ALMAS PERDIDAS
Ele abriu os olhos e foi despertando lentamente de um sono profundo. Estava deitado em um banco do que parecia ser uma velha estação ferroviária. Chamava-se Paulo; era alto e magro, seu rosto lembrava as feições de uma raposa.
Um som sibilante ecoava a sua volta, parecendo badaladas de sino. Estava bastante confuso, não conseguia se lembrar de como havia chegado naquele lúgubre e arrepiante lugar.
Viu um trilho que a primeira vista dava a impressão de se estender indefinidamente, desaparecendo em um túnel no meio de uma enorme montanha. Verificou as horas em seu relógio de pulso e constatou que eram 8 horas.
Paulo levantou-se e começou a caminhar pela estação, não havia sinal de viva alma por perto. De repente, viu que uma bela mulher grávida caminhava em sua direção.
Ele fez menção de cumprimentá-la, contudo, a mulher passou sem perceber a sua presença e ficou escorada em uma coluna no centro da velha estação. Paulo ouviu um intenso e escalonado barulho que lembravam motores de carros antigos. Sentiu que algo poderoso estava para mostrar-se a qualquer momento. Logo percebeu que um trem surgia da montanha. O veículo tinha uma aparência lúgubre, até mesmo assustadora, com grades prateadas nas janelas e vagões que lembravam as locomotivas dos filmes que retratam o velho oeste americano.
O homem apenas observou. Após alguns minutos o estranho veículo em tom esbranquiçado parou. A grávida foi em direção a uma das portas, entregou uma espécie de passagem a um homem parado em uma das entradas e entrou. Paulo tentou embarcar também, mas o bilheteiro perguntou pela sua entrada e uma vez que ele não possuía, negou o seu embarque. O trem seguiu viagem.
Um sentimento de angústia foi tomando conta de Paulo. Não havia estradas por perto e apenas uma densa floresta se estendia a sua volta. Ele pensou que deveria estar em um pesadelo, sentou novamente no banco e esperou que aquele estranho sonho se esvaísse com o despertar de uma manhã comum, fechando os olhos e esperando acordar.
Entretanto, ele continuava no local. Novamente ouviu passos se aproximando. Um homem trajando um terno preto, chapéu cinza e gravata em tom escarlate se aproximava furtivamente.
O homem sentou ao lado de Paulo e passou a observá-lo. Paulo lhe perguntou:
— Que local é este? Pode me ajudar a sair daqui?
— Claro, possuo um bilhete para o próximo trem. Entrego-lhe sob uma condição.
— Sim, faço qualquer coisa para sair deste lugar o mais rápido possível.
— Quero sua alma em troca do bilhete — falou o homem vestindo luto em tom de galhofa.
Minha alma? Este cara está louco, Paulo pensou. E como o mesmo não acreditava em nada além do mundo material, resolveu fazer a “troca”, achando se tratar de uma boa piada, quem sabe uma câmera escondida caprichada, do tipo que ele via na TV aos domingos.
O homem de preto lhe entregou o bilhete e saiu caminhando lentamente, sorria com um ar tenebroso e enigmático em sua face. Paulo sentiu medo da espectral figura que trajava luto, mas tudo ao redor lhe causava mais pavores, precisava sair do local imediatamente, sentia que estava à beira da loucura.
Outro trem surgiu vagarosamente no horizonte. Paulo constatou mais uma vez as horas, já eram 8h50. Esperou que abrissem suas portas, entregou a passagem ao cobrador e entrou no veículo. Às 9 horas o trem partiu.
Existiam algumas pessoas no vagão onde ele se acomodou, porém, a maioria estava com um aspecto grotesco, como se fossem gado em uma fila de abatedouro, não tendo consciência de que algum mal poderia surgir a qualquer instante. Ele tentou se comunicar com um senhor idoso que estava mais próximo:
— Bom dia amigo, pode soar um pouco estranho, mas você pode me dizer para onde estamos indo?
O velho homem o olhou rapidamente, com um semblante curioso, desviando em seguida o olhar para baixo. Fez apenas um sinal para a cadeira mais próxima a Paulo, insinuando que ele deveria sentar-se. O idoso tentou balbuciar algumas palavras, mas o idioma soou estranho. Paulo pensou que provavelmente era grego. Desistiu do contato e apenas se acomodou no local indicado pelo homem.
Paulo ainda estava bastante atordoado e confuso, mas algumas lembranças foram surgindo em sua mente paulatinamente. Lembrava-se que estava entrando em uma loja de conveniências para comprar bebidas. As ideias e pensamentos estavam desordenados, mas conseguiu lembrar que estava dirigindo em alta velocidade, quando passou em um sinal vermelho. A última imagem que viu tinha sido a de um caminhão vindo ao seu encontro. Acordou naquele estranho lugar.
O trem agora estava em alta velocidade, parecia desintegrar-se, tudo ao redor de Paulo estava sendo apagado do plano físico que conhecemos. Ele tentou correr na direção contrária, mas parecia flutuar, não conseguindo sair de onde estava. Logo uma claridade tomou conta de tudo, alguma coisa similar a uma enorme mão fantasmagórica demonstrava querer apanhar o apavorado homem.
2
Na sala de parto de um hospital uma criança foi tirada do ventre materno por um médico de luvas brancas. Em meio as fortes luzes da sala cirúrgica que refletiam sobre o recém-nascido, a mãe olhou para o filho e disse:
— Bem vindo ao mundo meu filho.
A criança nasceu condenada, pois sua alma já não lhe pertencia.
Na estação ferroviária, o homem trajando luto olhou para o relógio de parede. Esperava agora pelo trem das 10 horas. No banco, outra pessoa agora despertava e logo encontraria seu destino eterno.