Crianças da madrugada
Pessoas mais velhas sempre tem “causos” para contar, especialmente se forem do interior e tiverem morado na zona rural.
Meus avós são um exemplo dessas pessoas, e eu sempre gostava de ouvir suas histórias, que era muito intrigantes e que sempre despertavam dúvidas em minha cabeça com relação a serem histórias reais ou apenas “causos” criados e passados de boca em boca.
Bem, acabei não chegando a uma conclusão sobre isso, mas vou relatar abaixo uma dessas histórias e você amigo leitor poderá tirar sua conclusão ou ficar na dúvida sobre ser ou não verdade.
Tentarei ser mais fiel possível ao relato de meu avô, uma vez que essa história me foi contada a uns 30 anos atrás.
Meu avô como já disse viveu sua vida toda na zona rural, em fazendas na época em que não havia energia elétrica e nem as tecnologias que temos hoje. E naturalmente tudo era diferente. A vida era diferente.
Conta ele que nas redondezas onde morava se falava muito das “crianças da madrugada” e que ele ouvia falar sobre isso desde que era muito jovem. Mas ele também não sabia se era verdade ou não, uma vez que nunca havia presenciado tal fato, apenas ouvido falar sobre o assunto.
Contava-se que que determinada estrada, em certa época do ano, pessoas que porventura precisasse por ali caminhar nas altas horas da noite, adentrando a madrugada relatavam ouvir vozes vindo do meio da mata que ladeava a referida estrada, algo que gelava o corpo toda da pessoa, uma vez que todas sabiam que não haviam casas por perto, e que eram crianças rindo e cantando cantigas de roda no meio da madrugada em um lugar esmo era bastante improvável, totalmente fora da normalidade.
Obviamente essa estrada era evitada ao máximo após o sol de pôr, a não ser que fosse extremamente necessário e ainda assim por pessoas corajosas ou que não conhecessem a tal história.
Meu avô tinha dúvidas sobre a história, pois só ouvia relatos de pessoas que também ouviram outros falarem, nunca de ninguém que teria vivido realmente a situação.
Até que certa vez, quando sua esposa entrou em trabalho de parto e era preciso recorrer aos trabalhos de uma parteira, e em toda fazenda era costume ter uma parteira, porém para seu desespero a parteira local estava acometida de uma enfermidade e impossibilitada de prestar o auxílio necessário.
A solução seria pegar uma charrete e buscar uma parteira em outra fazenda próxima, fazendo-se necessário percorrer a tal estrada em horário já avançado. Mas era preciso, não dava pra esperar amanhecer, o risco seria grande.
Sem pensar duas vezes e sem nem se lembrar da tal história, preparou a charrete e saiu estrada afora, deixando a esposa aos cuidados de outras senhoras que moravam na fazenda.
A distância não era longa, mas suficiente para trazer na sua memória as histórias que ouvira durante sua vida toda. Ele sabia que era nessa noite em que ele saberia se eram reais ou não. Mas tendo medo ou não, era preciso fazer isso e sozinho, pois na charrete só caberiam duas pessoas.
Pois bem, não poderia correr muito pois a noite estava escura e o cavalo poderia se desequilibrar devido à escuridão da noite. Viajou então na maior velocidade possível, ouvindo por vezes o barulho de pássaros noturnos, o que era então uma normalidade.
Chegou então à fazenda onde a parteira residia, bateu à porta, se desculpou pela hora e explicou a situação, pedindo para que ela o acompanhasse até sua residência para prestar o socorro necessário para trazer seu filho ao mundo.
A parteira era uma senhora bem idosa, mas com perfeita saúde e disposição, disse que sim, que só ia pegar algumas coisas necessárias, se trocar e partiriam sem demora. E esses minutos de espera pareceram horas para meu avô.
Quando se acomodaram na charrete, a primeira coisa que a parteira perguntou olhando bem nos olhos de meu avô foi se ele não tinha ouvido nada estranho durante o percurso até sua casa.
Meu avô achou uma pergunta até estranha, e respondeu que não, que não havia ouvido nada, que foi tranquilo.
A parteira então deu um sorriso bem sinistro, que causou arrepios em meu avô que ficou a imaginar o que exatamente ela estava querendo dizer.
Seguiram a viagem em silêncio, ouvindo por vezes o barulho de criaturas noturnas. Em dado momento o barulho se tornou mais alto e assustador, e depois um silêncio súbito e sepulcral. O cavalo parou. E umas vozes de crianças se ouviu então. A princípio bem distante, suave, discreto...vindo bem de longe.
A parteira olhou para meu avô como se já esperasse por esse momento, com olhar sereno, sem nenhum medo, sem nenhuma sensação de que aquilo fosse novo para ela.
As vozes eram de crianças, talvez 3 ou 4 , conversavam, riam, pareciam felizes...depois começaram a cantar cantigas de roda, muito antigas, depois novamente o silêncio.....depois cantavam, riam.... e por fim lentamente se punham a chorar quase imperceptivelmente, depois a soluçar....
Meu avô nesse momento disse nunca em sua vida ter sentido tanto medo... e a parteira continuava em sua tranquilidade assustadora...
Após alguns minutos ouvindo as conversas, risos, cantigas e choro tudo voltou ao silêncio total, o cavalo como se saindo de um transe voltou a dar passos amedrontados.
A parteira perguntou então ao meu avô que estava ainda em choque:
- Conhecia essa história, eu presumo. Quer saber o porque disso? De quem são as vozes?
Meu avô disse que sim, que conhecia mas não sabia se estava preparado para saber mais sobre a história, mas enfim a curiosidade era maior, pediu que contasse.
A velha senhora então começou seu relato:
Há muitos anos aqui nesse local houve um fazendeiro que almejava ter filhos homens para herdar sua propriedade e toda suas posses e continuarem seu legado, mas esse não era o plano de Deus.
Sua esposa pariu 4 meninas, uma a cada 2 anos, eu fui a parteira de todas elas, queriam muito não ter sido para não presenciar tal atrocidade. Menino, era uma obsessão para o fazendeiro e a cada parto que eu ajudava a fazer, também ajudava a preparar um corpo inocente de mais uma menina que o cruel fazendeiro devolvia para Deus de uma maneira bárbara e insana.
Quatro partos, quatro enterros no quintal da casa, nasceram mortas, essa era a mentira absurda que ele contava, sua esposa nunca soube a verdade, não até a última menina ser morta por ele.
No quarto quando eu fazia os partos, sempre estavam apenas eu e o fazendeiro, e a esposa, claro. Ele era poderoso e rico, eu era uma pessoa pobre, jamais acreditariam em mim, passei anos sendo atormentada até que no quarto parto, não mais aguentando contei para a esposa toda a barbárie que havia presenciado. Ela entrou em desespero e chorando copiosamente me disse que desde a morte da primeira filha sentia que algo estava errado mas não podia confrontar o marido cruel que queria filhos homens.
Voltei para minha residência, e sempre orava a Deus para que desse força e discernimento para aquela pobre mulher, para que ela tivesse forças para viver, apesar dessa desgraça que havia acometido sua vida.
Mais ou menos um ano depois, fiquei sabendo que a tal mulher havia perdido sua sanidade, e havia matado seu esposo, o fazendeiro certa noite quando dormia, vindo a tirar a própria vida depois.
A fazenda ficou abandonada, sendo comprada algum tempo depois e tendo a casa derrubada pelo novo dono.
As vozes que ouvimos são das meninas mortas pelo próprio pai logo após terem nascido, pelo simples fato de terem nascido meninas.
Essa era a história real das crianças da madrugada, mas o que não contavam é que apenas eram ouvidas quando a parteira estivesse junta na viagem.
Nessa madrugada meu avô teve certeza que a história era real e minha mãe veio ao mundo.
Agora você pode tirar sua conclusão sobre ser real ou não...