O azarão no velório

O azarão no velório (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

Noite de lua clara. Sapos, besouros, mosquitos e vespas faziam a festa na praça da cidade onde se localizava o velório. Tudo estava normal e amenizando o calor latente do dia, a pequena e prolongada garoa cobria os telhados das residências da cidade e a fagulha das águas escova pelas telhas e calhas.

Meio apressado para chegar em casa, ou seja, Mário residia no sítio próximo à cidade por cerca de quinze a vinte minutos, caminhando em passos pequenos. Ele trabalhava no escritório de advocacia do sobrinho. Trabalhava lá mais por prazer, pois foi advogado de um grande grupo de empresas na capital do estado. De meia idade, casado com a professora de Psicologia do colégio local, ele saia do trabalho e caminhava até o sítio de sua propriedade. Deixava a camionete para a esposa, que tinha aulas até às vinte e duas horas. Ora fazia o percurso caminhando ou pedalando a bicicleta importada, muito leve e bem macia.

Naquela tarde, ele não estava de bicicleta, pois a deixou no escritório por causa da garoa e temia cair no barro. Iria esperar a esposa, mas ficar sem algum lugar seria difícil, a não ser que fosse para casa de algum amigo dele ou da família. Lembrou, porém, que havia falecido seu primo, o qual foi companheiro de infância. Cresceram, brincaram e conviveram até o momento em que ambos foram separados por força do destino, pois os estudos, as profissões e as localidades eram separadas por grandes distâncias. Não perderam totalmente o contato, mas dificilmente se encontraram.

Tristinho pelo amigo, arranjando o guarda-chuva da secretária do escritório, lá foi ele rumo ao velório. Não gostava muito de mortos, pois tinha medo da morte; não gostava de tristezas, nem mesmo dos choros de familiares, amigos e quem ali estivessem. Lá, estaria bem volúvel às ingratas sensações de medo, de pavor e de desconfiança. Na realidade, ele não se sentia bem em desejar a saudação e os cumprimentos referentes à partida do finado para o infinito. Via a família triste, os filhos chorando, a viúva ou o viúvo de cabeça baixa, parentes chorando, pessoas dizendo que o finado ali presente era boa pessoa, até mesmo o padre ou pastor fazendo as orações, como um momento muito difícil.

Não tendo outra escolha, após dizer à esposa que iria ao velório, ele se dirigiu rapidamente. Ao chegar à praça, mesmo se molhando com a garoa que se aumentava de volume, transformando em chuva mais forte, ele contemplava com o olhar às árvores, aos pássaros que ali estavam, até mesmo ao pequeno enxame de besouros sumindo e se misturando aos chuviscos da chuva. Mirou no pequeno caule de ipê que se desprendia lentamente da matriarca. Achou aquela cena tão linda e meditou a maravilha que é a natureza, mesmo naquele momento difícil que ele passava ao visitar o amigo falecido. Demorou mais tempo e a cada segundo, a chuva aumentava tornando o guarda-chuva mais enxarcado. Os sapatos já se encontravam bastante úmidos. Acompanhando os sapatos, a calça permanecia bem molhada dos joelhos para baixo. Alguns dos que estavam presentes permaneciam preocupados com a situação que o cidadão se encontrava.

Dona Mercês, aproximando-se da varanda do velório, foi logo dizendo para que Mário se aproximasse, pois do contrário ele ficaria todo molhado, porque a chuva estava aumentando e já viram clarão nas imediações da serra e alguns estrondos de trovões. Mesmo assim, ele não dava atenção aos clamores da anciã, visto que ele mesmo pretendia retardar ao máximo a entrada à sala. Alguns imaginavam que ele estivesse receoso de estar ali, mas outros comentavam que ele estaria muito triste pela perda do primo e amigo.

Com o aumento a chuva, ele não teve outra escolha, a não ser enfrentar o medo e a ansiedade. Em pequenos passos, saindo da praça, ele pôs-se a caminhar serenamente, passo por passo, como se estivesse refletindo todos os momentos que passou com o amigo. Pensava na infância dos dois, os jogos de futebol, as brincadeiras de pique, as festas na cidade, as namoradinhas, os bailes, as danças e até mesmo quando eram coroinhas na paróquia. Lembrou, também, que os dois comiam muitas hóstias não consagradas e bebiam parte do vinho usado pelo padre.

Naquele pouco momento, viu-se a pequena risadinha no rosto. São lembranças que jamais alguém esquece, mesmo estando longe e, muitas vezes, o coração aperta em forma de lágrimas que somente a própria pessoa sente.

Ao se aproximar da varanda, carregando o guarda-chuva todo enxarcado, ele esbarra com Dona Mercês e por pouco não a derrubou ao chão, pois tentava fechar a proteção ligeiramente e este não obedecia aos comandos. Foi preciso a intervenção do Sócrates para ampará-la e protegê-la do perigo.

O chão do salão era feito de pedras de ardósia, nas cores verdes e detalhadas com a cor marrom. Tais pedras, ao se reagirem com quaisquer tipos de água, tornam-se escorregadias. Mário, ao fechá-lo, derramou muito líquido da chuva pelo chão e deixou aquele ambiente propício a algum acidente.

Cumprimentou Dona Mercês e lhe pediu mil desculpas pelo acidente. Ela, com o sorriso nos lábios, foi logo dizendo que não era nada. Olhou para o lado e viu alguns conhecidos. Com a cabeça, fez sinal de saudação aos que estavam ali. Olhando por baixo, viu que tinham várias pessoas ali, entre parentes, conhecidos, familiares...

Ele mantinha o olhar sempre ao chão, pois não queria olhar diretamente para frente e ver o amigo estendido dentro do caixão. O amigo, vestido de terno preto, gravata branca, de mãos cruzadas sobre o peito, como se estivesse segurando o buque de rosas brancas, vermelhas e amarelas. Cabelos penteados, olhos fechados e o semblante de alegria. Debaixo do véu e da cintura para baixo todo coberto de flores. Acariciando o rosto com as duas mãos, encontrava-se a viúva. Nos olhos dela, lágrimas escorriam semelhantes a límpida cachoeira onde ele e o amigo nadavam nos dias de calor. Também ao lado da cabeceira, em sentido oposto, alguns filhos do falecido. Genros, noras e netos também presenciavam àquela fúnebre cena.

Seu olhar se distraiu ao ver a pequena criança de mais ou menos três anos, que entretida estava segurando e brincando com o boneco dinossauro. Lembrou Mário de quando os dois estudavam e o falecido sabia os nomes de todos os dinossauros. Algumas lágrimas foram vistas saindo de seus olhos. Porém, com a palma da mão direita, rapidamente, ele as enxugou. Era momento triste e Mário não tinha coragem de ver o amigo. Algumas pessoas perto dele o encorajavam para ir até lá, mas as pernas sentiam-se presas ao chão e passo algum ele não conseguia dar. Dona Judite, sua prima e irmã do finado, deu-lhe o pequeno empurrão para ir até lá, mas com os pés presos ao chão, ele se desequilibrou-se e abriu muito a perna. Como o piso estava com água vinda do guarda-chuva, ele mexeu o pé, porém o solado do sapato estava gasto, não houve gravidade e ele foi escorregando e caindo pelo chão frio e úmido.

Ao se levantar, com a ajuda de alguns que estavam por perto, seu rosto tornou-se vermelho, semelhante às brasas do fogão à lenha onde a mãe do finado assava a gostosa e farta broa de panela. Meio sem jeito e desapontado, ele se recompôs e pediu desculpas aos que estavam ali. O menino que brincava com o boneco dinossauro riu e disse que “o homem caiu de medo de seu dinossauro”. Pequenos risos disfarçados foram vistos e ouvidos ali.

Olhando para os lados e não querendo olhar para o finado no caixão, ele se deslocou em direção dos familiares. Como estava a andar mais rápido, pisou no pé de Mariana, jovem alta, forte, bela e educada. A moça deu um grito de “ai, ai”. Ele, olhando para a jovem e tentando pedir desculpas pelo atrapalhado, não viu que junto à moça, sentadas em quatro ou cinco cadeiras, estavam mais outras senhoras. Não as vendo, foi por cima delas e acabou se sentando no colo da senhora mais idosa, que rapidamente, deu outro grito mais forte de “cuidado moço, você me machucou e tome modos, seu tarado”.

Ele se levantando rapidamente e pedindo mil desculpas, já caído novamente no chão, levantou-se ligeiro e não percebendo que se encontrava próximo aos cavaletes onde o caixão se apoiava, deu de cara com a borda deste. O impacto foi tão forte que balançou todo o caixão. Levantando-se e tentando apoiar em qualquer coisa, segurou o cálice onde se encontravam duas das quatro velas, que foram cair justamente sobre o peito do finado. O tecido era fino e meio inflamável. Logo foi sentido o cheiro de algo queimando. Viram-se fumaças saindo do peito do finado. Novamente, lá no fundo, o menino que brincava com o boneco dinossauro falou que o “homem está com medo do dinossauro”. Novamente risos foram ouvidos e sentidos.

Mário, para se redimir daquilo que fez, tirou a blusa e foi logo correndo para tentar apagar a pequena chama e a fumaça saídas do peito do pobre defunto. Aproximou-se muito rápido e não diminuiu a velocidade. Ao se apoiar sobre o peito do cadáver, ele aumentou a força de impacto e foi derrubando o caixão com o corpo do amigo. Por falta de sorte de Mário, a urna caiu sobre seu pé direito. Mário gritava de dor e pedia socorro para livrar-lhe dali. Dizia que o amigo iria despertar em forma de um grande vulto.

Alguns riam. A viúva e os familiares mais próximos choravam e davam algumas gargalhadas. Outros aproveitavam a cena e se deslocavam para a varanda com vontade de ir embora. Mário gritava de dor e pedia socorro. Tudo em vão, pois ninguém tinha coragem de ajuda-lo naquele instante.

Deu-se um grande relâmpago e o estrondo foi muito grande. As luzes se apagaram, mas voltaram rapidamente. Entrando pela janela que se abria com o forte vento, um grande vulto sobrevoava aquele lugar. Os relâmpagos aumentavam e os sons fortes dos trovões eram constantes. A grande sombra sobrevoava todo o perímetro e soava certos sons diferentes, meio ocos, fortes e sem explicação.

O vento soprava imensas rajadas e estas colidiam rapidamente às janelas, fazendo com que os prendedores se soltassem e fossem direto aos portais como se fosse o mais novo filme de terror já escrito e filmado. As duas portas de entrada, com a brisa revoltosa, abriam-se e fechavam-se causando espanto generalizado.

Os gritos e choros se igualavam como se fosse o mais árduo e duro terror coletivo. Crianças gritavam pelos pais; homens chamavam os filhos e mulheres. Ninguém mais se conheciam naquele ambiente. Os fracos gritos e choros de Mário nem eram ouvidos. Ele, por sua vez, ardia de dores e a massa do caixão, acrescentada ao corpo do finado, massacrava os frágeis e magros pés daquele amigo trapalhão. A sombra pairava flutuando por todos os cantos e debatia aos quatro cantos do vasto e enfeitado salão.

Assim, a cena arrepiante se estendia por longos minutos. Jamais alguém se conhecia, mas gritos, choros e mais barulhos se ouviam. Lá fora, a chuva estava mais forte. Granizos, ventos, relâmpagos e até os galhos fracos de algumas árvores se desprendiam, sendo arremessados a todas direções. Por falta de sorte, as luzes da cidade faltaram e tudo era breu, por causa da queda da torre de transmissão.

Aos poucos, tudo estava em silêncio. Somente ouvia os fracos gemidos de Mário, que jamais tinha forças para se livrar da urna mortuária do amigo. O velório ficou vazio, nem mesmo os familiares permaneceram lá. Quando o dia clareou, o coveiro se aproximou e viu que tudo estava em silêncio. Escutava, pois, os fracos suspiros de alguém. Velas caídas pelo chão, flores espalhadas por todos os lados. Cadeiras esticadas e tombadas. Sinais de que a noite não foi nada bem. Galhos de árvores caídos em várias direções, guarda-chuvas destruídos e sinais de queda de parte do muro do cemitério. Lá no fundo, encontrava-se Mário transpassado de dores. Junto dele, o caixão caído sobre os pés dele e uma grande coruja morta bem próxima deles.

A ambulância foi chamada e Mário foi conduzido ao hospital com várias fraturas nos pés. O corpo do finado foi enterrado somente com a presença da família. Até hoje, Mário faz consultas fisioterapêuticas e jurou nunca mais ir a velório algum, nem mesmo ir a seu próprio velório.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 07/11/2022
Código do texto: T7644981
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