O homem que sabia o dia em que iria morrer
*Adriana Ribeiro
O medo da morte é um sentimento que permeia a mente da maior parte dos seres humanos. São poucas as pessoas que de fato não temem a hora da morte.
Alguns especulam sobre se seria bom saber quando se vai morrer. Outros defendem que a obra de Deus é perfeita e que o fato de apenas Ele saber a hora derradeira de cada um é a melhor forma de fazer com que as pessoas convivam razoavelmente bem com a ideia de finitude. No entanto, vez ou outra, surgem relatos de pessoas que sabiam, ou pelo menos diziam saber, quando e como iriam morrer. Mas o fato é que quase ninguém acredita que isso seja possível.
Recentemente um cidadão muito conhecido na cidade ficou doente e começou a chamar a atenção por se negar a ser levado ao hospital. Dizem até que rejeitava a visita do médico da localidade dizendo que não precisava, pois já sabia o que tinha e que ninguém podia mais ajudá-lo.
E ái de quem tocasse no assunto que ele logo mandava cuidar da própria vida, dizendo: "Ora! Se preocupe com sua saúde, pois, ao contrário de mim, você ainda vai demorar por aqui".
Outras vezes ouviam-no dizer que seus dias já estavam contados e eram poucos.
Um dia amanheceu muito pálido. Rejeitou o café da manhã e não quis se levantar da cama. A esposa, sempre zelosa, tocou- lhe a testa e sentiu que estava gelada. Pegou-lhe a mão e viu que não tinha equilíbrio. Assustada chamou às pressas uma sobrinha que morava ao lado e pediu que avisasse o irmão mais novo do marido para que pudesse ajudá-la a decidir o que fazer.
O cunhado não demorou muito e foi ao pequeno Hospital da cidade pedir uma ambulância. Levaram Seu Bento, era assim que se chamava o moribundo, ao Hospital Regional, onde ficou hospitalizado por quase duas semanas. Lá fizeram alguns exames preliminares e constataram um problema cardíaco. Seu Bento então foi liberado, mas com a condição de fazer todos os exames especializados para detectar com precisão sua doença e dar início ao tratamento adequado.
Porém, assim que voltou para casa, a ladainha da morte eminente voltou a ser sua resposta para tudo. Se negou a fazer os exames e, apesar da aparente melhora pós alta hospitalar, foi emagrecendo a olhos vistos, pois se alimentava apenas com o essencial e assim mesmo porque a mulher insistia.
Muito religioso, todos os dias de quinta-feira às 17:30 seguia para a igreja onde fazia parte da Irmandade da Boa morte e do grupo religioso Sagrado Coração de Jesus. Não perdia uma só reunião, terço ou liturgia dos grupos.
Não era um senhor depressivo. Pelo contrário. Afora a fraqueza física, estava sempre de bom humor, mesmo quando contava aos amigos que logo iria morrer. Gostava de fazer troça do medo da morte que as pessoas normais sentiam. E chegava a dizer que ela não tinha a aparência cadavérica e nem vestia-se de preto. Menos ainda que vivia carregando uma foice nas mãos.
Descrevia a entidade como um espectro, ou seja, como uma sombra sem gênero aparente. Dizia que suas vestes eram leves e que também tinha um cheiro agradável de flores. Mas não conseguia dizer que flores eram, quando alguém mais curioso e detalhista lhe perguntava. Também descrevia a voz ouvida como serena, quase terna, não assustadora como as pessoas diziam ter.
Na véspera do dia de São Francisco de Assis, o Santo padroeiro da cidade, Seu Bento acordou disposto. Pegou uma pequena enxada e seus apetrechos de pedreiro e pintor - profissões que exercia até bem pouco tempo, pois havia se aposentado há pouco mais de um ano - e saiu de casa sem dizer a ninguém aonde ia.
A esposa não estava em casa pois havia saído para visitar uma comadre que havia sido operada há poucos dias.
Pouco depois do meio dia Seu Bento voltou para casa. Estava pálido e suando frio. A Dona Sônia, o encontrou sentado na cozinha com a cabeça sobre os braços debruçados na mesa de mármore. De início pensou que apenas dormisse e o chamou. Como não respondesse perguntou o que ele tinha e ouviu uma voz fraca dizer:
__ Minha hora está chegando. Avise meu compadre para providenciar tudo que nós combinamos. E dizendo isso tornou a deitar a cabeça e continuou de olhos fechados. A respiração quase imperceptível.
Dona Sônia que achava que o marido estava apenas tendo uma recaída, foi ter com o cunhado para pedir que fosse buscar o médico. Do jeito que o marido estava não poderia recusar ser examinado. Dali a pouco o irmão entrou na cozinha às pressas e se aproximou de Seu Bento mas já de longe dava para ver que o médico viria apenas constatar o óbito. E foi isso mesmo que aconteceu.
Naquela tarde de quinta-feira, às 17:30 - hora da reunião da Irmandade da Boa morte - seu Bento expirou.
Após a liberação do corpo feita pelo médico, a esposa o vestiu com os trajes talares da Irmandade, composto de calça de brim azul e camisa branca. No pescoço foi colocado o crucifixo pendurado com numa fita vermelha.
No dia seguinte foi realizado o cortejo até o cemitério. Já na entrada encontraram o rapaz que cuida do lugar. Este, ao ver o caixão sendo carregado pelos filhos e irmãos do morto tocou na tampinha de vidro da parte superior e falou:
__ É Seu Bento! O Senhor tinha razão. Estava na hora de limpar a casa nova.
Todos ficaram assustados com aquelas palavras. Foi então que o rapaz se voltou para os acompanhantes e disse:
__ Ontem ele esteve aqui, limpou todo o seu túmulo e falou que ia morrer. Eu pensei que ele estava fazendo troça, pois disse-me isso sorrindo quando perguntei-lhe se havia morrido alguém da família.
Ouvindo aquele homem, ninguém ousou dizer uma palavra. Ou melhor, não conseguiu.
Ao fim do sepultamento as pessoas se despediram dos familiares e seguiram as suas vidas e seus costumes. Entre estes últimos, especular o que de fato havia acontecido com seu Bento.
Foi assim que a notícia do “homem que sabia o dia que ia morrer” se espalhou pela cidadezinha do interior.
E, pelo sim ou pelo não, há quem acredite que a “ Irmandade da Boa morte” tem pacto com o além e uma das contrapartidas para os seus membros é revelar o dia que todos irão morrer.