ESSÊNCIA - CLTS 21.

O olho humano, esse órgão formado de pupila, íris, retina, córnea e tudo mais, processa grande quantidade de informação sobre tudo aquilo que nos rodeia, enviando todos esses sinais para o cérebro que, por sua vez, te permite ver formas, cores, texturas e movimentos, entretanto, a maioria dos portadores de olhos enxerga apenas o que está em frente a eles, apenas o que considera real. Enxergar o que está atrás desse par de esferas é muito complicado. As dores, prazeres, dúvidas e necessidades estão trancadas a sete chaves pelo lamentoso egoísmo que essa terra decadente mostra. O narcisismo expõe as regras até depois do desencarne. Isto é, levamos o que quisermos para sete palmos abaixo ou para o fogo da cremação. Não repartimos, não auxiliamos, tampouco doamos. Em vida ou em morte.

E quando doamos, o destino é quem realmente precisa? Nunca saberemos. O que podemos afirmar é que há muito mais além do que enxergamos.

Davi, em meio a todo o luxo de um quarto de conto de fadas, cheio de cores fortes, móveis de madeira crua, rosas vermelhas em vasos pretos e lençóis de seda, vestia apenas um roupão de linho branco. Parado em frente ao espelho, estranhava o quão alva estava sua pele, tanto que mal refletia sua imagem real, ou no mínimo com um pouco mais de vitalidade. Lembrava das palavras de sua mãe que dizia que ele precisava de um oftalmologista e principalmente de sol. “Seu bronzeado era tão bonito, meu filho!”

Acordara estranho, tonto e dolorido, com os seus braços moles e arroxeados. Nada incomum depois de uma noitada intensa e cheia de novas e belas companhias naquela mansão, não lembrava ao certo de tudo que havia acontecido... Sabia que fizera algo, ou ao menos, esperava ter feito, principalmente quando os rostos de duas mulheres lhe vieram à lembrança. O nome não interessava, sabia apenas que era uma morena e a outra ruiva, na verdade, não tinha mais certeza de nada e também não fazia diferença. O fato é que algo acontecera.

Ao arredar as cortinas de veludo e abrir a persiana, a luz penetrou em todos os pontos do quarto e, com ela, sua visão embaçada focou em meio à floresta quase totalmente inviolada uma grande placa, que mostrou que estava ao lado de um cemitério. Ele forçou os olhos para ler, “Cemitério Père-Lachaise”. Havia lido algo sobre esse lugar, sobre o “caminho do dragão”, mas não fez muita questão de tentar lembrar. Voltou a fechá-la depois que o vento gelado eriçou os pelos da nuca.

O castelo estava silencioso, completamente diferente da noite anterior. Dessa vez, aparentemente sozinho naquele lugar estranho na França, imaginava-se como dono do local, principalmente ao descer até o primeiro andar pelos degraus cobertos por um tapete vermelho da imensa escada que girava em torno da grande biblioteca suspensa, onde encontrou o bilhete colado no final do corrimão.

“Meu amigo, voltarei à noite, fique à vontade, sinta-se em casa!” Vlad.

Conhecera o proprietário do local na noite anterior, ao menos era isso que recordava, entretanto, o rosto do novo amigo não vinha à sua mente. Apenas tentava ligar o cemitério a Vlad, procurava as respostas dentro de seu cérebro. Por hora, desistiu.

Sua cabeça estava confusa, sentia-se culpado por abandonar a família após a morte do pai. Sofrera muito com os tratamentos e todos aqueles remédios que o mantinham vivo. Foram seis anos de internações até sua morte. Mas agora era hora de relaxar, esquecer as dores que a vida lhe impôs.

Colocou o bilhete no bolso do roupão e continuou seu reconhecimento na mansão. Andava pelos muitos cômodos como se fosse o dono de tudo aquilo. Tirou o roupão e largou no enorme sofá que circulava a sala desde o pé da escada. Apenas de cuecas e descalço pelo piso frio, observava os detalhes e as obras de arte espalhadas por todos os lados. No caminho que o levava à cozinha abriu uma caixa de madeira envelhecida no aparador, retirou um charuto, cortou uma das pontas, cheirou como se fosse um grande entendedor e o acendeu. Aquele cheiro o enjoou imediatamente, soltou no cinzeiro de vidro e dirigiu-se até a cozinha.

Sentia-se um rei sem súditos nem rivais, era seu momento, era apenas ele em meio a todo aquele luxo. Não havia funcionários, empregados, nenhum serviçal que pudesse tirar seu sossego. Simultaneamente sentia frio e calor, coragem e medo e também, que algo mudara de repente.

Desenhos estampados por todos os cantos do grande castelo eram assinados com o nome de Vlad e faziam parte do charme da decoração. Objetos antigos misturados aos contemporâneos aumentavam o requinte e o bom gosto do dono da casa.

Davi abriu a geladeira, retirou uma garrafa de espumante, rompeu a rolha com extrema facilidade e sem muito alarde, o estouro foi leve. Bebeu um longo gole no gargalo antes de notar que o que fazia era um tanto indelicado. Pegou na prateleira, uma taça com formato de caveira.

Encheu e bebeu.  

— O tempo aqui está maravilhoso.

Aquela voz vinha de algum lugar que Davi não conseguiu explicar. Tentou manter a calma. Soltou a taça na pia, caminhou até o vestíbulo e gritou:

— Olá, tem alguém aí?

A escuridão tomou conta do ambiente, ele paralisou em meio àquele grande salão repleto de figuras engessadas, concretadas e enquadradas. Seus batimentos ficaram acelerados, seus músculos se contraíram e a tontura do amanhecer veio com mais força. Fechou e abriu os olhos para que sua visão acostumasse com o breu, no entanto, parecia completamente cego. De súbito raios e trovões compunham uma melodia tenebrosa e iluminavam rapidamente o local. O que parecia ser uma linda manhã transformou-se em noite mórbida e sem estrelas.

No pouco tempo de luz, Davi percebia que as imagens estavam com os olhos em sua direção. “É apenas minha imaginação,” pensava com todas as forças. De súbito, suas narinas começaram a puxar o ar mais aceleradamente, levando até os pulmões os odores pútridos que infestavam todo o ambiente. Suas sensações estavam mais aguçadas, cheiros, sons, temperatura variavam conforme o que via ou ouvia e os arrepios incessantes o faziam tremer e encharcar seus pequenos olhos azuis e cerrar seus lábios, impedindo-o de gritar.

Questionava sua sanidade, sua história, a morte do pai, o abandono da família. Fazia força absurda para que seus músculos movessem, mas parecia mais enrijecido que as estátuas ao seu redor.

Uma luz central vinda da parte mais alta do castelo deixou o ambiente levemente iluminado, suficiente para fugir. Tudo se tornara vermelho e duas das criaturas em gesso bailavam juntas como se ouvissem um tango. Os quadros moviam apenas os pescoços de um lado para o outro enquanto as figuras de concreto começavam a mover suas partes com som craquelado. Era tão surreal e bizarro que Davi soltou uma gargalhada, o som saiu de sua garganta longo e rouco. Essa alegria sem sentido e desesperada surtiu um efeito oposto a que ele esperava, todas aquelas imagens e esculturas lentamente dirigiam-se ao seu encontro.

Davi correu na direção contrária, visando a porta, mas quando estava prestes a levar a mão na maçaneta, o som de batidas retumbou pela casa e fez ele desistir. Olhando para trás, todas as imagens se aproximavam, no outro lado da porta havia algo desconhecido, nada estava a seu favor.

A porta rompeu abruptamente denunciando um gárgula de mais de dois metros. Aquela coisa com pelos, chifres e dentes enormes adentrou na casa. Suas garras carregavam um corpo visivelmente desfalecido, seco e cinza. O monstro era igual às aberrações que protegem as entradas dos portões, no entanto, eram inofensivas quando imóveis.

— A culpa é sua.

Davi teve certeza que ouviu o monstro falar. Beliscava incessantemente seus braços, deixando hematomas instantâneos. Queria acordar. O excesso de medo o privara do controle de suas faculdades, mantendo-o aterrorizado demais para correr.

Depois de poucos segundos cara a cara com o monstro, conseguiu partir em direção ao corredor, precisava se proteger, não queria ser o próximo nas mãos daquela criatura do inferno. Abriu a primeira porta que conseguiu ver e entrou, quando virou seu corpo visualizou aquele mesmo monstro andando de mãos dadas com crianças que não demonstravam medo, o que o fez se sentir ridículo, algo que durou poucos segundos. O monstro colocou as primeiras duas pequenas e sensíveis crianças numa espécie de maca e com as unhas afiadas, rompeu as veias delicadas daqueles que pareciam não sentir dor alguma. Riam cada vez mais, gargalhavam a cada jorrar de sangue. Aquelas notas agudas que saíam da boca daqueles inocentes pareciam inquietar as almas que lá circulavam, e o cômodo tremeu violentamente. Enquanto o gárgula parecendo não ter sentido o impacto sugava o líquido e ficava mais forte e sedento, Davi rastejava para o mais longe possível. O monstro preparava-se para repetir com mais alguns pares de crianças, depois do ato todas acinzentaram e quebraram como cimento velho.

Tentando ficar em pé, Davi voltou ao corredor, as estátuas do vestíbulo estavam juntas e também o perseguiam. Correu para outra sala, esperava encontrar uma saída ou um lugar para se esconder, entretanto, lá o impacto foi maior, idosos compartilhavam mangueiras de sangue como se emprestassem vitalidade um para o outro. Frente a frente, de mãos dadas, com os olhos vidrados, deixavam que seus sangues transitassem entre suas veias, entrando por um lado e saindo pelo outro. Num ciclo vicioso o líquido vermelho rondava pelos seus corpos, fazendo com que seus rostos velhos e enrugados trocassem da alegria a tristeza em segundos.

Chegou mais perto, a luz fraca e vermelha não lhe permitia reconhecer ninguém e assim desejava. Entretanto, ao perceber quem era um deles, sua garganta estagnou. Ele arrancou a mangueira do outro e tentou manter o sangue em seu pai. A questão é que um mantinha o outro vivo, um dependia do outro. Os corpos caíram imóveis. Davi abraçou o corpo morto, que logo se quebrou em milhões de pedaços.

— Não posso te perder outra vez! — Gritou desesperado

O gárgula entrou na sala e caminhou silenciosamente até ele e o pegou pelo pescoço, mas logo o soltou com aparente cuidado. Pela primeira vez sentiu-se privilegiado e questionou-se: “Por que ainda estou vivo?”.

Olhando aquela figura débil e horripilante salivando não conseguiu fazer qualquer pergunta. O gárgula apontou a porta. Davi obedeceu. Correu rapidamente, saindo do local. Pelos corredores, mal conseguia abrir os olhos inchados de tanto chorar, tentava secar o rosto com os braços até perceber que seu corpo nu estava coberto de sangue.

Sentou-se num canto qualquer esperando que aquele pesadelo acabasse de uma vez por todas. Cerrou os olhos indizivelmente exausto lembrando do porquê da morte de seu pai, das desculpas esfarrapadas que os médicos lhe davam a cada nova crise, da falta de sangue para as necessárias e vitais transfusões. Davi via seu corpo molhado e vermelho como um belo jantar para os parasitas que o cercavam.

— Terminem logo com isso. Todo esse sangue não faz mais sentido. — Disse aos prantos.

— A culpa é sua! — A voz retumbava na mansão.

— Que culpa eu tenho? Eu não era compatível, então para que doar? — Questionou.

— A continuação e a história! — A voz continuou.

— O que quer dizer? — Davi estava confuso.

Davi paralisou entorpecido, seu egoísmo veio à tona, quando descobriu que não poderia ajudar seu pai, fechou os olhos para o resto todo. Não havia mais o que fazer.

— A continuação com as crianças e a história dos idosos. Sim! É isso. — Parecendo ter decifrado o enigma que o mantinha naquele lugar, Davi sente-se orgulhoso.

— Agora já é tarde demais. — A resposta veio em coro parecendo ter saído de cada imagem, quadro e escultura que o seguia.

— Então aproveitem todo esse sangue, ofereço a vocês. — Abriu os braços oferecendo-se como oferenda para os gárgulas sedentos.

Cerrou as pálpebras e lábios num ato de desespero, esperando a dor das mordidas daqueles sanguessugas que o vigiavam. Batia no peito com força para que ouvissem seu coração, que estava cheio do que eles mais queriam e paralisou. Seus músculos se contraíram e uma dor súbita na sua cabeça o fizeram apagar.

Xxxx

Teve dificuldade de abrir os olhos que ardiam com a claridade do ambiente em que estava. Os quadros hospitalares com mensagens positivas estavam ao seu redor, algo que não o acalmava. Sua cabeça doía muito e seu braço continuava dolorido e tomado por leves e arroxeadas picadas. Pessoas vestindo jaleco branco dirigiam-se de um lado ao outro como uma dança macabra. Aquele lugar trazia lembranças indesejáveis, recordações desnecessárias.

— Com licença, onde estou? — Davi perguntou com voz fraca.

— Fique calmo querido, logo estará livre. — Respondeu uma senhora que, por suas vestes, parecia uma enfermeira.

— O que faço aqui? — Questionou Davi.

— Doando sangue, não era o seu desejo? — Respondeu a senhora.

Davi calou-se, já havia errado demais, sido egoísta ao extremo. Sua vida de omissão era incalculavelmente imperdoável. Sentia-se como o verdadeiro monstro daquela história. Seu coração palpitou forte, lembrando das cenas do seu pesadelo. Havia sido muito real, mas estava certo de que era apenas uma noite mal dormida. Relaxou naquela confortável cadeira.

Na sala ao lado:

Uma espécie de reunião juntava os mais renomados notívagos e insaciáveis seres bebedores de sangue. Vlad, presidia o conselho. Expondo os seus dentes salivantes, brindaram em taças de caveira bebendo o sangue mais fresco da noite.

Na cadeira restou apenas pó cinza.