Os anjos da Capela e o caso de afogamento
*Adriana Ribeiro
Dona Sione é uma senhorinha pálida, frágil e sem vida social. Mal terminou o colegial pois desde cedo se tornara uma moça apática. Quase uma figura mística na cidadezinha de Boa Fé.
Nunca se casou e sua vida se baseia em afazeres domésticos, cuidando da mãe octogenária e das limpezas paroquiais.
Tornou-se voluntária nos cuidados com a igrejinha local e apesar de ser uma pessoa de poucas palavras, mantém a capela de Nossa Senhora da Pureza sempre asseada e arrumada.
O povo de Boa Fé quando a vêm calada arrumando o altar dizem que ela fez voto de silêncio e castidade em devoção à Santa Padroeira. Mas quem conhece a sua história triste sabe onde, quando e por que tudo começou.
Dizem que quando era pequena ela costumava ir lavar roupa no Rio Sabueiro com a mãe e os irmãos. Dona Sione é a segunda irmã mais velha entre os treze filhos, nascidos vivos, da dona Zefira Libório e seu Tibúrcio Bezerra.
Quando tinha por volta de 12 anos de idade a mãe estava recém-parida do oitavo filho e ela foi lavar a roupa acompanhada de seus irmãos Joson de 6 anos e Eron de 7. Costumavam ir com a irmã mais velha de 15 anos chamada Safira, mas nesse dia a irmã tinha ido à feira já que era sábado e a feira livre da cidade de Boa Fé acontecia sempre nesse dia da semana.
Com criança recém-nascida em casa não dava para ficar muito tempo sem lavar roupa e sem comprar leite e fécula de mandioca para fazer o “gogó ou engrossante” como era chamado o mingau de mamadeira que alimentava os bebês antes da invenção do Nestogeno e da Farinha láctea.
E lá foram os três irmãos lavar a roupa no rio próximo da cidade.
Era um local raso onde eles costumavam ficar e nunca haviam se aventurado para além da passagem conhecida.
Mas aquele dia não era normal. Já no começo da descida da ladeira eles avistaram um rebanho de carneiros às margens do rio bem na passagem onde costumavam ficar.
Sione pensou em voltar mas a trouxa de roupas sujas na cabeça a impeliu a procurar um outro local mais acima da passagem onde a água não estivesse tão "bungada" para colocar o banco de madeira que os irmãos levavam nas cabeças.
Seguiram em frente e assim fizeram.
Mas a passagem que encontraram mais à frente não era muito larga e ficava depois de uma passagem de madeira antiga, usada por pedestres quando o rio enchia. Era só um pau grosso atravessando o leito do rio que, de tanto tempo sem uso, estava cheio de musgos e cascas frouxas.
Mas os meninos ficaram encantados com a descoberta.
Sione não deu conta de lavar tanta roupa e vigiar os irmãos por muito tempo, pois, depois que os dois deram fé da ponte improvisada não quiserem mais saber de ajudá-la. Começaram a caminhar por cima do pau sem muita preocupação. Inocentes como eram em nenhum momento se preocuparam se ali seria perigoso. Se o rio era fundo ou se teria alguma pedra ou coisa do tipo embaixo do tronco velho de madeira.
Sione ensaboou toda a roupa ouvindo a algazarra dos irmãos e subiu com a bacia para estender as últimas peças sobre os capins para "quarar". Quando já estava terminando ouviu um barulho estranho. Olhou na direção dos irmãos e começou a ouvir os gritos de Eron:
_ Jason? _ Jason?
O menino havia se desequilibrado sobre o tronco velho e caído no rio. Como demorasse a voltar à tona, o irmão começou a chamá-lo. Mas Jason não voltou mais, desesperado e sem juízo Eron pulou no rio para procurar o irmão.
Sione, que correra o mais rápido que pôde até o local, ainda viu as costas de Eron pulando na água, mas ao chegar à beira da ribanceira ao lado do tronco não viu nenhum dos dois.
Começou então a chorar desesperadamente, pulando e gritando o nome dos irmãos, intercalados por pedidos de socorro.
Cerca de uns duzentos metros dali haviam dois trabalhadores da fazenda consertando uma cerca para impedir a fuga das ovelhas e ao ouvir os gritos da menina correram para ver do que se tratava.
Mas antes de vê-los Sione também se lançou dentro do rio para ver se achava os irmãos.
Quando os dois trabalhadores chegaram ao local onde ouviram os gritos avistaram os cabelos de Jason, que eram loiros devido ao sol, e foi esse o primeiro garoto que eles resgataram do rio, porém já sem vida.
Mais adiante na margem o segundo homem avistou Sione e se não fosse o vexame do momento ele teria ficado lá admirado e imóvel.
Dizem que este trabalhador relatou aos primeiros curiosos que chegaram ao local do afogamento, que avistou a menina boiando de barriga para cima com as duas mãos postas como se rezasse. Mas apesar de tê-la retirado da água desacordada, esta ainda estava viva.
O segundo menino deu mais trabalho para ser encontrado mas também já estava morto. Ficara preso nos garranchos que haviam embaixo d'água por isso o corpo não emergiu.
A notícia da tragédia se espalhou rapidamente porque um dos homens carregou Sione no colo até a cidade, pois a menina ainda tinha sinais vitais. No posto médico entregou a menina aos cuidados da Dona Juventina, velha enfermeira da cidade e foi até o quartel informar ao delegado o ocorrido, enquanto o outro trabalhador ficava tomando conta dos corpos dos meninos.
Foi assim que a Dona Zefira e Seu Tibúrcio receberam a notícia da tragédia. A morte dos dois filhos e a incerteza da sobrevivência da menina Sione fez Dona Zefira "quebrar o resguardo". Dizem que ela foi acometida de uma febre inexplicável depois do enterro e ficou acamada por quase um ano. Nunca mais voltou a ter saúde.
Dona Juventina e Safira a irmã mais velha de Sione foram quem cuidaram da menina que "queimou vela" a noite toda naquele sábado, "morre mas não morre".
No domingo fizeram o enterro dos dois anjos, Jason e Eron, na Santa Cruz que ficava no caminho entre a cidade e o rio. Era ali que se enterravam as crianças que morriam antes de serem batizadas.
Sione não se despediu dos irmãos nem os viu depois de mortos.
Passou o dia delirando no posto de saúde. Dona Juventina não a mandou para casa depois que soube da prostração da mãe. E na segunda-feira quando o médico chegou na cidade e examinou a menina, disse que ela iria recuperar a consciência logo pois não havia mais perigo de morte. Sione sobreviveria ao afogamento.
Mas ela ainda passou duas semanas de olhos fechados. Dona Juventina relata que às vezes a encontrava sorrindo. Noutras a ouvia chorando, gemendo e muitas vezes a viu até se debatendo e suando muito. Quando se acalmava dormia por horas.
Como se por milagre no dia da padroeira da cidade a menina abriu os olhos assim que o sino da igrejinha tocou convidando para a missa matinal.
Dona Juventina contou que a primeira coisa que ela falou foi se podia ir à missa.
A velha senhora estranhou, mas disse que sim, se ela conseguisse caminhar ela a levaria à igreja.
Não era longe do posto médico, aliás, nada era longe em Boa Fé. Era uma cidadezinha pequena.
Dona Juventina mandou avisar a Safira que a irmã acordara e pedia para ir à igreja.
A moça pegou o único vestido de festa da menina - de corte simples feito de caça branca - e uma sandália, colocou na bolsa e mandou pelo mesmo portador.
Dona Juventina banhou e vestiu Sione. Alimentou-a e depois foi levá-la até a igrejinha pois a irmã não pudera ir.
Quando elas entraram no salão o povo todo se voltou para vê-las. A menina caminhava com lentidão devido à fraqueza e seu semblante pálido estava coroado pelos cabelos negros compridos e soltos. Toda ela era condizente com a estátua no altar. Até o gesto das mãos postas na frente do corpo - o qual fora narrado também pelo seu salvador no momento do resgate - se assemelhava à Nossa Senhora da Pureza.
O povo murmurava entre si várias coisas. Mas Sione só queria agradecer a sua protetora.
Dizem que até hoje ela conversa com os irmãos Jason e Eron.
Há relatos na cidade de que ela já foi ouvida na igrejinha dizendo:
" fica quieto menino" ou "não mexa aí seu traquina".
Dizem também que nessas ocasiões foram ouvidas risadas de crianças na sacristia.
Mas tudo isso pode ser só invencionice de um povo cheio de imaginação...
Safira se casou e foi viver na capital. Dona Zefira se tornou uma mulher adoentada dos nervos, mas depois do bebê ainda teve mais cinco filhos.
Dona Sione cuidou de todos eles. Cada um depois de grande foi cuidar da própria vida. Só ela ficou em casa cuidando dos pais. Já perdeu para a morte três entes queridos. O último fora o pai. Mas continua devotada aos serviços da capela e da família.
Vez em quando ela é vista à beira do rio ou da Santa Cruz. Dizem que é sempre na data em que a grande tragédia da sua vida aconteceu. Também nesses lugares já a ouviram conversando e até sorrindo.
Também a vêm indo ao cemitério visitar a "carneira" da família. Mas não há relatos de que ela converse ou sorria, apenas rezando e fazendo limpezas.
Mas na igrejinha local à conversação é bastante relatada...
Dia desses espalharam a história de que ela foi questionada pelo novo padre enviado pela Diocese em substituição a antigo que se aposentara, pois este a ouvira sorrindo e conversando “sozinha".
E a resposta que ela docemente deu foi:
__ Ora Padre! O Senhor não acredita em anjos? Saiba que por aqui é cheio deles! Pensei que pudesse vê-los como eu.
Mas não sei não. O povo vê e diz até o que não se passa...