A ESTRANHÍSSIMA TRINDADE – CLTS 21

O AMIGO

Meu avô era o tipo de velhinho contador de “causo”. Conhecido como Zé José desde sua juventude, era um exímio pescador e talvez por isso mesmo, grande contador de estórias. Embora querido na vizinhança, suas estórias fantásticas, sempre envoltas nas baforadas de seu cachimbo, eram tidas por todos como mentiras. Era visto como uma figura exótica por sua mania de jurar pela veracidade de seus ditos e que eram sempre repetidos com toda a fidelidade ao longo de décadas, sem tirar nem por.

Mesmo que algum vizinho ao repetir o conto, acrescentasse um ponto, quando a estória era narrada por “seu” Zé José, nada mudava. Isso despertava certa dúvida nos ouvintes, pois como seria possível ter tanta fidelidade aos detalhes e responder perguntas ao longo de anos sem nunca entrar em contradição? Embora essa dúvida surgisse na mente das pessoas, ela logo se dissipava, afinal não havia sentido em acreditar numa grande amizade que teve desde o início de sua adolescência. Esta era estória que o vô contava para quase todos. De quando saiu para pescar numa tarde e, na volta, acabou se perdendo por um caminho por onde costumava passar.

_Como aconteceu isso, Vô? O senhor não era acostumado com o caminho?

Ele passava a mão sobre o queixo sempre por barbear e dizia:

_ Acostumado com o caminho eu estava. Eu não estava acostumado foi com o que aconteceu naquele fim de tarde. Eu estava voltando com os poucos peixes que peguei naquele dia quando ouvi um assobio muito forte. Uma zoada danada de forte que me deixou meio tonto. _ disse ele com a mesma convicção de sempre.

_ O assobio zuniu no meu ouvido uma vez, duas, três... E não parava. Eu olhava pra ver se achava o miserável que estava fazendo aquilo, mas não conseguia ver ninguém. Parecia que a cada hora, a zoada vinha de um lugar diferente. Comecei a ficar nervoso e perdi o rumo de onde estava. O assobio alto na minha cabeça não me deixava pensar.

_ E a risada, Vô? Não tinha a risada? _ perguntei afoito.

_ Sim, tinha. Comecei a escutar uma risadinha misturada no meio de todo aquele assobio. Não era risada de velho nem de homem barbado. Era uma risada de moleque. Com aquela confusão na cabeça, eu dava voltas na mata e voltava ao mesmo ponto em que tinha passado antes. Resolvi sentar numa pedra para me acalmar. E a bagunça de assobios e risadas continuava. Eu estava quase chorando de desespero.

_Fiz um esforço danado para minha cabeça para de doer e me concentrar. Aí me apareceu um monte de passarinhos piando e andando com aqueles pulinhos deles. Na hora, vi que a carinha deles estava triste. Estavam em cima da mesma pedra em que sentei. Pelas carinhas, achei que estavam com fome. E tome zoada! A zoada não parava. Naquela situação doida resolvi dar aos passarinhos, um pouco do farelo de pão que usei para pescar. Eles se juntaram animados em cima das migalhas epercebi a felicidade deles. Aí... – não chegou a terminar a frase pois eu o interrompi:

_ O que aconteceu nessa hora, Vô? – perguntei com a aflição de quem já tinha ouvido essa estória várias vezes e só queria ouvir de novo pela voz de meu avô.

_ Aí, nessa hora, a zoada parou. E comecei a sentir um cheiro bom de fumo de cachimbo. Achei que alguém estava por perto e poderia me ajudar. Gritei por ajuda e não tive resposta. Em vez disso, os passarinhos começaram a subir em mim, andando em cima de mim e bicando minha cabeça e minhas orelhas. Com o alívio da dor de cabeça pelo fim da zoada, pude apreciar e achar bonito a brincadeira dos passarinhos e fiz carinho na cabeça de alguns que se empoleiraram nos dedos de minha mão esquerda.

_E quem apareceu, Vô? – perguntei.

_ Apareceu uma voz. Uma voz dizendo: “Vosmicê gosta dos bichos da mata...”

Eu me virei e recebi uma baforada de fumo na cara. Mas mesmo com meus olhos ardendo vi um garoto bem preto sentado ao meu lado. Não era nenhum dos meus vizinhos. Devia ser alguém que estava caçando porque usava uma touca. Ele disse que foi com a minha cara e ia me ajudar a voltar pra casa.

_ Vosmicê está nervoso. Quer dar uma pitadinha pra acalmar? e me ofereceu o cachimbo com um largo sorriso muito branco e amigável que se destacava na cara muito preta. Eu aceitei. Estava nervoso e achei que uma pitada de cachimbo ia me acalmar igual acalmava o velho Elias da venda. Devo ter exagerado, porque meu novo amigo tomou o cachimbo de minha mão e disse,

_Vosmicê já tá bão. Já se acalmou, já. Agora vosmicê segue os passarinhos que vosmicê acha o rumo de casa. E não perde esses peixes, não, porque as comidas que sua mãe estava fazendo queimaram. Tudinho. Só vão ter esse peixe.

Disse isso e saiu gargalhando e pulando pela mata. Pulando numa perna só, com a toca vermelha a balançar e o cachimbo largando fumarolas pelo ar. Pensei que tava ficando doido. Eu tinha acabado de virar amigo do Saci! Os passarinhos foram pulando na minha frente até me deixarem na estradinha que sai da mata. Minha mãe não acreditou. Mas as panelas dela estavam queimadas... Mesmo assim, ela não acreditou em mim. Aliás, ninguém nunca acreditou...

_Eu acredito em você, Vô. – disse eu abraçando meu vô que retribuiu com um carinhoso cafuné.

TRIPAS

Numa fria noite de São João, estávamos nos aquecendo ao redor da fogueira, assando batata doce e, mais uma vez, ouvindo as estórias do Vô. Papai, que já tinha escutado todas as estórias desde menino, deu uma risadinha de canto quando o Vô olhou para o céu escuro e disse que ia contar um caso. Deu um gole no quentão e começou:

_ Lá pros lados da fazenda Alcântara, começaram a aparecer galinhas e porcos mortos. – disse ele, abanando a mão na direção da distante fazenda.

_ Os peões do velho Alcântara estavam bufando de raiva procurando o culpado. Mas eles mesmos não entendiam porque o desgraçado matava os bichos em vez de roubá-los.

Nesse momento, papai se manifestou: _ “Seu” Zé, como ficavam os bichos?

_ Ah, meu filho, ficavam tudo retalhado. Eu mesmo cheguei a ver umas duas vezes. Os porcos sem cabeça, com o bucho aberto e com as tripas espalhadas pelo chão. Um cheiro horroroso... Moscas... Credo! As galinhas, então... Meu Deus! Umas duzentas. Mas tudo arrebentada! Tripa espalhada, a mesma coisa. Como elas são mais fraquinhas que um porco, o bicho deixava uma maçaroca que você não conseguia saber quantas galinhas estavam naquele bolo.

Fez uma pausa, deu uma longa baforada no cachimbo e recomeçou com olhar distante:

_ O peão mais invocado era “Jão” de Zefa.

_ Aquela dona Zefa velhinha que mora perto da mercearia? – perguntei

_Ela mesma. Na época, ela era muito bonita. “Jão” era muito invejado pela esposa que tinha. E era um cabra valente, parrudo e destemido. Falou que ia montar uma tocaia, pegar o culpado e levar ele preso, amarrado em cima de seu cavalo. Mas aí ...

_ Foi aí que ele morreu, Vô? – interrompi bruscamente fazendo com que meu pai fizesse cara feia me desse um leve cascudo de repreensão.

_ Sim. Foi aí que ele morreu. Ninguém teve dúvidas de que ele achou o culpado. Ou foi achado por ele, não sei.

Deu nova baforada e concluiu.

_ Na última lua cheia, encontraram “Jão” e seu cavalo na estradinha do rio. Igual às galinhas e os porcos. Uma desgraça. Os corpos abertos, os bofes espalhados pra todo lado e as cabeças arrancadas. No rosto lanhado de “Jão”, os olhos estavam esbugalhados e a boca aberta, como se tivesse morrido no meio de um grito de horror.

Meu pai voltou a interferir:

_ Mas “Seu” Zé por que que não escutamos essas estórias hoje? Por que ninguém fala nisso? – perguntou papai com evidente ceticismo.

O Vô olhou para ele e pensou um pouco, com a ajuda de seu cachimbo.

_ Olha, eu te digo o porquê. Primeiro que quase ninguém chega aos quase cem anos, como eu e a Zefa chegamos. A maioria do povo que viu, já morreu. A começar pelo velho Alcântara, que já era velho naquela época. Depois, as pessoas se cansam de serem tidas por malucas ou mentirosas. E também, meu filho, as pessoas não gostam de reviver coisas medonhas. Mas se vocês quiserem perguntar da Zefa, só eu e ela sobramos daquela ninhada.

_ Mas Vô, ninguém achou o assassino? – perguntei afogueado.

_ Muita gente já tinha desconfiado. Mas apenas Dona Nenê, mâe de Zefa, teve a capacidade de falar.

“_ Lubisômi!”

A MOÇA DO RIO

Ainda naquele São João, meu vô Zé José engatou em outra prosa. Ele pediu que nós prometêssemos não contar para ninguém, nem pra minha mãe, nem pra minha vó porque essa, sim, era uma prosa que ele nunca tinha contado para ninguém.Todos nós já sabíamos da sua amizade com o Saci, de como o Saci o ajudou a sair da mata, de como o Saci o ajudou a encontrar dinheiro que ele tinha perdido e de como o Saci o ensinou a tragar o cachimbo e outras coisas desse tipo. Mas para essa nova aventura, para esse novo causo ele pediu segredo total.

_ Nessa época, quando Jão da Zefa morreu, nós éramos todos novos. Eu, Jão, Zefa, sua Vó... Todo mundo novo na flor da idade. Numa daquelas noites de lua cheia, eu saí para pescar. Apesar do que eu já tinha visto na vida, não acreditei na estória de lobisomem de dona Nenê. Veja só se eu ia acreditar na estória de um homem que vira bicho. Nunca vi tatu virar cavalo, nunca vi laranja virar jaca... Como que homem ia virar lobo?

_Saí como sairia em qualquer noite porque eu não tinha medo de assombração. Além do mais, eu tinha um grande amigo que poderia me ajudar com as coisas do além. Talvez eu estivesse exagerando ou até mesmo sendo arrogante, viu? Mas era assim que eu pensava naquele tempo.

_Estava eu, pescando, sereno como sempre, quando de repente, ouvi uma linda voz de mulher entoando um canto um campo que mais parecia uma ópera daquelas do teatro da capital. A voz era tão bonita e melodiosa que larguei tudo para seguir aquele canto e achar sua fonte. Me espantei, pois depois de uma caminhada longa, eu ainda não tinha achado a cantora misteriosa. E como pude ouvir aquele canto há uma distância tão grande?

_Ainda antes de sair da mata pude ver uma linda índia sentada numa pedra no meio do rio. Era ela que cantava. E eu ali, escondido, apreciava aquela aparição maravilhosa e ao mesmo tempo assustadora. Que diabo de mulher era aquela, para estar cantando quase a meia-noite em cima de uma pedra no meio do rio? Sua beleza e a sua voz me encantavam e neutralizavam a minha vontade. Só queria era ficar escondido na mata e voltar para pegar meus peixes. Mas aos poucos eu sentia um magnetismo eu parecia um prego atraído por um imã, na direção dela.

_Como ela era, vovô? - perguntei.

_Ela tinha uma linda pele de bronze escurecido, os seus olhos eram bem puxados e muito verdes, como as pedras do raso do rio. O cabelo preto era muito longo, liso e enfeitado com conchas. O meu coração quase saiu pela boca quando ela olhou para mim e balançou o corpo, jogando água para o ar.

_Da cintura para baixo, a índia tinha um enorme rabo de peixe. E continuou a cantar. Só que agora, sorria, olhando diretamente para os meus olhos, apesar de eu estar escondido. Enquanto eu, abobado, olhava para ela, uma sombra se mexeu entre as árvores do outro lado do rio. Ela também percebeu, pois o seu interesse por mim diminuiu bruscamente e uma expressão de medo surgiu em sua face. Ela demorou até se virar completamente para olhar a figura que surgiu na mata, atrás dela.

_Eu só conseguia ver uma silhueta do tamanho de um homem. Foi quando, naquela noite, o meu coração quase saiu pela boca pela segunda vez. Em todo o seu horror e repugnância, ele apareceu. O corpo de homem coberto de pelos, a cabeça de lobo e os olhos humanos tomados de ódio. Era ele. O lobisomem!

_O assassino que todos procuravam. E eu sabia que naquele momento, ninguém além de mim, tinha a solução do mistério. O lobisomem correu na direção da Iara com os dedos espichados, as unhas em riste e os dentes arreganhados. O que ele queria agora, era devorar aquele outro ser sobrenatural cuja beleza se opunha à sua feiúra. E eu, até então paralisado, tive uma ideia que correu ao longo de mim como uma faísca de relâmpago.

_Saí da mata com um pedaço de madeira nas mãos, tolo e indefeso, para enfrentar o lobisomem. Ele me viu e sua fúria se voltou contra minha impertinente e intrometida presença. Mas, com a firmeza de propósito própria dos idiotas e dos inocentes, continuei disposto a defender a bela Iara contra o ataque do bicho ruim. Quando ele veio para cima de mim, pela primeira vez na minha vida, senti um medo que eu não podia controlar.

_Duro de medo, ouvi um som que há bastante tempo já não ouvia. Um assobio forte, seguido de uma gargalhada alta e debochada. Mas ao contrário da risadinha que ouvi na minha adolescência, o que ouvi agora foi uma gargalhada zombeteira, digna de um homem valente. O lobisomem estacou e atentou para a risada com suas enormes orelhas que, pelo tamanho, deviam dar-lhe uma excelente audição.

A PELEJA

_Imaginem a minha surpresa quando vi aparecer, na minha frente, o meu amigo, o Saci. Armado com um estilingue e uma bolsa de pedras a tiracolo. O monstro peludo voltou-se para ele e de contínuo, o Saci atirou-lhe várias pedras na cabeça. O rapaz negro perneta não se intimidou e partiu para cima do bicho. Contra qualquer bom senso, o Saci aplicou vários golpes de capoeira no lobisomem. Não me perguntem como que alguém pode ser capoeirista tendo uma perna só. Mas não sei se vocês sabem, mas a perna que o Saci perdeu, ele perdeu numa luta de capoeira.

_O lobisomem tentava golpear e mordia o ar em vão, pois o saci permanecia pulando, ileso e invencível. Em certo momento, o Saci retirou uma pedra de seu bornal. Ela brilhava muito, refletindo o brilho da lua cheia. Colocou-a no estilingue e acertou em cheio a carantonha do lobisomem, que urrou de dor enquanto o ar se enchia da fumaça de sua carne queimada. Ferido, segurando a cabeça com as duas mãos, o bicho desapareceu correndo no meio da mata.

_O Saci olhou para mim com um sorriso e eu acenei dizendo que estava tudo certo comigo. E então ele olhou para a Iara. Não sei se vocês sabem, mas o Saci tem medo de água. Só que eu percebi pelo olhar dele ao olhar para ela, que algo tocou o coração de meu amigo sobrenatural.

_Ao olhar para Iara, ele ficou sério, enternecido e entrou no curso d’água em direção àquela sereia. Os dois olhares se cruzaram e eu percebi que o que havia ali naquele momento, era nada mais que a boa e velha paixão. Eu, entendendo o que se passava, fui-me embora dali, não querendo ser inconveniente para a situação que a partir dali se descortinava.

_Nunca mais vi o Saci. Nunca mais vi a Iara. Mas em uma de minhas noites posteriores de pescaria na lua cheia, eu vi algo que explicou o que aconteceu com eles a partir daquela noite. Eu vi, nadando nas profundas águas do rio, três moleques sacis com metade do corpo de peixe e compreendi o que havia acontecido. Meu amigo Saci tinha formado sua família com a Iara.

_Vô, como que eles podem ter tido filhos? – perguntei incrédulo

_ Como que o Saci poderia ter tido filhos com uma mulher que tinha metade do corpo de peixe? Vocês acham mesmo, que eu ia me intrigar com uma coisa dessas? Vocês acham mesmo, que alguém que viu o que eu já vi, aquela estranhíssima trindade do conversê da roça, lobisomem, Saci e Iara, no mesmo lugar... Vocês acham mesmo, que eu ia ficar espantado ao ver que o Saci teve filhos com a Iara? Ora!

E com uma baforada de seu cachimbo, Vô Zé José encerrou mais uma maravilhosa noite de contação de causos.

FIM

TEMA: FOLCLORE BRASILEIRO