Criança que chora! O povo inventa cada uma!

 

     Venho contar para vocês uma situação nada comum que vivi há alguns dias atrás.

     Precisei resolver algumas pendências no município de Estância e aproveitando a semana de avaliações bimestrais da escola onde trabalho, saí um pouco mais cedo e fui até lá acompanhada da minha filha e apenas por isso a situação que vou relatar não foi mais inquietante.

 

     Depois que conseguimos fazer tudo que planejamos, tomamos o caminho de volta para casa bem tranquilas e satisfeitas, porém apressadas. E teria sido uma viagem tranquila se não fosse um safanão que levamos na estrada de um caminhão tão carregado de laranjas que a carga por pouco não virou em cima da gente já nos últimos sete quilômetros do trajeto.

 

     Devido a brusca manobra o pneu do carro caiu num dos milhões de buracos da estrada de asfalto antigo e todo destruído e furou.

 

     Para nossa sorte paramos próximo a um dos poucos postes de beira de estrada com iluminação funcionando.

 

     Minha filha, que conduzia o carro, apesar de nervosa, conseguiu fazer com que ele chegasse até o acostamento mal iluminado e mesmo sendo apenas dezenove horas ficamos com medo de sair do veículo devido ao isolamento em que estávamos.

 

     Tentamos ligar para casa, mas o local ruim de área não dava sinal em nenhum dos dois telefones.

Cansadas e, por que não dizer, inexperientes em matéria de mecânica, não sabíamos nem como retirar o estepe do carro para fazer a troca.

 

     Resultado: Ficamos lá dentro do carro parado por cerca de cinco ou dez minutos (ninguém observou) que pareceram uma eternidade. Até que vimos se aproximar do carro uma feição conhecida e amistosa.

 

     Era um rapaz jovem montado numa bicicleta velha dum modelo bem antigo. Ao nos ver de luzes acesas dentro do automóvel parou para perguntar se precisávamos de ajuda e ficou gesticulando na frente do para-brisa.

 

     Foi aí que percebemos que ele não era uma pessoa assim tão conhecida como imaginamos no momento da aflição, mas com certeza era solidário e o mais importante é que nos ajudou a trocar o pneu, e apesar de não podermos disfarçar o medo em nossas caras lívidas, nos tratou com muita gentileza.

 

     Durante o processo de substituição do pneu pelo estepe ouvimos o choro aflito de uma criança. Oras parecia ser bem perto de onde estávamos e noutras parecia que alguém passava por nós carregando a criança no colo pois o som do choro começava baixinho e ia aumentando até passar por nós e seguia diminuindo o volume como se estivesse se afastando novamente.

     Aquilo se repetiu ao menos umas três vezes e eu comecei a achar muito estranho, então perguntei a minha filha se estava vendo alguém com uma criança chorando nos braços ali por perto.

Eu estava segurando o celular com a lanterna ligada para iluminar os parafusos e por isso abaixada ao lado do carro que estava no acostamento.

 

     Minha filha que estava do outro lado do carro aparentemente não me ouviu perguntar porque continuou como estava olhando o celular tentando achar um jeito de avisar o marido da ocorrência com o carro.

 

     Tornei a perguntar mais alto e, ainda sem olhar para mim, ela respondeu que não estava ouvindo nada.

 

     Perguntei então ao rapaz que estava agachado apertando os últimos parafusos e, para a minha surpresa ele respondeu:

__ Ouço sim Dona. Mas não tem nenhuma criança não. É só o choro mesmo.

 

     Eu achei que ele estava de brincadeira e perguntei:

_ Como assim? Claro que tem uma criança chorando aqui perto! E deve estar com alguma dor ou com muita fome, pelo tanto que chora...

 

     O homem terminou o serviço, levantou a cabeça e olhou para ambos os lados da estrada e só então disse:

 

_ A Senhora tá vendo alguém por aqui?

 

     Olhei também nas mesmas direções e depois encarei o rapaz e respondi:

_ Vendo não! Mas estou ouvindo uma criança chorando e você também.  Então não tem como não ter alguém aqui perto porque pelo choro só pode ser um bebê ainda. E um bebê não anda sozinho!

 

     O rapaz olhou para mim e para a minha filha, que a essa altura também já me olhava de forma estranha, virou as costas e caminhou em direção a sua bicicleta velha.

     Quando já estava passando a perna para sair falou: __ É só uma visagem antiga dona. Todo mundo conhece essa história por aqui. Se vocês são de perto já devem ter ouvido falar na história da criança que chora.

 

     E dizendo isso, pôs o pé esquerdo no pedal e impulsionou a bicicleta com o pé direito. Em seguida passou a perna sobre a mesma, sentou-se sobre a sela, começou a pedalar e se afastou da gente para dobrar numa entradinha que havia na frente de um portão branco.

 

     O nosso assombro com a história foi tão grande que nem sequer agradecemos pelo serviço que ele fez no pneu.

 

     Entramos no carro e minha filha ligou o motor sem dizer uma palavra e eu fui o caminho todo resmungando a frase:

__ Não pode ser visagem. Tinha uma criança chorando lá. Não é possível! Eu ouvi claramente! Era uma criança chorando sim.

 

     Quando já estávamos chegando perto de casa, minha filha finalmente resolveu falar e disse:

 

__ Mãe! Eu realmente não vi nenhuma mulher com criança ali. Nem ouvi nada. Deixe essa história para lá mulher. Graças a Deus já estamos chegando em casa.

 

     Eu fiquei quieta! Não pelo que ela dissera. Mas porque já havia me convencido de que não adiantava continuar discutindo.

 

     Chegamos em casa e retomamos as nossas rotinas noturnas, mas aquela situação não me saía da cabeça.

     Passei dias e dias lembrando do fato.

 

     E já o teria esquecido se ontem, quando fui à farmácia comprar um antialérgico para tomar devido uma crise de renite, não tivesse encontrado uma senhorinha que mora bem perto do lugar onde paramos naquela noite.

 

     Contei da aventura que vivemos e mencionei superficialmente o choro da criança que havia achado estranho.

 

     A senhora pareceu surpresa e parou para olhar pra mim, em seguida perguntou:

__ Você a ouviu?

__ Sim! Eu disse.

     Ela então perguntou de novo:

__ Ficou com medo?

 

     E eu respondi:

__ Na hora que ouvimos não. Porque o rapaz que trocou o pneu também afirmou ter ouvido o choro. Mas depois que ele falou que era só uma visagem fiquei um pouco.

     A Senhorinha ficou calada me olhando.

__ Mas por que a Senhora está me perguntando isso? Perguntei.

 

     A Senhorinha continuou olhando pra mim, mas logo em seguida sorriu e disse:

__ Bem menina, essa história é bem antiga e muito triste. Mas vou lhe contar rapidinho senão vou perder o carro dos estudantes.

 

__ Naquele lugar, há muitos anos, aconteceu um acidente horrível. Um casal com uma criança recém-nascida seguia de bicicleta em direção à sua casa por volta das sete horas da noite e foram atropelados por um caminhão de laranja que estourou o pneu da frente e acabou virando por cima deles que passavam na hora pelo acostamento. Com o impacto o casal morreu na hora mas a criança foi achada ainda viva por moradores do local e só assim conseguiram descobrir que havia pessoas ali embaixo da carga.

     Os primeiros curiosos que chegaram no local encontraram o bebê a uma certa distância do caminhão virado por causa do choro. E dizem que quando a trouxeram para prestar socorro na claridade do poste ainda chorou alto por mais alguns minutos mas logo em seguida morreu.

     Somente já tarde da noite foi que conseguiram retirar os corpos de sob a carroceria do caminhão e para surpresa de todos a criança também estava morta no meio dos dois.

 

     Ouvi esse relato com uma sensação de desfalecimento tão intensa que pensei que fosse desmaiar lá mesmo na farmácia.

     A senhora me vendo empalidecer, segurou no meu braço e disse:

__ Sente aqui minha filha senão você vai cair!

 

     E eu, meio em estado de choque, sentei sem fazer resistência.

 

     Logo os atendentes da farmácia me rodearam e só deu para ouvir a Senhora dizer:

__ Isso é a pressão minha filha. Eu tenho isso as vezes. Precisa se cuidar.

 

     E dizendo isso se despediu com um a “até logo”.

 

     Mas descendo o degrau da saída ela ainda falou:

 

__ O rapaz que conduzia a bicicleta era meu tio-avô. Eu moro lá bem pertinho da "criança que chora", onde tem um portão branco. Quando quiser, pode aparecer...

 

     "A criança que chora” ... “Rapaz da bicicleta”... “ Portão branco” ...

 

     A pressão caiu de novo. E fleches de memória giraram na minha cabeça por alguns segundos.

     Alguém me deu um algodão com álcool para cheirar e eu fui voltando ao normal.

 

     Foi então que ouvi o atendente da farmácia dizer:

__ Criança que chora! O povo inventa cada nome de lugar!

 

     Mas para mim agora fazia todo o sentido!

 

Adriribeiro/@adri.poesias

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 12/10/2022
Reeditado em 12/10/2022
Código do texto: T7625946
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