Rumo - CLTS 21
Não sei mais o que é sentir dor, só vou - sentindo é um e outro resto de pau seco estralando a cada pisada, num chão triste desse, duro que nem pedra. E o areal? Eu sou agora é essa andança? Rumo certo. Tenho? Só vou. Quem decide é quem providencia. Mas faz tempo, sabe, tanto tempo que não sei o que é o-que. Parece mais que perdi assim meu juízo, ou consciência... sei não. Como roupa de herdar deixada esquecida em arribada; perde o futuro certo, não sabe quem vai vestir, nem se isso vai acontecer, se vai mesmo ficando para o tempo. E quanto do tempo se passou? Não sei se ele vem me buscar, ou se tá zangado comigo. Pras verdades, acho que zanguei foi comigo mesmo, ou com a ordem de tudo, tô zangado com meu juízo – ou ele zangou’s de mim? Não consigo me lembrar, e o que vem de lembrança é só remendo. Taí, acho que tudo é memória. Que seria da gente sem memória? A gente existiria? Feito gente? Talvez mesmo eu tenha deixado de ser. Mas veja, vêm visagens. E todas de revestrés, por vez sem vontade nenhuma minha, mesmo eu não sei se gosto delas. Cada coisa que vejo de mim da mente, de nada não tiro certeza... Ó, que vou andando e isso aperreia: dum terreiro de chão laranja; mãos miúdas; um bichim se desfazendo nessas mãos, se remexendo e perdendo a força, zuadando fraquinho um “piii... piii...”; e depois essas mãos manchadas duma coisa forte, segredosa, e com jeito de escuro num claro de vermêi. Uma hora percebo o fundo disso tudo, a mensagem. Mas mesmo eu, agora? Caminho. Sei que há guardado o fim dessa estrada, pois quem manda, garante. Sou só um paciente dos mandos de além-de-nós; não somos todos, também? Vai tudo ficando mais escuro, e por aqui há colinas, mas tão longes, que a gente consegue não-ver. Lá do outro lado se mexem uns pontos pouco maiores, maioria marrom, e uns outros, menorzinhos, com mais cor, esses são mais largos pra riba, vão como fazendo o caminho pra esses enfileirados. Vem de lá um “Ráá!... Ráá! Ô!”, com uns estalos de lapada, seguindo, às vezes, com um murmuro arrastado, de obediência, mas grosso. Tá se acabando o dia, lá se vai solzão, tudo derretendo no céu – é quando aparecem coisa também nele, gritando bonito ou feio, mas nunca bagunçado. Uns deles vêm sei nem da onde, mas outros voam pra descer numa lagoa, fazem monte lá... mas é a única que dá pra ver, né. Certos são eles. Fazemos mesmo igual, não? O que rareia chama a gente. Eu vou descendo esse monte, gosto mais de mais a frente, lá não é tão rispo. Vai, menino velho, correndo feito doido por aí, de brincadeira parecendo, pra tá judiando dos outros só, fazer menino menor chorar, até se machucar no sério. E se vem gente grande brigar, mais vale um golpe lá onde se pendura a força dos hômi, ou mesmo uns tabefes onde as fêmeas envergam pra frente – e foge, pro mato, pra chegar só de noite e tentar escapar da pisa móde preocupação. Mais um fantasma. Mas disso já desisti de caçar senso, trato agora é como nuvem: vai passando e pronto, seu existir foi só minha breve olhada. E tem ainda coisa que me dê gosto? Avalie o que é um campo desse, sertão mesmo, com subida, canto de coruja com esse luão enchido, dividindo o escuro, um nada barulhento acontecendo; a gente vê umas cutias só de vulto, se escondendo, ou aqueles passarinhos mais pequenos, no baixo, tentando sabe pegar algum grilo, talvez. Vamo passando e um sabe-deus no chão se arrasta à toa. À toa? Nada! É cobra. Tem umas que zuadam como um chocalho quando chega perto. E tudo dissos da noite e do dia não são em vão, sem motivo de ser – tudo vai rumo a um desconhecido só da gente que estranha, porque pra tudo mesmo, na razão de ser, tem propósito, a gente que tá distante dele. E é boazinha a noite, não só porque o redor fica em segredo pra gente desvendar, mas porque a gente mesmo vira segredo, a gente vai percebendo os nossos segredos; e com esse silenciado todo de fora é que conseguimo uma ponta de hora pra tentar desvendar, saber o que se passa com nós – o importante é saber que no nosso íntimo as coisas não funcionam como numa roça, onde tudinho funciona na mão, fazendo, e no raciocínio de resolver, inventar, lá no redemunho nosso as solução surge é no silêncio mesmo; erro é de quem tenta curar o nada do calar com barulheira. Essas coisas são sérias? Isso surgido de repente, que parece até alhêi, tem tudo pra ser estúrdio, longe da gente, porém, no refletir, é o que mais parece nos preencher. Pai nojento, do meu ódio, homem mole com todo mundo, com mania de valentia dentro de casa, um nada desse, que resolve é de se raivar com os dele, eu lá sou disso, isso é gente? Por isso que solto grito mesmo, esculhambo, e pedir benção pra quê? Vou é de briga, em noite, de chegar em casa melado, tido raiva só de ver a cara caída dele, por isso que avanço logo com murro, pra sair sangue, pra mesmo na madrugada ser expulso, na ameaça e facão apontado. Mas dele? Não. De vizinho também imundo vindo no aperreio, mas se fui, fui com vingança prometida. Ventim da noite é que é bom, não vem com aquele seco réi de desgastar, de fazer tossir, esse com friozinho é que gosto, tudo se agrada. Vem bem de leve pra gente. O que mata é essa coceira, essa tremição que vem. E até pra coçar é que é ruim também, unha grande a minha, e a pele é fraca, sempre abro um rasgo, pele essa não decide se é molenga, se é seca, se existe ou não, se não quer largar o osso, fica lá ele ao frescor da noite, pra ver se se acalma, com pingo igual lama, pouca. Cada coisa que a gente faz, né? Quando não tem um norte, uma luzinha na vida, faz as besteira e se agarra nelas, não se livra, sai virado com isso crescendo, virando como mandacaru, pra sair rasgando nosso ser. E deve ser por isso que nós resolve ficar com esses problema, de medo da dor de arrancar. Ah, que vai o doido pelo meio do mundo, do sertão, se junta com bando, pega em faca, em arma, faz maldade, invade alheio dos outros, rasga do sagrado e do íntimo, arranca sangue daquele que achar a cara boa pra sofrer, faz trairagem; é até preso, anos passam, sai, mas nada de bom toma. De onde que vêm essas maldades? Até mesmo aquele que o povo tem medo só de pensar, falar o nome - mas do rosto muito já vi, muito bem, em vários - não nasceu sendo ruim. A culpa é nossa? É nós que joga a semente... mal faz mais quem vai lá regar. De menino mesmo sendo amarrado, surrado de castigo, com costa arranhada de vermelhidão, e jogado salmora por cima, pra gritaria; tudo ainda no meio da rua, pra todo mundo ver como se fosse coisa bonita. Lá vai o mesmo crescido até, servindo de máquina, não sei, de puxador, de foice, de bacia, de burro; só disso. Nossa maldade vai crescendo porque só nos lembram que há ela dentro da gente – cresce achando que só isso é que é. Há-que chegou o cabra já fugido, indo pelo caminho das antigas, conhecendo aos poucos, pulando pela janela da mesma casa e pedindo abrigo, com mãe senhora já, chorando – com saudade? – mas tomando o perguntar do que havia e impedindo a estada, com justiça de lá ser lugar de respeito, é aí que o ódio se toma de novo, e quem barra? A faca na cintura... foi o que bastou, e restou dela foi nem o grito, só as mão se juntando, amarradas por um tercinho de madeira, surrado; e o fim veio depois, com polícia se ajuntando na estrada de casas, já pipocando o mal. Ah, como as coisas todas poderiam de ir tomando outro rumo. O negócio mesmo é ir seguindo, confiando no fim. Ói só, que andei tanto e nem senti, estou é no mêi de mato alto? É de milho, rapaz! E dessa noite é que vejo tudo diferente, essa que sopro nenhum tem, só uma força lá de dentro, de não guardar mesmo. E tem é voz. No meio do milharal? Nessa boca de noite? Quem vaga um dia para. Tou é fadado à maldade eterna? Um homemzinho, com um lampareiro, uma espingarda, assustado que só. Tava atrás era de quê? De bicho que acabava com a plantação? Como é morrer? Saber se tou no inferno ou no céu? Vai ter alguém pra zelar pela gente? Pra cuidar? É o que eu não sei. Chega ao fim mais uma vida; a mim ninguém quis, não tive a minha vez.
Tema: Folclore