Lençóis, Ba… Rua “Voluntários da Pátria”. A menina estava sempre no mesmo lugar… no mesmo horário. Parada, sorrindo à porta do restaurante que tinha ali, naquela esquina perto da passagem de acesso ao rio. Mas as pessoas a ignoravam… Todos a conheciam. Não ignoravam por descaso, elas tinham medo… muito medo. Um pavor que não tinha solução. Ou você se mudava daquela esquina, daquela rua, daquela cidade… ou precisava aprender a ignorar aquela menininha linda de vestidinho branco e surrado.
Os garçons do restaurante, as cozinheiras, os carregadores e empregados diversos entravam as 8h e saíam às 18h. Sempre rapidamente e olhando pra baixo… sempre todos juntos. – “Oi! Eu sou a Lili! Você pode me ajudar a descer a ladeira…?” – Quando essa pergunta era feita as pessoas se espalhavam às pressas fazendo sinal da cruz, algumas (muitas vezes) chorando e passando muito mal. Outras não conseguiam voltar no dia seguinte. Às vezes passavam até o resto da semana inteirinha sem conseguir voltar; mas a dona do restaurante – e dona também dos outros(poucos) empreendimentos que haviam ali, naquela rua – respeitava o tempo que as pessoas se acomodavam do horror que sentiam. Topar de frente com aquela criança era um horror que todos evitavam, e eu também.
Certa vez um mochileiro perdido se aproximou… Eu estava comendo um acarajé e bebendo água de coco, entretido com um livro… ele era barbudo e muito loiro. Tinha olhos incrivelmente azuis e sua pele estava extremamente castigada pelo sol que sua pele não tinha costume de se expor… mas estava feliz. Entrou no restaurante e foi fitado por olhares tristes, meio conformados… Olhares de: “Chegou mais um coitado…”. – Pode sentar, senhor… Fique à vontade. – Disse um garçom, enfiando um cardápio em sua mão. Ninguém tentava ser cortês demais. O garçom não queria ser gentil, pois se sentiria culpado depois… Mesmo assim o homem sorriu sem fazer perguntas, com um português ruim. Todos se retraíram como baratas assustadas. Foi então que ELA surgiu… lá no portão.
Ela chegou rindo graciosamente e o estrangeiro sorriu de volta, ela o chamou insistentemente e ele se levantou enquanto a carne de sol com purê e batatas fritas não chegava. “Oi! Eu sou a Lili! Você pode me ajudar a descer a ladeira…?” – O homem olhou em volta (sempre sorridente) como se procurasse pela mãe da criança ou qualquer responsável, pois era uma menina muito pequena para estar sozinha. Tinha no máximo uns cinco anos… Alguns segundos depois, parou de sorrir e olhou com olhos julgadores (meio indignados, até…) – os funcionários do restaurante e pessoas do outro lado da rua. Logo todas as portas foram se fechando. Ele aceitou o convite e quando saiu do restaurante… a porta bateu com força atrás dele. Seus pertences ficaram lá dentro.
O homem passou alguns minutos batendo, gritando e xingando em sua língua difícil. Até que sentiu uma mãozinha puxando sua camisa. Uma mão que ele já estava quase esquecendo, e que estava ao seu lado. – “Oi, eu sou a FLORA, você pode me ajudar a descer a ladeira?” – Então ele parou, e segurou a mão da menininha com todo carinho, mas… “Flora?! Não era Lili…?!”. Era uma ladeira pequena, escura, com uma estreita estrada de pedra. Muros altos ao lado, de casas antigas, e poucas árvores. O estrangeiro percebeu que não havia nenhum barulho de animais, nem mesmo passarinhos ou grilos… também não havia vento, as árvores estavam estáticas. Era uma paisagem morta. Um ambiente extremamente nulo…. Começaram a descer juntos. Ele observava a menina e tentava sorrir pra ela, sem muito sucesso. Pensava em suas mochilas, sacolas… e principalmente… em seu passaporte.
Quando a menina pulou em cima dele sem aviso, talvez ele não tenha tido muitos segundos para ENTENDER o ataque. Foi apenas algo muito forte, pesado, violento como poucas coisas na terra poderiam ser… que o fez cair e sentir uma dor na nuca após o choque contra uma pedra no chão. Foi tão forte que seu corpo tremeu e ele nem pôde gritar muito alto. Apenas emitiu um ruído de agonia que parecia brotar de dentro do estômago, como se qualquer animal vivo e se debatendo dentro diante da morte o faria. A menina tinha terríveis e enormes dentes afiados. Todos eles… Seus olhos se tornaram arregalados, pupilas eram enormes bolas de gude totalmente pretas. Ela se agarrava fortemente ao pescoço do homem, arrancando brutalmente a pele de seu pescoço, expondo os ossos, brancos entre a tinta vermelha escura do sangue, que escorria de seu pescoço e estômago. O que quer fosse aquela linda garotinha de antes, por dentro era algo monstruoso, animalesco… e de movimentos incrivelmente ligeiros. Ela corria e saltava com os pés e com as mãos e voltava pra ele arrancando mais alguns pedaços. Ele ainda tinha resquícios de vida, e de dor… mas não regia. Depois de se alimentar… a menina escalou rapidamente uma árvore e foi pulando de galho em galho como se fosse uma mistura de macaco com aranha… sumiu na mata.
Algumas horas mais tarde… o restaurante pôde abrir novamente. Depois que o restaurante abriu, algumas cabeças apareceram nas janelas das casas da rua e tudo voltara a “normalidade”. Dentro do restaurante, alguns funcionários animados abriram a mala deixada pelo estrangeiro. Queriam ver o que tinham “ganhado”. Roupas, perfume, livros, dinheiro…? Pareciam felizes (mas não estavam) brindando uma garrafa de vinho que encontraram na mochila. Foi quando notaram a menina novamente parada na porta do restaurante, sorrindo diretamente para todos eles com um olhar demoníaco. Todos pararam por alguns segundos, horrorizados… A menina acenou com olhinhos semicerrados, tentando parecer ser a coisa mais gentil e inocente da Terra. – “Oi, eu sou a Lili, OPS! Gabi! Vocês poderiam me ajudar a descer a ladeira…?”, não houve resposta, apenas olhares que inevitavelmente não podiam lhe desviar…
– “um… POR… um…”