseguia. Sentia que era importante e que a informação estava no seu subconsciente, mas não conseguia vir para a superfície.
Ainda estava pensando nisso quando sua mãe entrou novamente na cozinha carregando um buquê de flores. Mabel ficou feliz ao ver o sorriso no rosto da mãe e ficou ainda mais feliz por ela ter achado um marido que a entendesse do jeito que ela era. Alguém como ela.
Conforme ia ficando mais velha, Mabel passou a notar que sua mãe não mostrava interesse por relacionamentos românticos. Pensava que era porque ela tinha focado na carreira, mas um dia Mabel descobriu o que estava por trás. Quando Mabel começou a namorar pediu um conselho para sua mãe. E ela meio sem graça respondeu:
-Não sou a melhor pessoa para lhe aconselhar sobre isso, mas posso tentar. Nunca realmente beijei. - sua mãe ficou um tempo em silêncio e depois completou -Depois de adulta que fui entender melhor o porque e descobri que era assexual.
-O que é isso?
-Alguém que não sente interesse por… por contatos mais íntimos e isso dificulta um pouco achar pretendentes.
-Sei que um dia a senhora vai achar alguém. Deve ter mais gente como a senhora por aí.-disse Mabel tocando no braço da mãe e lhe dando apoio.
E realmente tinha. Ela conheceu um homem que assim como ela era assexual e eles tinham casado há quase dois anos, juntos tinham adotado o irmão caçula de Mabel. A menina torcia para que tudo continuasse correndo bem e por isso não podia incomodar a mãe com os seus sonhos. Ela queria que a mulher focasse no relacionamento e no irmão caçula de Mabel que precisava de mais cuidados por causa da doença rara que tinha.
-Seu pai vai voltar de viagem só daqui há alguns dias, mas ele já mandou um agrado. - falou sua mãe colocando as flores em um vaso.
Mabel estava realmente feliz pela mãe, mas ela não conseguia demonstrar isso porque tudo que ela queria era dormir. Em algum momento acabou pegando no sono antes que sua mãe terminasse de fazer a vitamina do seu irmão e organizar os remédios dele.
Ao abrir os olhos no mundo dos sonhos se viu novamente naquele cenário coberto de neve, mas dessa vez estava em uma floresta próxima da sua casa. As árvores estavam sem folhas e havia um nevoeiro ao redor. Um bater de asas se ouvia ao longe. Mabel correu e deu de encontro com uma pessoa que se aproximava, oculta na bruma. Era sua professora da época do orfanato. Ela falava, mas da sua boca não saia som.
-Não consigo entender, direito. - a menina disse praticamente implorando por respostas.
-Mabel.-acordou com a mãe lhe chamando. Ela estava com uma expressão preocupada.
A menina disse novamente que tudo estava bem e que a mãe não precisava se preocupar. Mabel tinha esperança que as coisas iam melhorar e os sonhos iam passar como passaram da outra vez.
*
As coisas não melhoraram no dia seguinte e no outro dia as coisas pioraram ainda mais. Em plena madrugada Mabel estava acordada, tomando uma mistura de refrigerante com café para não dormir e tentando entender o que estava ocorrendo. Ela aproveitava que estava acordada para pesquisar e correr atrás de todas as informações disponíveis sobre o mito do pássaro Tunkuluchu. Mabel logo notou que para encontrar mais informações era preciso uma pesquisa muito mais profunda, porque tinha menos informações sobre os mitos maias do que os mitos de outros povos.
Em meio a livros que pegou na biblioteca, uma página aberta na internet e papéis com anotações, Mabel tentava entender porque o pássaro tinha aparecido para ela e o que exatamente era o pássaro. Tinha achado muitas teorias, algumas defendendo o pássaro e dizendo que ele era mal compreendido e outras tentando tornar tudo mais assustador e dizendo que ele era uma ave vingativa que conhecia o cheiro da morte. Achou até uma teoria de que o pássaro era um alien viajante no tempo que por isso anunciava as coisas antes de ocorrer. Surpreendentemente Mabel notou muitas páginas na internet e ufólogos que levantavam a teoria que os maias tiveram contato com aliens.
A última coisa que Mabel precisava eram teorias que a deixassem mais confusa. Pensou seriamente em voltar até o orfanato e falar com sua antiga professora. Pensou em procurar mais informações sobre os pais biológicos, talvez eles fossem a resposta. Talvez eles fossem de alguma forma descendentes de alguém relacionado aos maias e talvez por isso o pássaro tenha grudado nela. Dormiu mais confusa do que estava antes.
Acordou de uma noite de sonhos confusos com neve e névoa. A primeira coisa que notou foi que seu irmãozinho tinha entrado no seu quarto e estava lendo as páginas e papéis que ela tinha deixado jogado pelo chão.
Robert gostava muito de ler e era muito curioso, mas Mabel preferia não falar nada do pássaro para ele para não o estressar, pois seu irmãozinho já tinha problemas suficientes.
Robert tinha uma doença rara chamada porfiria, o que o deixava meio anêmico e não permitia que ele pegasse muito Sol. Essa doença tinha assustado os pais biológicos do garoto que o abandonaram no orfanato achando que ele era algum tipo de vampiro. Os pais de Mabel, penalizados com a história, o adotaram e cuidaram dele. A doença estava sob controle, mas mesmo assim era bom ele evitar muito Sol e estresse.
-Bom dia, Rob.- disse Mabel tentando sorrir para o irmão e o chamando pelo apelido carinhoso. - Deixe esses papéis aí e vamos tomar café.
Por um momento seu irmão continuou lendo e não a respondeu. Quando tocou no braço do irmão para chamar a sua atenção notou que tinham marcas vermelhas no local, típicas de quando ele ficava muito tempo no Sol.
-Rob, porque você ficou tanto tempo no Sol? Você sabe que não pode.- perguntou Mabel olhando mais de perto as marcas.
Robert lhe olhou com o olhar de uma criança pega fazendo travessura e disse:
-O pássaro me bicou e por isso ocorreu as marcas, não foi por causa do Sol.
Mabel sentiu um arrepio e em questão de segundos arrancou os papéis da mão do irmão e os rasgou. Não sabia como reagir, mas no momento pensou que destruindo os papéis iria deixar o pássaro longe do seu irmão. A atitude assustou seu irmão que começou a ficar com os olhos cheios de lágrimas.
-Desculpa, Rob. - puxou o irmão para um abraço e se desculpou. Enquanto o abraçava sentia seu coração bater mais rápido. Precisava se acalmar e por isso disse para si mesma que Robert às vezes fugia para brincar no quintal em momentos em que ele não poderia pegar Sol e que devia ser isso que ocorreu e provocou as marcas.
*
-Seu irmão está um pouco estranho hoje. - comentou a sua mãe se sentando no sofá com ela. - Na verdade estou preocupada com vocês dois. O que está ocorrendo?
-Está tudo bem.- disse Mabel se culpando por ter deixado transparecer que tinha algo errado. Mudou o foco para o irmão que precisava de mais cuidados- E o que tem o Robert?
-Ele passou quase o dia todo brincando no porão e levou até algumas coisas do quarto dele e da cozinha para lá.
-Acho que como ele não pode ficar muito tempo no quintal por causa do Sol, ele arrumou outro lugar para brincar. Tenho certeza que está tudo bem.
Sua mãe parecia que ia discordar dela, mas mudou de ideia e apenas disse:
-Seu pai vai voltar hoje de viagem. Ele está muito preocupado com vocês.
Quando a mãe disse isso, Mabel sentiu que o que ela mais temia estava ocorrendo.A menina tinha escondido a história do pássaro, tinha enfrentado os pesadelos sozinha para evitar que essa história afetasse sua família, mas no final isso ocorreu de qualquer jeito. A volta para casa de seu pai, que era para ser uma chance de um reencontro romântico com a esposa, acabou virando uma volta de emergência por causa dos filhos. Mabel se sentia culpada.
Ela estava se preparando para responder quando um barulho assustou as duas. O gato de estimação deles tinha saltado em direção à janela somente para bater no vidro. Ele não parecia ter se machucado e se preparou para mais um salto.
-Até o gato está estranho hoje. Ele durante a tarde ficou querendo caçar o vento. Acho que ele está com saudades do seu pai. Acho que todos nós estamos. Mas ele está voltando e as coisas vão ficar mais calmas.
Mabel notou que a mãe falou isso mais para si mesma do que para a filha. Ela também parecia mais tensa que o normal. Abraçou sua mãe e as noites mal dormidas cobraram o seu preço. Adormeceu nos braços dela e dessa vez não teve sonhos.
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A tarde passou e veio a noite e Robert saiu do porão apenas para jantar e depois voltou para o local. O gato que estava agindo estranho se juntou ao menino no local. Mabel e a mãe na porta tentavam convencer o garoto a sair de lá para ir dormir no quarto dele.
Mabel via a preocupação visível no rosto da mãe. Ela tentava entender o que estava ocorrendo com o filho e temia que a porfiria estivesse afetando o comportamento dele. Que o tratamento tivesse que ser atualizado.
O pai de Mabel chegou e encontrou as duas no porão tentando convencer Robert a subir. Depois de muita conversa e vendo que não tinha outra opção toda a família decidiu ir dormir lá com ele.
-Vai ser divertido. Tipo um acampamento no porão. Tenho certeza que isso vai alegrar ele e amanhã ele vai sair de lá. Ele quer só atenção e a família reunida.- falou seu pai um pouco antes de convencer a sua mãe.
Uma vez que todos estavam no porão a ideia não pareceu tão ruim. Mabel também sentia falta de fazer algo junto com toda a família. Em algum momento eles estavam contando histórias de acampamento e rindo. Nesses momentos a menina até esquecia que eles estavam se preparando para dormir em um porão da época da guerra fria. Naquele momento era também como se o pássaro deixasse de existir.
Estava quase adormecendo quando um barulho alto a acordou. As luzes apagaram de repente e eles tiveram que ligar as lanternas. Seu pai os tranquilizou e disse que era só uma queda de luz, mas depois tudo chacoalhou e Mabel bateu sua cabeça e sentiu tudo apagar.
Quando acordou no mundo dos sonhos se viu novamente no orfanato. O baque na cabeça tinha mexido com suas lembranças e entre cenas confusas ela finalmente ouviu as palavras da professora.
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Quando acordou novamente se viu em um hospital, sua cabeça estava enfaixada. Notou que o local estava cheio e parecia ser um hospital improvisado. Seus pais e seu irmão pareciam emocionados quando a viram acordar e a encheram de palavras amorosas. Sussurrando perguntou o que estava ocorrendo, porque conforme olhava ao redor notava que parecia ser um hospital improvisado e que alguns médicos circulavam com roupas diferentes, parecidas com roupas de astronautas, conforme iam para umas áreas isoladas do hospital.
Sua mãe com os olhos cheios de lágrimas não conseguia encontrar palavras. Seu pai colocou a mão em seu ombro e seu irmão apontou na direção de uma televisão que ficava um pouco distante de onde eles estavam .
Na televisão apareciam imagens que mostravam mais pessoas vestidas como os médicos. Eles andavam por um cenário que parecia coberto de neve, mas quando ela olhou mais detalhadamente sentiu um arrepio quando notou que eram cinzas que cobriam as ruas e pareciam cair a todo momento. As árvores que apareceriam em alguns locais estavam totalmente sem folhas. Algumas imagens aéreas mostravam locais envoltos em uma fumaça tão espessa quanto bruma.
Mabel afastou os olhos da televisão não aguentando olhar para aquilo, porém ao olhar para a cama do lado notou um garoto com um curativo no local onde antes tinha um dos olhos. Desviou os olhos para a sua família e se jogou nos braços deles, estava grata por eles estarem todos juntos e relativamente bem. O porão deve ter amenizado a explosão mostrada na televisão.Ainda envolta em braços amorosos ela tentava assimilar tudo, relembrando as palavras de sua professora:
-No tempo dos maias tinha guerras entre tribos que provocavam tragédias e destruição, por causa disso o pássaro era temido, porque diziam que a ave conhecia o cheiro da guerra que se aproximava antes mesmo dela chegar.
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Temas: Todos
-Mitos dos povos pré-colombianos(o pássaro Tunkuluchu que segundo o mito conhecia o cheiro de morte)
-Vampiros(a doença que o personagem do conto tem, a porfiria , é conhecida como a doença que originou as história dos vampiros, por causa dos sintomas que ela causa incluindo a intolerância ao Sol e em alguns casos dentes mais evidentes . Porém hoje ela é melhor compreendida e tratada. Uma vez um professor citou essa doença durante uma aula na faculdade.)
-Assexuais, que hoje em dia são incluídos na sigla(uma vez vi em um reality show de encontros um casal assexual em que o homem e a mulher se amavam muito e eram românticos, mas na lua de mel ficaram em camas separadas, porque tudo seria no tempo deles)
-Folclore(a referência ao homem do saco em um dos sonhos da personagem Mabel)
-Guerra nuclear na forma da reviravolta do final
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Dessa vez logo expliquei um pouco sobre o que me inspirou nos temas, porque estou cursando pós graduação e pode ser que não tenha tempo para falar mais detalhadamente das inspirações para o conto. Por causa disso aproveitei o tempo que tenho livre para além de escrever falar sobre a inspiração por trás dos temas do conto. Obrigada a todos que leram.
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E nesse link tem um artigo muito bom de uma revista médica que fala de explicações médicas por trás da porfiria e do surgimento das histórias de vampiro, para caso alguém tenha ficado curioso sobre o assunto: http://www.rmmg.org/artigo/detalhes/416