O choro da degolada

*Adriana Ribeiro

   

    Às vezes eu a ouço chorando, noutras simplesmente a vejo deitada no chão de terra com os olhos abertos sobre uma poça de sangue... De repente eu ouço os gritos. Entre eles o de minha mãe me chamando para não deixar que eu a visse. Mas já era tarde. Eu vi tudo. Mas hoje daria tudo para não ter estado ali em meio àquele alvoroço.

     Os tremores e suores frios ainda me incomodam e parece que vou continuar a ouvi-la indefinidamente pois não posso evitar.

     Somente quem já sofreu um trauma sabe bem das sensações que eu descrevo.

     O episódio fica voltando à minha mente de forma recorrente e involuntária. Não consigo controlar o número de vezes que ele ocorre nem a intensidade com que o efeito das lembranças me afeta física e psicologicamente.

 

     Eu digo física porque quando o trauma se instala na cabeça - pelo menos foi assim que aconteceu comigo - a vontade que se tem é de tentar fechar os olhos o mais apertado possível para ver se as visões desaparecem. No meu caso, costumava levar as duas mãos aos olhos na tentativa desesperada de tapá-los diante da cena horrorosa que eu via. Claro que nada disso adiantava porque a imagem já estava gravada na minha memória e mesmo que eu tentasse fechar os olhos ela continuava lá me assombrando. Além disso há todo um processo de sudorese, tremores e perda de movimentos voluntários. Não consigo sair do lugar até que as sensações passem.

      Muitas vezes ficava paralisada diante de cenas incríveis, de cenários maravilhosos e situações de grande alegria, quando um relance de memória trazia à tona aquela cena que me deixou traumatizada por todos esses anos.

     Não fiz terapia para tratar a condição psicológica na infância, a situação financeira não deixou, mas com o tempo fui aprendendo a conviver com as lembranças assustadoras daquele fato. Porém tem dias que é muito difícil não lembrar. 

     É como se eu voltasse no tempo e ainda tivesse 7 anos de idade...

 

    Terminei de subir a ladeira carregando um pequeno cacho de licuri verde na mão e uma capanguinha de pano com licuri seco pendurada no pescoço. Vinha caminhando pelo acostamento da estrada que liga a cidade de Arauá à BR 101, bem à frente do pequeno grupo formado por minha mãe, minha irmã e uma coleguinha que morava vizinho à nossa casa. Havíamos ido buscar licuri para quebrar e comer. Esse era um hábito do povo da roça que eu sempre gostei e naquele dia havíamos dado sorte. Encontramos vários cachos verdes bons para cozinhar e também várias camas de licuris secos prontos para quebrar e comer.

 

     Na pressa de chegar em casa para começar a quebrá-los peguei a dianteira e já havia me afastado das companhias uns cinquenta metros e adentrava à cidade quando cheguei em frente ao terreiro de uma das casas à beira da estrada no lado oposto à Fazenda Tuim.

     Ali eu vi uma mulher, de aproximadamente uns 40 anos, sair correndo de dentro de casa em direção a uma touceira de bananeiras que antecedia um sítio de laranjas e parar próximo à um jirau de madeira que aparentemente era usado para lavar pratos e fazer outras atividades domésticas.

 

     E antes que a mulher desaparecesse por detrás do bananal eu ouvi uma mistura de grito e choro como se fosse um gemido. Tive a impressão de que ela me chamava e por isso não sei o que aconteceu comigo, pois, de repente me vi em pé, ao lado daquela mulher que segurava forte uma faca ensanguentada numa das mãos enquanto a outra tremia junto com o restante do corpo deitado no chão.

 

     De início eu não vi o sangue, mas dava para ouvir o borbulhar de algo que eu não sabia, e não soube por muito tempo, o que era. E quando gritos começaram a ser ouvidos, minha mãe chegou por trás de mim tentando virar minha cabeça de encontro ao corpo dela e foi nesse momento que eu vi o sangue começando a escorrer de sob o corpo que ainda se debatia ali no chão.

     

     Pessoas começaram a se juntar ao redor da cena e minha mãe saiu me puxando para longe dali, mas não sei o que acontece com as pessoas quando essas coisas ocorrem. Ninguém conseguia ir embora daquela casa. Todos que chegavam iam se amontoando no terreiro do quintal apertado.

     Não sei quanto tempo se passou, mas alguém fora buscar o médico da cidade para atestar o óbito e junto com ele também veio o delegado e alguns policiais. Quando estes encerraram suas tarefas ali as pessoas começaram a se organizar para limpar e preparar o corpo para o velório. E eu mais uma vez fui atraída pelo ritual.

     Pequena como era, vi por entre as pessoas quando levantaram a defunta. Ela estava de olhos muito abertos e parecia que olhavam para mim. Mas logo alguém passou a mão sobre eles fechando-os e várias pessoas carregaram aquela mulher até o jirau.           Quando a depositaram sobre as varas, por descuido de alguém, a cabeça ficou em falso pendendo para trás e foi aí que eu vi que ela havia se degolado.

 

     Até hoje eu não entendo como alguém teve tamanha coragem e força para fazer um corte fatal como aquele em seu próprio pescoço.

    Devido ao burburinho que se fez no momento alguém correu para colocar a cabeça da morta na posição certa. Mas eu já tinha visto a cena toda. Não havia mais sangue saindo. Já estava coagulado. Mesmo assim a situação era terrivelmente chocante.

     Depois que banharam e vestiram aquela senhora, levaram-na para dentro de casa onde ficaria esperando o caixão chegar. Só então eu pude ir para casa, pois minha mãe também estava entre as mulheres que ajudaram a carregar água para lavar o corpo.

 

     Na noite daquele dia horrível eu tive o meu primeiro pesadelo.

     Minha mãe diz que eu ficava dizendo para a degolada não chorar e inocentemente perguntava-lhes se estava doendo.

     Não lembro de nada disso. Mas ainda sinto vontade de fechar os olhos com as mãos sempre que ouço o grito e vejo aqueles olhos arregalados olhando para mim. Isso quando não vejo o pescoço pendendo para trás como numa cena de filme de terror.

     No dia seguinte de manhã o corpo foi sepultado. Eu não fui. Mas minha mãe acompanhou o cortejo quando passou na frente da nossa casa. E eu fiquei olhando da janela aquele caixão com as laterais roxas sendo conduzido à mão por alguns homens da cidade.  

 

   Nós dias que se seguiram as especulações sobre as causas daquele sinistro incomum foram várias. Mas a princípio eu entendi que ela era louca. Havia adoecido depois que a mãe falecera e seus nervos ficaram abalados.

 

     Depois de um tempo o povo da cidade começou a espalhar maledicências dizendo que aquela mulher sempre fora vítima de possessões demoníacas. Mas de concreto mesmo foi que ela havia recebido alta do sanatório haviam poucas semanas. E que naquele dia o filho mais velho havia acabado de sair de casa dizendo que ia buscar ajuda para interná-la novamente, pois a mesma tivera uma recaída e se negava a tomar os remédios.

     Alguns acreditam que foi por medo de voltar ao manicômio que ela se matou. Outros, os mais sensitivos, dizem que ela foi vítima de uma entidade que a perturbava desde que a mãe falecera...

 

    Mas seja qual for a teoria condizente com as especulações, a verdade é que o caso da degolada é só mais uma das histórias tristes de pessoas que desistiram de viver por alguma razão misteriosa... A minha pequenina cidade é cheia delas...

 

Obs. A história é baseada em fatos reais e para preservar a identidade familiar, nomes não foram citados propositadamente. 

 

 

 

*Escritora e Poeta sergipana. Natural de Estância e residente em Arauá/SE.

Autora dos livros de poesias Coração poétio: sobrevivendo na poesia e Coração poético, volume 2: Entre o amor e a Filosofia.

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Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 09/11/2022
Reeditado em 10/11/2022
Código do texto: T7646422
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