HERANÇA SINISTRA- CLTS 11

Diogo encontrou Célia mexendo no celular dele em busca de pistas de uma possível traição. Furiosa, ela ergueu-se do sofá exibindo a tela do celular.

— Quem é essa mulher que tá te ligando? Tua amante?

Num tom calmo, ele respondeu: — Você está ficando obsessiva com esse ciúme exagerado. É de um escritório de advocacia. Um tio meu, que eu não vejo há anos, morreu e eles estão procurando os herdeiros.

Célia mudou de atitude. Seus olhos brilharam de cobiça.

— Teu tio era rico? Deixou algum dinheiro pra nós? Tem outros herdeiros?

— Calma, Célia! Não sei de nada só indo lá para saber.

— O que tá esperando? Vamos logo.

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Chegando ao escritório de advocacia, Diogo apresentou seus documentos e disse para o advogado: — Faz muitos anos que não vejo tio Ernesto. Eu soube que ele tinha ido para a Europa...

O advogado relatou num tom neutro, profissional: — Mais precisamente para a Itália. Segundo eu soube, fez fortuna negociando obras de arte. Porém, devido ao vício pelo jogo de cartas, bebida e festas luxuosas, ficou quase na miséria. Ele se apaixonou pela cantora lírica, Elza Osborne, que o obrigou a se internar numa clínica de reabilitação antes de se casar com ele. Em 1983, eles vieram morar no Brasil. Em 1987, Elza foi encontrada morta, com o pescoço quebrado ao pé da escada. Como ela estava sozinha e não havia indícios de crime, a morte foi considerada acidental. Com o falecimento da esposa, Ernesto entrou em depressão, despediu a empregada e se isolou em casa. Foi um conhecido negociante de arte que o encontrou morto, o corpo já completamente seco como uma múmia.

O advogado calou-se como que se arrependendo do que disse e pegou um papel de sobre a mesa.

— Conforme seus documentos, o senhor é sobrinho e único herdeiro do falecido.

Ignorando o decoro da ocasião, Célia indagou: — É muito dinheiro, doutor?

— O dinheiro em espécie foi dividido judicialmente entre os credores do falecido, restando para o senhor Diogo, uma residência nos arredores de Ivoti.

Célia ficou desolada. — Uma casa? Só?

O advogado consultou outros documentos. – Uma casa com dois quartos, um banheiro no piso superior. Na parte de baixo, sala de estar, gabinete, cozinha dois banheiros e o quarto da empregada. O falecido também deixou algumas obras de arte.

Célia ia fazer outra pergunta, mas conteve-se.

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A casa ficava na periferia de Ivoti. Na fachada estava escrito, Solar do Bosque com letras em alto-relevo. Era uma construção robusta, de dois pisos, janelas largas e uma pesada porta de carvalho. Diogo tirou a chave do bolso e a abriu Célia entrou e foi logo escancarando as janelas para arejar o ambiente. Os móveis eram de madeira maciça, envernizados, a cristaleira uma verdadeira obra de arte. Havia um quadro de 1,68 cm de comprimento por 73 cm de largura numa das paredes. A pintura à óleo era a de uma mulher usando um vestido longo, claro, com uma manta sobre os ombros. Estava em pé, com um braço dobrado na frente e o outro repousando sobre o espaldar de uma cadeira. De acordo com a lista de obras de arte, aquele era o retrato de Elza Osborne, pintado por Edgar Roderick.

— Até que a tia não era feia. – comentou Célia. Ela se afastou e parou ao pé da escada que levava ao piso superior. Olhou de cima para baixo.

— O que foi? – perguntou Diogo.

— Estou tentando imaginar como ela caiu lá de cima e rolou pelos degraus até aqui.

— Talvez tenha errado o passo. Às vezes o cérebro nos prega peças. Ou quem sabe, teve uma vertigem e desmaiou enquanto descia.

— Sinto um arrepio só de pensar que houve duas mortes violentas nessa casa. Não faz muito tempo que teu tio morreu, não é?

— Uns vinte dias atrás.

— Onde foi? No quarto? Na sala? - Célia olhou ao redor — Será que a alma dele ainda está por aqui?

— Deixa de bobagens. Vamos ver onde vai dar aquela porta debaixo da escada.

— Talvez seja a despensa.

A porta ao lado da entrada para a cozinha, tinha outra porta de ferro, gradeada e uma escada que dava para um porão às escuras. Diogo abriu e procurou o interruptor na parede. Acendendo a luz, o casal desceu e ficaram admirados ao verem tantas antiguidades ali. Objetos diversos, alguns em caixas de papelão, pinturas emolduradas, uma máquina de escrever do século 19, telefone de parede, relógio com pêndulo, gramofone, jarras, lamparinas, inclusive uma estatueta de um gato preto, um falcão maltês e uma estátua. No pedestal havia uma inscrição gravada; Iris Salamandéris. A estátua de bronze, em tamanho natural, era a de uma mulher nua, com o rosto inclinado para o lado esquerdo, a mão esquerda sobre o púbis, a mão direita atrás da cabeça.

— O retrato de Dorian Gray- disse Célia, diante de um quadro pendurado na parede. Na tela, via-se um homem jovem, usando um jaquetão escuro, camisa branca e gravata borboleta. — Será que ele vai ficando velho no quadro?

— Não seja boba. - disse Diogo admirando outra pintura emoldurada. — Veja, é a duquesa Isabel Bathory da Hungria.

Na pintura se via a imagem de uma mulher jovem, usando um vestido longo com mangas estufadas e gola alta. Posava em pé com a mão sobre uma cômoda e a outra segurando um lenço.

— Dizem que ela mandava matar criancinhas para poder banhar-se no sangue delas para se manter jovem.

— Que horror! Nem quero pensar nisso. Essas coisas não estavam na lista de objetos de arte que o advogado nos deu. Vamos vender isso tudo e ganhar um bom dinheiro. O que você acha?

— Acho que tio Ernesto queria doar a um museu, mas a morte da mulher dele o deixou desanimado e ele acabou caindo em depressão. Primeiro vamos ter que fazer um inventário de tudo e depois veremos o que fazer. Vamos olhar os quartos.

Os dormitórios estavam em ordem. Tudo limpo e arrumado.

Célia comentou: — A casa antiga, com uma decoração antiquada, mas é isso que dá um certo encanto a ela. Gostei e acho que vai ser bom morar aqui.

— Tem certeza?

— Claro!

— Acha que precisa fazer alguma modificação na decoração? Ou vai deixar como está?

— Vou deixar como está. Não sou engenheira, mas estou vendo que ainda vão se passar muitos anos até que comece a dar sinais de decadência. Não fica distante do teu trabalho, não é?

— Quarenta minutos de carro.

****

Diogo e Célia passaram a morar no Solar do Bosque. Diogo era médico clínico e trabalhava num hospital de Novo Hamburgo, das 14 às 17 horas. Célia contratou uma empregada para fazer o almoço e limpar a casa.

Foi na segunda semana, certa noite, por volta 3 horas da manhã, eles acordaram com os gritos da empregada. Correram para o quarto dela. Guiomar tinha trancado a porta.

— Guiomar, o que houve? – gritou Célia.

Guiomar abriu a porta com uma expressão assustada.

— Eu vi uma mulher estranha na cozinha. Parecia um fantasma.

Diogo examinou a cozinha e todos os cômodos do andar térreo, as janelas, a porta da frente e a dos fundos, mas não encontrou nada, nem sinal de que alguém havia entrado na casa. Ele voltou para junto de Célia e Guiomar.

— Não encontrei nada de anormal. Tá tudo trancado.

Célia repetiu o que a empregada lhe explicou: — Ela disse que havia se levantado para ir à cozinha tomar água, quando viu uma mulher na entrada da sala. Quando acendeu a luz, a mulher não estava mais lá.

— Você não sonhou, achando que era real?

Guiomar sacudiu a cabeça – Não! Eu tenho certeza. Acho que era a mulher do quadro.

— Vamos lá ver. – disse Diogo e os três foram para a sala.

— Tem certeza de que era ela? – perguntou Célia, apontando para a pintura de Elza.

Guiomar fez uma expressão de dúvida. – O cabelo era diferente.

Célia olhou para Diogo e ele foi logo dizendo: — Não existem fantasmas. Não tem ninguém na casa além de nós três. Vamos dormir.

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No dia seguinte, a empregada pediu as contas e foi embora. Não queria trabalhar numa casa assombrada. Quando Diogo saiu para trabalhar, Célia postou-se diante da pintura de Edgar Roderick. Observou a expressão de Elza. Será que ela foi pintada com aquele meio sorriso, ou ele apareceu agora, depois de assustar a empregada? Célia não tinha certeza, mas abandonou aquela ideia maluca e foi para a cozinha, fazer o almoço.

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Diogo acordou com Célia sussurrando e sacudindo o ombro dele.

— Diogo, acorda! Tem alguém andando no corredor.

Ele acendeu a luz e observou a expressão assustada da esposa.

— Tem certeza?

— Claro! Não sonhei, não.

— Fica aqui e tranca a porta.

Ele saiu para o corredor. Ficou imóvel, tentando ouvir um ruído. O luar entrava pelas vidraças do térreo e uma débil claridade se escoava por alguns metros dentro da casa. Ouvindo um som abafado lá embaixo, Diogo cautelosamente desceu as escadas, lamentando-se por não estar armado. Prometeu a si mesmo comprar um revólver. Acendeu a luz enquanto entrava na cozinha, depois olhou o quartinho ao lado e na sala de estar. Verificou portas e janelas. Estava para voltar, quando notou duas manchas esverdeadas no assolho, entre a sala e a cozinha. Não tinha formato de calçados, de pés humanos, tampouco de animal. Duas manchas indeléveis, irregulares, que ele passou um dedo e cheirou. Não tinha cheiro de coisa alguma. Seria as pegadas de um fantasma? Se é que fantasma deixam pegadas. Talvez o ectoplasma?

Diogo vasculhou a casa toda, inclusive o porão e não encontrou ninguém e nada fantasmagórico. Voltando para o quarto, fez um relatório para Célia e a tranquilizou. As manchas, talvez fossem dos seus próprios sapatos quando entrou em casa.

No dia seguinte, ao voltar para casa, Diogo deparou-se com Célia caída ao pé da escada. Aflito, ele examinou os sinais vitais dela e constatou que ainda respirava. Imediatamente chamou os paramédicos. Célia ainda estava usando a camisola e isso indicava que ela havia caído logo depois que ele saiu, talvez um pouco mais tarde.

Os médicos reanimaram Célia, fizeram alguns testes constatando que estava lúcida, sem sinal de fratura e sugeriram que ela fosse ao hospital fazer exames de raio x para ter certeza.

— Não precisa, eu estou bem. – afirmou.

Quando os paramédicos foram embora, Diogo voltou para junto dela e perguntou:

— O que aconteceu?

Célia fez um trejeito com a boca — Não sei, não me lembro.

— Você caiu na escada, Célia. A mesma coisa que a tia Elza. Você teve sorte por não ter quebrado o pescoço. Se assustou com alguma coisa e saiu do quarto correndo, ou foi empurrada?

— Não me lembro.

— Talvez seja o trauma da queda. Com o tempo você vai se lembrar.

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Diogo pediu dispensa no trabalho para ficar com a esposa. Estava intrigado com a queda de Célia. Enquanto ela repousava, ele examinou a casa toda, em busca de alguma coisa anormal. Talvez a intrusa estivesse escondida em algum lugar secreto da casa. Ele desceu ao porão. Talvez houvesse uma passagem secreta ali. Examinou as paredes de alvenaria, batendo com um martelo para ver se havia alguma parte oca, porém, não encontrou nada.

Parou, olhando ao redor e só então, percebeu que a estátua estava numa posição diferente. Estava no mesmo lugar, mas com os braços abaixados. Largou o martelo sobre a mesa e movido por um impulso, tocou com os dedos um dos braços da estátua. Ele não sentiu a dureza e o frio do metal, mas a maciez da pele humana e de repente, os olhos da estátua se iluminaram como duas tochas e ela começou a se transformar numa bela mulher de carne e osso.

Diogo ficou assombrado, estático diante do fenômeno.

— Me chamo Iris – disse a bela mulher numa voz melodiosa.

Diogo estava paralisado pelo espanto. Ela enlaçou-o com os braços, colocou a boca na boca dele e começou a sugar a sua energia vital. Diogo sentia prazer naquele beijo, mas não percebia que suas forças, a sua vitalidade, estava sendo extraída do seu corpo. Pouco a pouco, Íris consumiria sua vida e ele morreria seco e enrugado como uma múmia.

Súbito, soou uma pancada. Com a cabeça ferida, Íris retrocedeu e caiu sobre o armário derrubando algumas latas. Recuperando a lucidez, Diogo olhou para Célia. Ela estava com o martelo na mão. Chegou no exato momento que a estátua se transformava e viu quando lançou seus encantos sobre o marido. Golpeou a mulher, tanto por ciúme, quanto por medo, pois estava diante de algo sobrenatural.

Caída no chão, a mulher voltou a ser de metal, de cor escura com manchas esverdeadas. Célia comprovou, chutando o ombro dela.

— O que é essa coisa? Como pode se transformar em carne e osso?

— Não tenho ideia.- respondeu Diogo, passando as mãos pelo rosto. Ele ainda se sentia meio entorpecido.

Súbito, a estátua se ergueu, emitindo um som ameaçador. Percebendo que estavam correndo perigo de morte, Diogo reuniu suas foças e empurrou a mesa sobre Iris derrubando-a contra a parede e a caixa de disjuntores que quebrou causando um curto circuito. As faíscas caíram sobre uma das latas com produtos inflamáveis. As chamas brotaram e se espalharam velozmente, atingindo as caixas de papelão e madeira.

Diogo pegou Célia pela mão e correu para a escada. Quando eles saíram do porão, Diogo trancou a porta de ferro e tirou a chave da fechadura. A estátua subiu a escada e começou a socar as grades. O incêndio se tornou mais intenso, pegando no assoalho. Só restou a Célia e Diogo, retirar o essencial da casa e se afastar.

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O Solar do Bosque foi destruído pelo incêndio. A estátua despareceu no meio do fogo. Só restaram escória misturado a cinzas, pedaços de madeira queimada e metal retorcido. Poucos objetos de arte puderam ser recuperados. Diogo e Célia venderam a propriedade e foram morar em outro lugar. O novo dono do terreno mandou uma construtora limpar os escombros para construir outra casa. Enquanto as máquinas removiam os destroços, um filete de metal escuro se contorcendo pelo chão, sumiu no matagal.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 21/11/2022
Reeditado em 20/01/2024
Código do texto: T7654827
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