CLTS 21 - Temas: Vampiro  /  Guerra nuclear


 

    Tu aí que me olhas... sim, tu mesmo com esta cara expressando repugnância. Pensas, por acaso, que estou assim horroroso deste jeito por que eu quero? Não senhor. Jamais! Fique sabendo que antigamente ser vampiro tinha lá o seu glamour. Havia um enorme respeito por nossa linhagem. Éramos mais bonitos e, te digo mais, a verdadeira aparência de um vampiro sempre evocava uma atmosfera sedutora.

 

    Os Centenários costumam chamar aquele período de “a época da fartura”. Mas olhando para os escombros da cidade lá embaixo, não vislumbro absolutamente nada destas antigas histórias, pois jamais tive o prazer de experimentar uma única gota de sangue humano... até hoje.

 

    Quero te contar, antes de abandonar este mundo repulsivo, o que me levou a buscar abrigo justamente aqui neste velho edifício. Gosto muito deste lugar, sabe? Esta marquise é o meu recanto predileto de meditação. Infelizmente, por ironia do destino, será o local derradeiro também de minha execução. Veja só que coisa mais triste.

 

    Sendo tu uma criatura alienígena totalmente isenta do apodrecimento odioso deste planeta, deves estar com pressa por averiguar as artérias entupidas desta necrópole. Sim, eu sei. Já vejo no teu semblante a tua impaciência. Mas, olha, não há muito o que ver, eu te garanto. Somos apenas criaturas em involução se entredevorando sem a alegria do bem viver de outrora.

 

    Não vou me ater em detalhes de como nos transformamos em tão baixo nível de decência, porém ofereço-te um vislumbre do que a nossa linhagem pretende fazer para voltarmos aos velhos e bons tempos de antes da eclosão nuclear que devastou o nosso precioso alimento. Tudo por causa de um pedaço de território estratégico irrelevante. Tu acreditas em tamanha estupidez? Pois é, assim são os humanos.

 

    Meu nome é Gorky, muito prazer em te conhecer.

 

    Bem, na hierarquia da facção à qual pertenço não passo de um vampirinho qualquer sem eira nem beira, a quem foi confiado a importante tarefa de proteger dois casais de humanos. Meu grupo concluiu, assim como outras facções desta região, que a única saída para a nossa salvação seria o estímulo da reprodução deles. Veja a que ponto chegamos!

 

    Sim, é verdade. Os humanos precisam se multiplicar novamente sobre esta terra para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós no passado.

 

    Sangue é o nome do líquido precioso que corre dentro dos corpos deles, e sem esta bebida preciosa estamos condenados a viver em uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Você já comeu um? É deprimente. E quando eles nos faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido frio e escuro correndo em nossas veias se compara ao vermelho morno pulsante dentro dos humanos.

 

    Mas deixemos de enrolação e vamos aos fatos. Uma facção inimiga, que pouco se importa com o destino da nossa linhagem, tomou ciência de estarmos de posse de alguns raros espécimes humanos que encontramos escondidos em um velho bunker antinuclear. Os membros mais fortes e sábios do meu clã fazem parte de um projeto ambicioso: cuidam do bem-estar de qualquer ser humano encontrado neste mundo devastado e os levam para uma outra cidade aqui perto, livre da radiação, onde podem encontrar condições mais tranquilas de acasalamento.

 

    A reprodução humana é lenta, como tu poderás confirmar, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento. Confiaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria vida enquanto a luta entre as duas facções estivesse em andamento.

 

    Pois bem, os quatro humanos foram acorrentados à parede de uma das salas do abrigo subterrâneo e fui indicado para ficar de olhos neles. Nem sei direito como tudo foi desembocar na situação que me condenou. Foi lance de momento, sabe? Uma tolice.

 

    A fêmea mais nova era linda! No entanto não foi a beleza física dela a me atrair. Não! Senti algo mais intenso, uma comoção violenta jamais sentida. E posso te garantir, olha, foi a experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até não acreditar, porém segui os conselhos do velho Iago, o mestre vampiro: “Garoto, fique longe deles e não os olhe demoradamente. Eles são muito valiosos”.

 

    E assim o fiz.

 

    Desviei os olhos deles o tempo todo, te juro, apenas ouvindo a ladainha das duas fêmeas amedrontadas. De início, nada senti. No entanto à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Ooohhh... o que era aquilo? Humm...minha boca, de repente, encheu-se de saliva, minha língua enegrecida pelo sangue dos ratos começou a estalar incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite, toda a estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentavam vibrou intermitente no compasso da batida do coração da humana mais próxima de mim.

 

    Voltei-me hipnotizado para ela.

 

    E o que vi, criatura de outro mundo, me deixou atônito!

 

    O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela fêmea não cobertas pela roupa desbotada ganharam uma tonalidade bem mais clara e transparente. Luminosa, eu diria. Sim, sim. Luminosa. Como se... como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada...  bem... como se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! É isso aí. Pude ver com clareza, destacando-se na luminescência da pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de veias por onde fluía o puro mel vermelho!

 

    Foi incrível, eu podia observar o sangue fluir dentro daquela fêmea! Fico emocionado só de falar. Pela primeira vez na vida pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de experiência selou o meu destino.

 

    Os de Sangue Quente perceberam o meu estado de ebulição.  Começaram a se agitar tentando se desvencilhar das correntes. A garota, a quem eu encarava sem perder o foco, expressava pânico naqueles olhos arregalados quando percebeu a baba do desejo a me escorrer abundante pelos cantos da boca.

 

    Não sei bem o porquê, mas quis impressioná-la. Então, arreganhei os meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum. Estava orgulhoso. Emiti meu urro de guerra. Queria fazer bonito, entende? Coisa de moleque. Ela saltou contra a parede assustada. As pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Confesso que não senti compaixão. O que senti foi fome. Muita fome.

 

    E aí, criatura de outro mundo, eu saltei esfomeado sobre ela!

 

    Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho, do qual tantas vezes ouvira falar nas histórias nostálgicas dos Centenários. Muitas vezes, aqui mesmo nesta marquise, folheei antigas revistas onde apreciava imagens de vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues docemente aos seus encantos. Aaahhh, ficava imaginando degustar vagarosamente aquele momento.

 

    No entanto, envergonho-me em te dizer, não fui nem um pouco gracioso com a minha primeira refeição humana. O companheiro dela, um tolo, quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não tomei conhecimento. Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos pressionando o pescoço com as mãos e desabou no piso encardido do quarto. Tentou estancar a hemorragia. Era um Imbecil.

 

    O cheiro e a visão do sangue abundante invadiram-me as narinas de uma forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Sou inteligente, e tu podes constatar isso no meu modo articulado de me expressar, não é? Todavia, o instinto de minha natureza foi mais forte. Investi minhas necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a gritar.

 

    As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem me passaram pela cabeça. Fui bruto com ela. Foi uma bocada só. Firme. Certeira. Enfiei todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um naco do pescoço da garota cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida espirrou o sangue a metros de distância e abocanhei o ferimento bebendo tudo em fartos goles pulsantes.

 

    Hummm... o gosto do mel vermelho. Tu, criatura de outro mundo, não tens a menor noção. Foi indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que percorreu todo o meu corpo. E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais, apesar de estar saciado. Queria experimentar o sangue dos outros para ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. É como te disse: perdi completamente a razão. Botei tudo a perder. Matei todos!

 

    Ao me dar conta da bobagem feita... sabia que estava condenado! Os de Sangue Quente são raríssimos de encontrar.  Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do bunker e fugir da cidade.

 

    Quando cheguei à superfície, o combate mortal entre os clãs se dava próximo à entrada do abrigo. O sangue humano a me encharcar o corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para trás. Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais pelo que lutar, e me vieram no encalço!

 

    É isso.

 

    Como tu podes ver, consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos estes andares. Tranquei a porta que dá acesso à esta marquise. Os mestres vampiros até tentaram arrombá-la, contudo desistiram e fizeram o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.

 

    Humm... tu deves estar aí admirado porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus lábios um tênue sorriso, não é?

 

    É mesmo engraçado a minha situação. Sempre ouvi fascinado as histórias da minha linhagem quando éramos poucos sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam os mais velhos, em tom nostálgico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar voo para onde quiséssemos. Aaahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas, qual o quê! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é uma quimera.

 

    Por outro lado, veja você, há características em nossa natureza que são imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte cruel e doloroso para nós.

 

    Por isso, olhes atentamente para o céu, além daqueles edifícios de arquitetura pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que, daqui a alguns minutos, os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens radioativas e irão varrer gradualmente as artérias desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito.

 

    E tu pensas que não estou com medo? Estou sim! Todos nós temos muito medo de morrer assim. O alvorecer talvez seja a única coisa que os membros de nossa linhagem sempre invejaram nos humanos. Onde eles viam uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos a morte, a condenação eterna de buscar abrigo na escuridão.

 

    Portanto, criatura de outro mundo, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...

 

* * *

 

    Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube exatamente com quem Gorky falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário. O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos fortes espalharam as cinzas de Gorky por sobre a cidade decadente e deserta.

 

    O vampirinho sem eira nem beira tornava-se apenas cinzas.

 

    Nada mais que cinzas ao vento.

 

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 19/11/2022
Reeditado em 01/07/2023
Código do texto: T7653043
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