César tinha se decidido, e parecia não haver nadar demais… é só mais uma coisa que você faz se quiser ou não. As eleições estavam acontecendo... em seu bairro, sua rua, na cidade que era enorme e em todo o país. Fazia um calor com vento, um cheiro salgado de mar. César chegou na janela do quarto e viu o movimento nas ruas lá embaixo. Cada qual estampando em sua roupa uma bandeira, uma ideia, um ideal... Muita buzina gente indo e vindo. Um comentário, um burburinho geral sobre o mesmo assunto… Aquilo o deixava irritado. Querendo voltar para cama…

 

– É… De repente tudo se resume a isso. O "atestado de cidadania" e ainda… pra muitos: o "atestado de bondade"… quatro anos cagando na porta dos vizinhos, quatro anos chutando a bunda de todo mundo, quatro anos tentando levar vantagens, quatro anos surrando as pessoas em casa e então você aperta um botão e se sente um santo. Ah você é… eles são… agora mais um “botão de validade” de quatro anos de bondade…

 

Tocaram na porta… Tocaram na porta dos fundos. "Deve ser o zelador…"

 

César abriu a porta e era mesmo o zelador… Mas ele tinha um olhar diferente. Geralmente era um homem matuto e muito sorridente. Vinha de uma cidade do interior próxima, mas tinha sido criado numa roça, com pouca convivência, mas sabia se adaptar à cidade. Se chamava Manoelito e César brincava chamando-o de “Manu”. César era um morador de longa data e os funcionários o adoravam; pelo tratamento e também, é claro, pelos Perus de Natal e garrafas de uísque que ele SEMPRE mandava pra cada um deles em dezembro. Mas agora... o zelador tinha um olhar diferente.

 

– Lixo por favor…

– Fala Manu, tudo joia?!

– Eu estava votando… de manhã cedo…

– Ahn… hehe, OK, legal. Então. Bom, tomai. Tenha um ótimo di…

– E o senhor...? O senhor estava votando… ???? – César engoliu seco… fez uma cara de vergonha, com um sorriso forçado. Mas logo “consertou” a própria face num olhar sério de “não somos tão íntimos”.

– Tenha um ÓTIMO dia, Manoelito. – E fechou a porta sem esperar o homem sair. Ele tinha um olhar estranho. Nada amigável. “Devo falar com o administrador?”… “não, deve ser só essa febre eleitoral... todo mundo fica SE achando... Amanhã isso acaba.”.

 

Foi novamente até a janela, morava no quinto andar, tinha vista pro mar. César era um daqueles caras que falamos como se realmente não existissem; criou um aplicativo durante um momento em que as pessoas ainda não se importavam muito isso e ficou rico, pouco tempo depois. Rico o suficiente para fazer quase nada…

Olhava um grupo de pessoas lá embaixo na frente do prédio, estavam vestindo blusas coloridas de algum partido que César não fazia questão de saber. De repente... todos eles (mais ou menos umas vinte pessoas) deixaram suas bandeiras no chão e olharam ao mesmo tempo pra cima… Pareciam… “Eles estão olhando pra mim?!”. Aquele mesmo olhar… O mesmo olhar que o zelador tinha. Todos olhando pra ele. César removeu rapidamente seu corpo da janela. “Isso é maluquice… Estavam olhando qualquer outra coisa…”.

 

– Dia esquisito… Todo mundo fica estranho. Povo estranho, ainda bem que não nem fui lá… Pegar FILA com essa gente…

 

Cochilou um pouco...

 

******

 

César só começava a pensar em tentar fazer algo útil, durante a madrugada... Na maior parte dos dias era Gamer e tinha um canal no Youtube. Era um tanto famoso por ser muito rico e ter um aplicativo famoso em seu nome, então continuava fazendo algum dinheiro com acessos, enquanto jogava longas e difíceis partidas de videogame. Só usava a luz do sol se quisesse tomar um banho de piscina, sair com a namorada (tão notívaga e distante quanto ele) ou se realmente precisasse resolver alguma coisa. Dormiu por uns trinta minutos e despertou com o celular tocando.

 

– Alô? Ah, oi amor. Sim eu tava dormindo…

– “Você NÃO FOI votar, César?”

– Hã?! Desde quando tu liga pra isso, Juh?

– “Você tinha… que IR…”.

– Juliana?!

 

O telefone desligou. César se sentou, coçou os olhos... percebeu que havia algo diferente na voz da Juh. “Diferente… a VOZ dela… Parecia com…” – Correu até o banheiro. Se olhou no espelho, em sua frente havia um gilete e uma escova de dente. “A pasta… cadê?!” O telefone tocou outra vez. Era Juh de novo... Ela não era de insistir. Eles não eram de brigar... Não eram de se importar tanto com aquele relacionamento a ponto de discutirem "ideais"… só se viam aos SÁBADOS e domingos! Tinham uma relação praticamente de adolescente.

 

“Tsc. Droga…”

 

– OI... Alô? "CAIU" sua ligação, não foi…? hehe…

– “Você PODIA ter ido... VOTAR... ”

– DE NOVO ESSA CONVERSA?! AH, VAI A MERDA GAROTA. – Desligou.

– PUTA QUE PARIU. O QUE É QUE TÁ ACONTECENDO?!

 

Olhou em volta procurando a pasta de dente…Viu uma revista Playboy jogada no chão. Uma mulher sentada numa moto vestindo uma jaquetinha de couro e botas também de couro... e mais nada. Ela estava sorrindo. César coçou a cabeça olhando em volta, agindo como se encontrar sua pasta de dente fosse a coisa mais IMPORTANTE que pudesse fazer. César não era acostumado a se preocupar e fazia de tudo pra não trazer a tona a realidade que estava se formando em sua volta. O zelador… aquelas pessoas lá embaixo… a namorada… “Não, não… isso é loucura!! DROGA cadê minha pasta de dente?!”. Sua respiração subitamente TRAVOU de susto. Se segurou no lavabo encarando o chão, finalmente dominado pelo horror.

A mulher na revista estava séria. Em pé em cima da moto… Ela olhava pra César. Ela olhava diretamente pra ele. E aquele olhar… era... sim, era o mesmo o olhar… de todos eles. César correu para a sala e ligou a TV. O que era pra ser um programa de auditório, era agora um monte de gente se direcionando lentamente pro palco, juntando-se aos dois apresentadores. Eles tinham o mesmo olhar, apontados diretamente para a tela.

 

– “César... Ora, César... ” – Disse a apresentadora. César estava boquiaberto com o controle na mão. Deixou o controle cair e foi se sentando no chão em frente a televisão.

– Si..s… Siiimmm?? – Respondeu com uma voz abobalhada e covarde.

– “Porque você não foi… CUM-PRIR… com o seu dever… como… um CIDADÃO?”

– Mas…

– “SEM MAIS!!! O QUE VOCÊS ACHAM?! CÉSAR TEM ALGUM “MAAAASSS” PARA ACRESCENTAR??”

– “NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOO…”

– “Que vergonhaaaaa Césaarrr…” – Desligou.

 

– O que eu faço?! Isso é mentira, isso é pegadinha, só pode… isso... – Subitamente César correu até o quarto, olhou em volta com medo de não haverem revistas ou histórias em quadrinhos. E se atirou em baixo da cama. Tremia de medo… Principalmente ao pensar que “Manu”, o zelador… bem que podia a qualquer momento permitir que aquelas pessoas lá fora subissem atrás dele. E Juh tinha uma cópia da chave... apesar de todo o nervosismo, algumas horas depois, César conseguiu dormir.

 

Acordou, já eram umas dez da manhã. Olhou em volta... “Meu Deus o que será que eu tomei?! Hahaha…”. Saiu de baixo da cama e foi até o banheiro. Olhou a revista… a modelo da capa estava no mesmo lugar de sempre; com o mesmo sorriso. César suspirou, sorrindo… Ligou a TV por alguns minutos, só precisava saber que ninguém falaria com ele. Foi até a janela, observou as pessoas que passavam… Nada demais. “Preciso sair… comprar uma comida… SIM, A PASTA DE DENTE também…”.

 

Saiu sem tomar banho, apenas trocando de roupa. Desceu o elevador assobiando, mas estava nervoso. A noite anterior… "não foi real?" De qualquer forma, mesmo não sendo real, era preocupante… “Talvez eu deva procurar um psiquiatra…”“Ah! Hoje não… Amanhã ou depois...”. Saiu do edifício como se fosse dar um grande passeio, mas o mercado onde César comprava suas coisas, ficava praticamente na frente do edifício.

 

– Ah, hoje eu podia dar “txibum” nessa praia, hein… ou na piscina... – Disse em voz baixa enquanto passeava pelo mercado.

– "Bom dia Senhor." – Disse um atendente.

– Bom dia MIGÃO. Tudo bem com você...?

– "PASTA DE DENTE, SENHOR?"

– Nossa, acertou em CHEIO! Como é que voc…?!!

– "Você votou ontem… Senhor… "?

 

Quando César olhou em volta assustado, percebeu a multidão que chegava lentamente. Todos tinham aquele mesmo olhar, “você não votou César???”, “Você não votou??!” “Porque você não votou… César???”, “Você não votou… César?” “VOCÊ QUER UMA PASTA DE DENTE CÉSAR?”, "POR QUÊ VOCÊ NÃO VOTOU, CÉSAR???" ... César gritava se debatendo, mas todos eles já estavam perto demais pra que pudesse fugir.

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 02/10/2022
Código do texto: T7619160
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