"É verdade que em noites como ESSA aquela tal da moça aparece?"

 

– A Garota sem pai?! Sim, sim… Ela aparece. Mas SÓ quando fica muito escuro… – respondeu a velha senhora.

– ISSSOOO…!!! – Gritaram o grupo de turistas... mais gargalhadas vieram... Riam o tempo todo.

– Isso não é brincadeira. – Disse Dona Iraci cruzando os braços. Mas antes de cruza-los, fez ligeiramente também, um sinal da cruz muito bem desenhado em seu corpo magrinho.

 

Estava protegida.

 

Sabia que estava…

 

Eles não estavam.

 

Ela olhava aqueles jovens homens e mulheres bebendo cerveja e tagarelando aos gritos… No fundo sabia do inevitável de que a Garota sem Pai, já os espreitava. Dona Iraci  sempre a sentia... Elas se  quando eram bem pequenas antes da garota (que ela jurava não dizer o nome) morrer... estudavam na mesma escola. Sempre podia sentir quando as pessoas a estavam atraindo.

 

– Meninos isso é coisa séria… Deixem isso pra láá…! Tem tanta coisa bonita pra ver por aqui! Não é verdade? Esquece esse negócio de assombração pra lá... Curtam a JUVENTUDE de vocês enquanto podem!

– Ahh conta só mais um poucooo… Como ela morreu???

– (Dona Iraci suspirou) …

– Tudo que sei é que se faltar luz… Ela consegue ir pra rua. Pode entrar nas casas… pode ver melhor...

 

- Ela morreu quando ainda era mocinha. Então… – Dona Iraci fez uma pausa, coçou um pouco a garganta… sentiu uma leve fraqueza (vontade de sair correndo daquela conversa e também da  companhia). Terminou de contar: quando FALTA LUZ ela passa as madrugadas procurando algum homem adulto... que esteja sozinho por essas ruas escuras... e SE encontrar: ela tenta ABRAÇA-LO… E AÍ... Já era.

 

– Ela fica pedindo pro cara ser o pai dela… né isso?! Depois o que sobra dele…?

– Sobra pouca coisa.

– AAAhhhh não mata não?! Pensei que fosse daquelas assombrações miseravonas que matam todo mundo!!

 

Todos gargalhavam daquela conversa sem sentido. Dona Iraci já tinha parado de rir e sorrir há horas…Os jovens turistas se deliciava ouvindo a história e depois a reinterpretavam para ficar aínda mais cômica. Além disso, cada um deles tinha sua visão particular (geralmente muito violenta) do que fariam com essa tal “Garota sem Pai”, caso ela surgisse pra eles. Dona Iraci continuou calma, quase que totalmente em silêncio… bordando um sapatinho de criança pro filho de um casal que morava ali perto… Estava séria.

 

+++++++++++

 

... No fundo Dona Iraci não tinha gostado do jeito daquelas pessoas. Não gostava do jeito que elas falavam sobre as coisas que ELA ACREDITAVA. Não gostava delas. Continuou bordando e pensando... “Hoje tem forró na praça. Com certeza faltará luz por aqui. Ah… Pra quê diabos esse povo vem pra nossa cidade e fica chamando ELA? Meu Deus eles são jovens... Eles não entendem!!"

 

[Noite…]

 

– Ih, cara, olha lááááá…! Faltou luz mesmo!! Lá embaixo, dá pra ver daqui!

– Cuidado com a “mouuuça sem paiiiinnn”

– hahahah!! É mesmo! Já tinha esquecido disso! Olha lá FALTOU LUZ!!!

– E AÍ, VAI LÁ MESMO?!

– Oxente, claro que eu vou… Deixei meu dinheiro quase todo na pousada!

– Corre lá então a gente vai ficar aqui no mercado, pertinho.

– Vou tirar umas três selfies com a “Garota sem Pai”!

 

[Desceu…]

 

O rapaz desceu rápido segurando seu copo de cerveja olhando em volta por todos os lugares. Ficou mais atento chegando na rua escura…Estava com medo. Não precisava mais fingir. Não haviam mais garotas e amigos olhando... Lembrava-se detalhadamente das conversas… das história da velha senhora. Olhava em volta com viradas rápidas de pescoço; como um passarinho. Se sentiu meio bobo de estar ali. Se alguém lhe perguntasse “Do que você está com medo?!” ... inventaria todos os motivos menos a “Moça sem Pai”.

Entrou a direita, uma rua fechada… a rua da pousada onde estavam dormindo. Escuridão total. Mas… Numa época de festas, por quê as pessoas simplesmente não acendiam velas ou saíam na porta de casa?! A noite estava clara... Passou pelo estacionamento, estava andando apressado quase correndo. “é só entrar rapidinho, pegar a pochete em cima da cama e sair…” Seu coração estava acelerado e a cada passo que dava dentro do quarto minúsculo era como se alguém lhe contasse algo que o aterrorizasse ou uma notícia muito ruim.

 

– PRONTO!! ACHEI!!! Ah, esse povo… !! ... inventando coisa pra turista ficar com medo! BAH!! Deixa eu adiantar o passo aqu…

 

– “Pai…” – Ele ouviu. A voz o interrompeu imediatamente...

 

O homem parou na metade das escadas que descia, podia sentir todos os pelos do corpo eriçados e de repente, estava morrendo de frio. Suas mãos trêmulas, mal conseguiam segurar as chaves. Tentou mandar mensagem para alguém… o celular não ligava. “Não estava descarregado…estava cheio!!”

 

– “Pai?” – tudo foi ao chão. Telefone, chaves, dinheiro…

 

 +++++++++++

 

– “Eu só quero um abraço… você nunca mais me deu um…” - Ele não conseguia se mover. Não haviam boas opções, não conseguia decidir.

 

Poderia correr… mas era uma rua inteira e aquele “abraço…” parecia estar… “muito perto…” – Sentiu algo deslizar em seus ombros. Como uma tentativa envergonhada de fazer um carinho mas a textura era áspera, borrachuda... gelada.

 

- “Pai… Faltou luz… você me ajuda…? – Sem mais avisos sentiu o abraço forte, apertado.

 

… que durou alguns segundos.

 

Se sentiu morto…

 

Realmente como se o medo caminhar pelo seu corpo, matando pedaço por pedaço. Em poucos segundos, muitos anos de sua vida. Respirou descompassado por diversas vezes, sentia-se caindo, mas continuava em pé na escada e sendo abraço por ela. Fazia orações que mal conseguia terminar ou entender. Tentava voltar e começar do início…nunca as terminava. “Ela é real…” (apertava ainda mais, ouvia risos) - Quando finalmente teve forças e coragem pra se afastar da garota não conseguia se virar para olhar.

 

As luzes voltaram… Segundos depois seus amigos chegaram.

 

[Alguns dias depois]

 

– E então doutor…?

– Fizemos alguns exames, ele estava limpo com exceção de algumas cervejas. Não fazia uso de nenhuma medicação e segundo vocês… Não estava sob nenhum tipo de stress, sem problemas financeiros, nenhum problema familiar, sem histórico de problemas mentais na família, nada que justifique…

– O QUE ELE TÊM???

– Não podemos afirmar com certeza, porque ele quase não fala… Mas…O comportamento do paciente sugere stress pós-traumático.

Olhe… Ele está tomando dosagens altas de ansiolíticos e antipsicóticos. Precisamos observar por mais tempo para ver como ele reage às medicações ... - Os dois amigos se afastaram do médico que saiu meio desconcertado. Se sentaram num banco bem ao lado do quarto do amigo que enlouqueceu...

 

– Não dá pra falar o que foi.

– Não, eles não iam acreditar…

– Será que ele vai continuar assim pra sempre???

– “Apavorado" pra sempre? Não sei...

 

Continuaram em silêncio por algum tempo. Lá dentro o rapaz revivia constantemente aquele abraço apertado em seu corpo, assim como as risadas que pareciam estar lá junto a ele... Bem perto dele... E ele continuava na escadaria da pausada…Ele continuava naquela cidade… Em sua volta continuava sem luz... Para sempre.

 

 

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 26/09/2022
Código do texto: T7615007
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