OCASO PÚRPURA - CLTS 21
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No ambiente desprovido de requinte onde uma cama simples e o sofá estofado na cor bege destacavam-se como leais testemunhas. Henrique se observava diante do espelho vertical bem afixado à parede. Todo seu corpo refletido para si ofertava a velha dama conhecida como tristeza, sobrenome amargura.
Os olhos muito negros imersos num início de lágrimas brilhavam além da dor. Os cabelos fartos e longos lhe tocavam os ombros e eram bonitos. Salvo os cílios e sobrancelhas naturais, demais pelos não existiam, depilados metodicamente: barba, braços, pernas, abdômen, virilhas, púbis, nem sinal de fio, totalmente nu.
E a imagem mostrava o exterior de Henrique com a boca já vestida de carmim, lábios de mulher; os olhos enfeitados pela maquiagem suave, olhos de mulher; a face empoada e alva, queixo e nariz suavizados, rosto de mulher; mamilos pequeninos, cintura e coxas proporcionais, nádegas artificialmente soerguidas e realçadas com os sapatos de salto; tudo lhe dizia que era uma mulher, talvez o apêndice herdado entre as pernas a dormitar profundamente contrariasse o conjunto, mesmo que fosse apenas uma representação simbólica de sua biologia original pois era delicado e rosado, algo que a natureza esqueceu de retirar, ainda assim era o suficiente para lembrá-lo de sua condição e isso o magoava. Urgia escondê-lo enquanto não conseguisse extirpá-lo definitivamente. A minúscula calcinha branca o absorveria por enquanto.
Agora sim, com o tecido de seda a lhe proteger a intimidade, o soutien bem posto com enchimento, a meia-calça até as coxas e o espelho lhe entregava Yasmin em toda sua beleza dos vinte e um anos de vida.
Yasmin, a bela mulher, virou-se para melhor enxergar o efeito do conjunto, entrou no vestido amarelo, curto e decotado, pegou a bolsa de mão réplica da Gucci onde já estavam suas ferramentas da noite, aspirou o restante de pó mágico para animar a vida, abriu a porta do quarto simples, saiu com seu perfume transbordando para o corredor da pensão e foi trabalhar na noite, mais uma noite de tantas. Yasmin, simplesmente Yasmin.
Porém, essa foi a última vez que se viu a moça, não voltou de madrugada, nunca mais. As amigas de ofício informaram que um cliente a havia requisitado, ela entrara no carro luxuoso e, sorridente, acenara um até logo e sumiu.
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A abordagem havia sido igual a de outras tantas. "Oi, linda, livre hoje?", "Claro, o que você procura?", "O normal, quanto é?", "Normal é R$ 200, uma hora", "Combinado, entra".
O carro era novo e o ar condicionado trouxe alívio a Yasmin do calor externo. O homem parecia muito sério, usava paletó e gravata. Não havia aliança, mas um anel com rubi no dedo mínimo da mão direita. Ela notou os olhos do cliente passearem por seu corpo, também percebeu a mesma dúvida de muitas outras vezes e disse:
- Para que não ocorra nenhum problema, eu sou mulher especial, viu?
O cliente sorriu mostrando bons dentes e respondeu de forma tranquila:
- Claro que é, não se preocupe, estava procurando justamente por você.
Aquelas palavras acalmaram Yasmin, mas de alguma forma ela sentiu algo desconectado no ar. O veículo entrou em movimento e após alguns minutos, o motorista ainda sorrindo ofereceu chiclete, recusado.
- Para onde vamos ? - ela perguntou.
- Um lugar calmo e amplo, do jeito que você gostava pelo que me disseram.
- Do jeito que eu gostava? Como assim? - Yasmin ainda tentou entonar a voz com firmeza sem aparentar o início de medo que lhe subia as pernas - Não o conheço, você nada pode saber sobre mim.
Com a visão fita no trânsito, o homem apenas retrucou sem ao menos olhar para sua passageira:
- Sabemos tudo sobre você, Henrique.
Mal ouviu seu nome de batismo, as forças fugiram de Yasmin, o desespero era real, mas antes mesmo que pudesse libertar um grito, alguém por trás de seu banco embalou num capuz sua cabeça e os belos cabelos. O pano exalava forte odor, estava inteiramente úmido e à medida que respirava a mistura sentiu o mundo afundar esponjosamente engolfando-a até perder a consciência.
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Yasmin tentou abrir os olhos, mas a luz forte impedia, era muito brilhante, muito fina, assemelhava-se a uma lâmina afiada ferindo sua mente. Puxou os braços e percebeu estarem presos, assim como as pernas e a cabeça. Estava sentada muito ereta. Quis gritar e não sentiu o maxilar, havia algo em sua boca, algo esférico e pesado que lhe doía a língua, machucava gengiva e dentes. Forçou as pálpebras um pouco de cada vez, foi se acostumando e quando pôde, finalmente, firmar a visão, defrontou-se com pequeno grupo de homens, três homens para ser exato. Eles a observavam atentamente. É possível que estivessem ali há muito tempo. Todos usavam jalecos brancos. O local era austero, mas extremamente limpo e polido, lembrava metal, parecia alumínio. A um gesto, a mordaça foi retirada e Yasmin deixou escorrer saliva e sangue sobre o queixo e o vestido amarelo. A respiração estava pesada. A cabeça latejava e o estômago queria explodir.
- Quem são vocês? - ela conseguiu balbuciar entre toda aquela confusão.
Não houve resposta.
Um dos homens de jaleco se adiantou e num movimento rápido afastou as pernas de Yasmin presas nas engrenagens móveis da cadeira onde estava. Após a ação, o encosto foi se abaixando enquanto a parte posterior subia transformando o móvel em uma esteira. Yasmin foi despida com brutalidade, vestido e calcinha arrancados e jogados no reservatório abaixo. Seus joelhos estavam dobrados expondo-a o máximo possível.
Não há sensação pior que estar totalmente à mercê de desconhecidos, Yasmin já fora abusada antes, mas de outras maneiras, nunca tão definitivamente como agora. Isso fazia sua mente relembrar diversos casos de garotas como ela, desaparecidas para todo o sempre, bem como das diversas estórias sobre tais eventos, nenhuma delas com final feliz.
- Quem são vocês, o que querem comigo? - um esforço sobre humano de sobrevivência falava por ela.
Ainda em silêncio, os homens aproximaram-se da prisioneira e a um toque na parte interna da cama surgiram cinco agulhas subindo lentamente do console lateral que se abriu.
As agulhas estavam conectadas a fios de variadas cores, uma a uma foram introduzidas em Yasmin apesar dos gritos lancinantes. A primeira, como se dirigida por entidade invisível, flutuou até se posicionar bem próximo do olho esquerdo da jovem. Por uma fração de segundo paralisou-se e sem aviso invadiu-lhe a córnea. A segunda agulha, também automaticamente, dirigiu-se ao coração e o invadiu. Ouvido direito, canal uretra do pênis e o reto anal foram os próximos alvos. Essas primeiras provações duraram aproximadamente dez minutos quando, por fim, as agulhas foram retiradas sem nenhuma consideração, o que causou nova onda dolorosa. Yasmin chorava, embora houvesse desistido de falar.
Uma imagem surgiu diante dos três homens demonstrando dados numéricos em profusão como se fosse uma tela holográfica. Os carcereiros de Yasmin apenas entreolhavam-se concordando em silêncio e um deles pareceu dar autorização a próxima fase.
Do teto daquele lugar, um invólucro desceu lentamente e se ajustou à cabeça de Yasmin de modo que tudo se escureceu. De repente, diante seus olhos, foram expostos cenas de sexo entre homens e mulheres, fotos de homens nus, mulheres nuas, animais, dejetos, crianças, todo tipo de perversão imaginável passou pela caixa.
Cada uma destas ocorrências fixava-se por alguns instantes conforme a reação da mulher. Houve casos em que ela vomitou. Durante esse procedimento, tudo ia sendo anotado pela máquina e apresentado holograficamente aos espectadores. Yasmin preferiu que fossem mais agulhas que aquelas coisas terríveis que as pessoas faziam com outras pessoas e com elas próprias.
Ainda com a cabeça dentro do instrumento, totalmente sem nada enxergar, Yasmin urrou de dor quando um objeto cilíndrico foi introduzido rudemente em seu ânus e choques elétricos dispersados insistentemente fazendo sua coluna enrijecer e vibrar. O mesmo ocorreu com seu orgão masculino, pareceu que uma fita áspera adentrou a parte cavernosa do membro e se alojou nos testículos. Ao primeiro impulso magnético, Yasmin desmaiou.
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Henrique acordou sobressaltado e desnorteado. Não sabia onde estava, parecia um quarto comum de hospital. A enfermeira que lia seu prontuário assustou-se de início, mas recuperou o controle e pediu que se acalmasse.
- Calma. Tudo bem. Você está bem e medicada - ela disse naquele tom de voz profissional.
- Onde estou? Como vim parar aqui? Cadê os torturadores?
- Você está no Hospital Einstein, a polícia a trouxe há alguns dias pois a encontraram na rua desacordada. Quanto a torturadores, não tenho notícia - ela sorriu imaginando os delírios que ela tivera enquanto estava em coma.
- Preciso ir embora - disse Henrique tentando se levantar mas desistindo imediatamente por causa da tontura e fraqueza que lhe tomaram o corpo.
- Relaxe, moça, logo mais o médico virá vê-la. Vou lhe dar um sedativo leve apenas para descansar melhor.
- Não, por favor, eu não quero .... - mas foi inútil, a química já estava fazendo efeito e Henrique adormeceu.
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- Você poderia contar de novo essa estória - perguntou a delegada de polícia para tentar encerrar o caso.
- Já contei três vezes, senhora. Fui sequestrado, torturado e depois abandonado por aí, vocês me acharam, fui medicado e estou aqui. Não sei quem são, nem o motivo. Só quero ir embora dessa cidade e nunca mais voltar.
- Essa parte nós entendemos, senhora - afirmou a autoridade.
- Qual o problema então ? - o jovem quis saber - estou tão confuso quanto você, o que vocês querem esclarecer mais ? Por que ficam me chamando de moça, senhora, o tempo todo?
- Veja bem, em todos os relatos recolhidos, a senhora repete que morava na cidade de São Paulo, na Pensão Lagoa Azul e que trabalhava com prostituição com o nome de Yasmin, confere?
- Sim, exatamente.
- Diz ainda que a senhora era transsexual, ou seja, era homem que se maquiava e vestia roupas de mulher, confere?
- Sim, qual o problema disso?
- Nesse caso, a senhora se prostituía com homens que pagavam para fazer sexo com a senhora via anal somente, certo?
- Sim, certo, certo, certo. Eu sou mulher presa no corpo biologicamente masculino. A parte da prostituição não tem relação com isso mas com a dificuldade de sobreviver financeiramente. Não entendo onde está a dúvida. Não seria melhor vocês procurarem quem me agrediu ?
- Aguarde um instante, senhora, já volto.
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Na sala ao lado, a delegada abriu a porta. Todos no recinto estavam a par da situação e aparentavam genuína preocupação.
- Ela insiste nisso o tempo todo e ainda fica nervosa quando a chamamos de senhora.
- Deve ser algum problema psiquiátrico, mas não parece oferecer perigo. Conte a ela o que sabemos e depois a libere, já perdemos tempo demais com isso. Quem seria louco a tal ponto de se julgar preso em outro corpo?
Os presentes concordaram com a decisão e a delegada foi instruir a vítima. Assim que entrou na sala olhou demoradamente para a moça à sua frente tentando dar crédito à narrativa dela, mas, por fim, balançou a cabeça negativamente e iniciou:
- Senhora, vou liberar sua saída, mas preciso orientá-la, certo?
- Por favor, delegada, é o que mais quero nesse instante, orientação e que se prendam esses malditos.
- Quanto aos agressores, não temos nenhuma pista, mas continuaremos investigando.
- Ótimo, quero poder dormir tranquilo.
A oficial de polícia notou que ela se referia a si mesmo no masculino.
- Ok, o problema vem agora. A senhora disse morar em São Paulo - Capital.
- Sim, mas de novo com isso, doutora ?
- Calma, a senhora vai entender. Ninguém conhece essa cidade "São Paulo", não há menção desse país "Brasil" em nenhum lugar do mundo, esse local não existe, também nunca se ouviu falar de transsexualidade.
Henrique ficou em estado de choque. "Como assim, não existe?"
- E tem outra coisa, senhora. Fizeram todos os exames médicos necessários e não há nada de errado com seu organismo, a senhora é mulher com toda certeza, inclusive há radiografias e ultrassonografias mostrando todo o seu sistema reprodutor feminino, ovários, trompas, útero, vagina, enfim.... tudo. A senhora é mulher. Nunca foi homem, muito menos uma mulher presa no corpo de homem. A senhora me entendeu ?
Henrique não sabia nem como responder a isso. Por alguns segundos apenas fitou a policial como se ele tivesse perdido o juízo. E tamanho foi o desalento que a própria delegada se aproximou para tocar seu ombro num gesto de solidariedade. Ao contato da mão feminina em seu corpo, Henrique estremeceu como se uma corrente elétrica tivesse se galvanizado naquele ponto. Ele também percebeu como o perfume daquela mulher era suave e agradável. Henrique surpreendeu-se por senti-la extremamente bonita e atraente. Algo totalmente novo para si. Interrompendo esses pensamentos, a agente da lei retirou sua mão do ombro dele e continuou:
- A senhora está livre, vez que não houve danos a ninguém, mas o Estado decidiu que a senhora receberá acompanhamento psiquiátrico para que se resolva essa questão talvez advinda do evento que a senhora afirma ter sofrido, ok? Entraremos em contato. O Estado providenciou alojamento temporário para a senhora enquanto as coisas se resolvem, nós a procuraremos lá.
Sem atinar com realidade e fantasia, Henrique aceitou o cartão com o endereço onde ficaria, deixou-se ser conduzido para fora da delegacia, foi posto num táxi e direcionado para o lugar de sua residência temporária. Ele não conseguia pensar. Tudo estava nebuloso.
Foi recebido no condomínio de apartamentos para sua morada e uma vez no quarto, pela primeira vez longe de terceiros, despiu-se diante o espelho. E lá estava o corpo de Henrique, ou melhor dizendo, a bolsa escrotal e o pênis de Henrique, até mesmo sua barba já fazia sombra na face. "Como eles podem achar que sou mulher?".
A polícia havia lhe concedido um celular para que fosse contatado a qualquer tempo. Henrique encontrou o aplicativo da câmara digital e aprontou-se para a selfie mais importante de sua vida. CLICK !
A foto mostrava Yasmin de corpo inteiro, rosto bonito, pernas roliças, seios salientes, coxas grossas, e vagina.
Sem saber o que fazer, aterrorizado com todos os acontecimentos, totalmente desprovido de apoio, Henrique notou que o abajur projetava três sombras sobre a mesa. "Deve ser refração do vidro", pensou.
Quando abriu a janela do imóvel, olhou para o céu e enxergou três magníficos sóis muito radiantes e espalhados simetricamente no horizonte. A abóboda celeste, normalmente azul por toda sua vida, era da cor púrpura e o poente trazia traços de escarlate e verde, mais adiante o mar emitia tonalidades roxas e amarelas.
- Onde estamos? - gritaram Henrique e Yasmin ao mesmo tempo.
FIM
TEMA: LGBT