O fantasma da paineira
O fantasma da paineira (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
A primavera chega rápido. As flores começam a soltar os perfumes e atraem abelhas, moscas, vespas, borboletas e até mesmo o beija-flor.
Dona Chiquinha, vulgarmente conhecida nas regiões da Fazenda da Boa Esperança, após o almoço, pega a cadeirinha de madeira, o livrinho de palavras cruzadas, a caneta na cor azul, da marca “Bic”, os fortes óculos de visão para perto e debaixo da árvore fica ali por um bom tempo.
Prende a atenção nas cruzadinhas. Deixa-se o tempo passar e se ouve o cântico dos pássaros que naquela árvore pousam. Os canários cantam à vontade. O tico-tico pia sossegadamente. A jacutinga pousa forte, com o ronco do cantar, desconcentra Dona Chiquinha, que a xinga quando lá descansa. Assim, a rolinha, o sabiá e outras espécies pousam. De repente, aparece a mangava rodeando a anciã, que imediatamente fecha o livrinho e, com este, tenta desesperadamente espantá-la. Dá trabalho, mas logo o bicho vai embora. Alguns mosquitos lá aparecerem, porém, ela ascende o cigarro de palhas. Tira algumas tragadas e solta a fumaça em direção deles, que aos poucos se retiram. Para um pouco para pensar na última palavra que falta para terminar a folha. Desta forma, o dia vai passando e ouve-se a voz de Marta, sua filha e cuidadora, vindo à direção dela chamando-a para o café. Ela fica brava porque não acabou, mas a filha, muito delicada e inteligente, aponta com o dedo e assim marca a palavra faltante. De braços dados, Dona Chiquinha e a filha seguem rumo à casa. Quando estão a uma certa distância, a vetusta olha em direção à árvore e diz à filha que quando morrer permanecerá ali por muito tempo fazendo as palavrinhas cruzadas.
O tempo foi passando e a rotina era a mesma. Somente ela não ia quando estava chovendo. Mesmo em tempos de frio, com ventos e outros fenômenos típicos da estação, ela, enrolada em roupas quentes, permanecia ali. Gostava de fazer, porque foi professora e lia muito. Explorava a literatura e o escritor favorito era Aloísio de Azevedo.
Em uma tarde, ela saiu para cumprir o mesmo destino. Estava meio abatida e tristonha. Não terminou de fazer todas as palavrinhas. Fez pouco mais de cinco. Ficou em silencio e quis sentar-se na pequena relva que cobria o tronco da paineira. Lá, dando o forte gemido, entregou a vida a Deus. Rapidamente a filha chegou, mas não a achou com vida. Tudo ficou triste.
O lugar já não era o mesmo. Em homenagem à sogra, o dono da propriedade ergueu a pequena cruz de madeira, com o nome dela. O artesão que fez o serviço conseguiu esculpir a pequena página onde se viam as palavrinhas cruzadas, seu desejo e carinho. Ali ficou triste e as pessoas que transitavam naquele lugar, em respeito, tiravam o chapéu ou algo que estivesse sobre a cabeça em homenagem a Dona Chiquinha, pessoa honrada, educada, educadora e muito feliz. Até mesmo os pássaros já não pousavam muito ali. Quando pousavam, pouco se ouviam os cânticos. Vespas, borboletas, mosquitos e outros mais dificilmente ali passavam. O lugar ficou triste e até mesmo a árvore sentia falta da macróbia que alegrava as tardes de primavera, de verão, de outono e até mesmo de inverno.
Os dias passaram. Até mesmo os meses e anos. Na velha árvore de paineira a tristeza era uma só. Com a morte repentina da filha de Dona Chiquinha, o marido resolveu ir definitivamente para cidade, mudando de hábito e alugando a fazenda a outro proprietário da região, que passou a criar gado solteiro para corte.
A relva cresceu mais. Arbustos aproveitaram a oportunidade e se expandiram ao longo das proximidades da paineira. A cruz posta em homenagem a Dona Chiquinha ficou entre os arbustos e compôs a paisagem triste e abandonada.
João Vítor, aposentado, nas noites de lua cheia tinha o hábito de caçar tatus nos campos. Em certa noite resolveu fazer o passeio naquelas imediações. Nem mesmo lembrava de que Dona Chiquinha ficava por muito tempo ali fazendo suas palavras cruzadas. Ao aproximar da velha paineira, viu sua caça e logo lançou a arma branca sobre ela. Ele dificilmente errava o alvo, mas naquela noite, errou. A lança caiu em solo perto da velha cruz. Ele, sem saber de que Dona Chiquinha faleceu naquele lugar, ouviu fortes gemidos com sentimentos de dor. Ouviu vozes de “ai, ai, ai”. Imediatamente apareceu o forte clarão, em luzes nas cores brancas e amarelas. Ele viu Dona Chiquinha deitada, de braços abertos, segurando o livrinho de cruzadinhas na mão esquerda e na mão direita a caneta azul. Na altura do peito, nas imediações do coração, sangue jorrava como se fosse a grande bica de água. Desesperado, saiu correndo e chegou em casa. Não quis ver luz quando chegou. Ficou traumatizado e não mais quis caçar.
Ao amanhecer, a esposa do caçador comentou com a moça da padaria e rapidamente a notícia se espalhou. Em algumas noites de lua cheia, o fantasma de Dona Chiquinha aparece naquele lugar, deitada na relva, de braços abertos, segurando o livrinho de palavra cruzadas, a caneta azul e o peito jorrando sangue.