1954 - A Velha da Lua

O centro de São Paulo está esplendoroso.

Saturno anda pelas ruas da cidade vestindo camisa preta, calça de linho e sapato novos.

Espera assim poder entrar no cine Marrocos na Rua conselheiro Crispiniano, numero 344.

Na Rua Libero Badaró próxima à Igreja da Sé, que ainda está sendo arrumada para os festejos do IV Centenário da cidade de São Paulo um bando de rapazes em vespas o cercam.

- Aonde você pensa que vai japonês? – grita um.

- É isso aí “japa”! Tem que voltar pro Japão! – avisa outro.

Alguns séculos sem tomar sol deixaram à pele do vampiro muito pálida e isso somado ao fato de ter os olhos levemente puxados confunde qualquer um.

O imortal fica muito irritado com a comparação, afinal ele é um índio e não japonês.

Chuta a roda da vespa mais próxima e o jovem cai no chão.

A gangue saca seus canivetes.

- Aí turma! O “Japa” quer lutar karatê!

Todos descem dos veículos.

Estão em seis. Não são nada.

Saturno pode estripar todos, mas está sem fome.

E também a última sessão vai começar em vinte minutos.

Um rapaz avança sobre ele.

O índio puxa o pulso do rapaz aplicando-lhe um forte soco na boca.

Alguns dentes saltam e a visão do sangue excita seus sentidos.

Tem que se controlar muito para não matar a todos.

O resultado de sua diversão: um pulso fraturado, seis dentes arrancados, cortes e escoriações.

Corre para não perder o filme.

- Lotação esgotada... Ahãm, “cavalheiro”! – avisa o bilheteiro em tom jocoso.

O primeiro impulso de Saturno é quebrar tudo, mas ele se contém.

Finge que vai embora e volta saltando a bilheteria em grande velocidade.

Passa duas horas, enlevado, assistindo “A Um Passo da Eternidade”, e quando o filme acaba sai misturado com a multidão elegante que o observa com ar de reprovação.

São onze e quarenta e cinco da noite e as ruas estão vazias.

Ele atravessa o local da briga de horas antes e encontra um dente no chão de paralelepípedos.

Ri com gosto continuando sua caminhada noite adentro.

Logo sente fome e vai para os becos escuros dos cortiços da Rua Oscar Freire.

Mesmo dependendo de sangue para sobreviver, seu código de ética o impede de matar gente honesta.

Prefere os entes nocivos a sociedade.

Acredita assim estar fazendo o bem.

Ouve um ruído de uma voz desesperada, algo parecido com um assalto.

Sorri.

Seus jantares normalmente começam dessa maneira.

Aproxima-se velozmente do beco escuro, quando um cheiro medonho o faz parar.

Têm ânsias de vômito e se apóia em uma parede de tijolos com muita tontura.

Um senhor de paletó abraça sua companhia com mais força, passando ao largo do vampiro que vomita intensamente.

O filho da noite ainda o escuta resmungar entre dentes enquanto se afastam:

- Maldito bêbado!

Pouco depois o cheiro diminui de intensidade e ele entra cautelosamente no beco mal iluminado.

A única testemunha do que acontecera ali é um único sapato em uma poça viscosa, recoberto por uma substância malcheirosa.

Saturno segue o rastro que sobe uma parede até o telhado de um comercio de secos e molhados.

Sente cheiro de chuva e logo perde a pista, varrida por um aguaceiro torrencial.

Semanas depois ele nem se importa com o ocorrido.

Persegue um rapazote que tem o péssimo hábito de esfolar garotas, quando sente novamente o cheiro.

Acre, medonho.

Respira com dificuldade apoiando-se na parede de uma casa.

Seus olhos vampíricos lacrimejam com o odor.

Um homem levemente bêbado passa ao seu lado cantando uma modinha.

Saturno o agarra pela gola.

- Está sentindo? Esse cheiro horrível?

O homem lhe empurra violentamente.

- Che odore che cosa? Japonese di merda! Goccia mia camicia!

O italiano se afasta gesticulando e xingando em sua língua natal e o imortal fica caído no chão por alguns minutos.

Quando o fétido cheiro abranda, ele consegue se levantar.

- “Hoje não vou perder este rastro!” – pensa com determinação.

Sobe e desce residências, atravessa a praça Professor Américo de Moura e alguns terrenos do bairro Cidade Jardim.

O que quer que esteja seguindo, é bem rápido.

Logo chega a um campo de futebol de terra, cercado de mato por todo o lado.

Uma velinha com um xale rosa o espera no centro do campo.

O vampiro vai à direção dela.

Na medida em que ele avança o cheiro vai piorando.

- Minha senhora, por um acaso a senhora não viu passar por aqui... – nesse momento ele sente o fedor emanando da velha – Ô inferno! É você!

O imortal para derrepente.

- Porque me segue rapazinho? Não sabe que é perigoso andar a noite?

Da boca da senhora começa a verter uma quantidade impressionante daquele líquido amarelo e viscoso.

Os olhos da velha ficam completamente brancos e ela avança sobre o índio.

Sua boca se escancara de uma maneira impressionante.

Paralisado pelo cheiro acre, o imortal não oferece resistência.

Ela o abocanha pela cabeça e logo o corpo de Saturno vai deslizando para dentro da idosa.

Parece uma jibóia devorando um bezerro, após lhe partir todos os ossos.

Em menos de um minuto o vampiro está em um lugar quente e úmido.

O estômago da senhora.

Força-se a reagir e mesmo entorpecido como está, pega seu punhal.

Balançando dentro do corpo daquela criatura, crava a arma na parte em que sente a carne mais mole.

Ouve o berro dela quando abre seu corpo de baixo para cima.

Busca o ar da noite com sofreguidão, escorrendo entre um mar de tripas.

Cai no chão junto a mais três corpos semi-digeridos.

- Seu maldito! O que é você? – guincha a velha.

- Vam... Vampiro!

Saturno perde os sentidos.

Acorda duas noites depois se sentindo péssimo.

Fundira-se a terra instintivamente, pois está totalmente recoberto em uma cova cavada com as suas próprias garras.

Faminto.

Mata duas pacas que bebem na beira do lago do parque Alfredo Volpi e volta ao local onde se enterrou.

Após se saciar fareja os rastros da criatura e os segue mata adentro.

Logo descobre que o rio Pinheiros apagara os sinais da passagem da velha.

Grita furiosamente na escuridão.

Caminha de volta pela floresta atravessa a cidade.

Quando chega ao centro de São Paulo encontra a mesma gangue que espancara noites antes.

- E aí Japa? Cê sabe lutar Karatê né?

Ele desce da vespa sacando um revólver calibre 22.

- Vai encarar agora?

Todos os rapazes desmontam, cercando o índio ameaçadoramente.

Ele os olha com desdém. E vira as costas se afastando.

- Ora... Vai te catar! – resmunga.

A gangue ri com gosto.

O líder fica furioso e atira.

A bala atravessa a cabeça de Saturno saindo pelo olho direito.

Ele se vira lentamente em direção ao chefe da gangue.

Seu único olho inteiro brilha avermelhado.

- Você não fez isso. – grunhe perigosamente.

Avança sobre o rapaz armado e segurando a cabeça dele com uma mão esmigalha o pescoço com um estalo seco.

O jovem desaba sem vida.

Furioso, o imortal se volta para os outros.

- Quem é o próximo?

Ao escutarem o grito, todos os integrantes da gangue saem correndo aos tropeções, com as calças ensopadas de urina.

Poderia caçá-los um a um, mas não tem tempo e nem disposição para tanto.

- “Preciso descobrir que tipo de criatura é esta e o modo de destruí-la!” – pensa.

Visita um velho bruxo que mora nos extremos de Mogi-das-Cruzes.

Seu nome é Tião.

Um preto velho de pés descalços e face bexiguenta.

O povo das redondezas diz que ele é um louco, mas Saturno sabe que ele tem uma profunda e misteriosa ligação com a natureza.

O imortal entra na choupana de pau-a-pique silenciosamente.

O idoso fuma um cigarro de palha fedorento, sentado em frente a um rústico fogão a lenha.

- Saí daí minino morto. Voismecê num me ´ssusta não! – diz o velho sem se virar.

Saturno se espanta. Achava que não havia feito ruído algum.

- Como sabia que eu estava aqui?

- U mato mi contô. Sei pruque voismecê tá aqui! É pur causa da minina da Lua! Cêis num si dão!

Mesmo admirando a sagacidade do velho, o filho da noite não pôde deixar de notar que ele está errado.

- Ela não é da “Lua” e é uma velha!

O bruxo cofia a barba rala.

- Ieu falei qui ela é da lua pruquê só anda di noiti como ocê. Mais é uma minina e logo voismecê vai vê! Ela já tá ti procurano...

O índio fica pensativo por alguns instantes.

- Como a destruo?

O velho ri, mostrando bem a boca banguela.

- Distrói não. A única fraqueza da minina é a cria dela. Eaí, só cum sal!

Saturno fica confuso.

- Sal? Como assim?

- Sal! Qui nem matá lesma. Sabi lesma?

O filho da noite abana as mãos violentamente.

- Não! Você confundiu tudo! Que menina? Lesma? Você é louco mesmo!

Pronto para ir embora o vampiro se levanta.

Sem tentar impedi-lo, o preto velho apenas sentencia:

- Antis da lua mudá cêis vão se incontrá. I aí é ocê o ela!

O indígena dá de ombros.

- “Velho doido... Vir aqui foi pura perda de tempo!” – pensa ele correndo entre o matagal.

Caminha boa parte da noite e ainda consegue pegar o último bonde para a Lapa.

O cobrador olha com desgosto seus pés sujos de lama.

Saturno paga e se senta em um dos últimos bancos traseiros.

Os minutos vão embora rapidamente e logo uma voz feminina pede:

- Posso me sentar?

Fazendo um gesto de assentimento, o imortal logo volta a mergulhar em seus pensamentos.

Todo homem, vampiro ou não, demora um pouco para notar que está sendo observado.

Um tanto inibido pela insistência, Saturno encara a moça.

Albina, ela é dona de uma beleza rara. Traços exóticos que não tem similar em povo algum da humanidade.

Hipnotizado por sua beleza, o filho da noite mal percebe suas palavras.

Observa os pequenos dentes afiados na boca da moça.

Ela repete a pergunta e é com dificuldade que ele se concentra:

- Por que atacou minha cria?

- Hã?

Ele está perplexo.

Em um segundo os olhos dela brilham intensamente.

O golpe é violento.

Devastador.

A traseira do bonde explode, matando todos os ocupantes da última viagem.

O vampiro está caído na rua de paralelepípedos. Ofegante.

Flutuando alguns centímetros acima do solo a linda criatura se aproxima.

- Minha cria é minha vida. Feri-la é me ferir.

- Vo-Você é a... Menina da Lua!

Ela fica surpresa por um momento.

- Como sabe que sou uma serva de Selene?

Os olhos dela se enchem de uma fúria luminosa e Saturno percebe que outra explosão está a caminho.

Mesmo ferido, ele se move mais rápido do que a visão pode captar.

O brilho prateado de seu punhal alemão do século XV executa um círculo perfeito no ar.

Algumas pessoas que vieram atraídas pelo barulho se horrorizam com a cabeça albina que rola pelo chão.

- Acabou. – arfa o índio.

O corpo decapitado convulsiona de pé e um jorro de sangue prateado quase transparente se cristaliza no ar.

Algo inacreditável acontece:

Outra cabeça se forma do sangue que sai da ferida aos borbotões.

Ossos, tecidos, pele...

Em segundos ela volta a brilhar os olhos.

- Por esta afronta morrerá!

Sem pestanejar, o filho-da-noite corre e a explosão destrói um quilômetro quadrado, matando tudo, inclusive os espectadores inocentes.

- “Merda, merda, merda!”

Nunca em quase quinhentos anos de existência, Saturno havia se deparado com tal sorte de inimigo.

Poderoso, invulnerável e tenaz.

Por algumas semanas ele se esconde de cemitério em cemitério curando o corpo queimado e tramando uma maneira de destruir a menina da lua.

Caminhando pela cidade às escuras por duas vezes ele vislumbra sua inimiga.

De alguma maneira ela pode localizá-lo e isso a torna mais perigosa ainda.

Após uma semana de preparativos o ser noturno resolve se afastar de seu ninho indo em direção ao litoral.

Ao chegar na estação de Paranapiacaba, sente aquele fedor horroroso.

Sai do trem após todos os outros passageiros, pois não quer a morte de inocentes.

A velhinha está em um dos extremos da estação e a moça albina o espera do outro lado.

As duas se aproximam lentamente, fechando o cerco.

O vampiro está encrencado

Cheio de náuseas, o imortal dá um passo atrás.

O trem começa a se movimentar.

Prendendo a respiração o máximo possível, o índio desenrola uma corda fina e resistente que roubou em um armazém algumas noites antes.

Com o laço pronto joga sobre a velha com extrema precisão.

O trem a diesel começa a pegar velocidade e Saturno se agarra ao último vagão.

No momento em que começa a ser arrastada a criatura guincha alto.

A menina da lua desesperada tenta se agarrar a locomotiva.

Ela segura na alça do último vagão e seus olhos sem cor brilham intensamente.

- Ah, não! Nada disso!

O punhal faísca no ar.

Um jorro de sangue prateado e as duas mãos da criatura ficam presas na alça do trem e ela fica para trás urrando deseperadamente.

A velha bate contra os dormentes dos trilhos deixando uma gosma e pedaços do corpo pelo caminho.

O imortal relaxa.

Seu plano está dando certo até o momento.

Vinte minutos depois, no porto de Santos, enquanto os estivadores carregam os navios, um rapaz de roupas imundas arrasta na ponta de uma corda uma velha aos pedaços.

Do tronco para baixo a Senhora é um feixe de ossos e órgãos dependurados.

Ao ver a cena medonha, os estivadores se põem a correr apavorados.

Na beira do cais o imortal gira a corda cada vez mais rápido.

A idosa grita roufenhamente.

Seu corpo começa a refazer-se pouco a pouco.

- Não! – implora uma melodiosa voz feminina.

Ele já esperava por ela.

Olha uma última vez para a menina da lua que flutua a alguns centímetros do solo.

- Não a destrua! O alimento de minha cria é o que me mantém em seu mundo! Fui amaldiçoada por Júpiter a quatro mil anos e preciso dela para sobreviver! Não a destrua e serei sua serva!

Ainda girando a criatura medonha, Saturno atira a outra ponta da corda para a belíssima moça.

Um pouco triste pelo olhar agradecido da jovem o rapaz de cabelos negros solta a monstra ferida.

Ela voa em direção ao mar gritando longamente.

Agarrada a corda, a menina da lua vai junto.

- Nãããããooooo!!!

Quinhentos metros, oceano adentro a idosa mergulha.

Mal ela entra em contato com a água salgada e começa a se desfazer-se aos poucos.

O índio enxerga de longe com sua visão vampírica privilegiada.

- “Como uma lesma. Realmente...” – pensa com certa amargura.

Qual não é seu espanto quando a moça volta do mar, flutuando a toda velocidade sobre água salgada.

- Ah, não!

O rosto dela é uma máscara transformada pela fúria.

Levantando com algum esforço uma caixa de madeira com três toneladas de café, o ser da escuridão a atira contra a moça.

Atingida em pleno vôo, ela mergulha no mar, junto com três mil quilos do ouro negro brasileiro.

- Ufa!

O imenso caixote explode e a menina da lua sai de dentro do oceano.

Seria impressão do vampiro ou ela agora voa a dois metros da água salgada?

- Eu sou invulnerável estúpido! Deveria ter aceitado a oferta de Himnerclesta!

Os olhos da grega brilham intensamente e a explosão se dá a três metros do indígena.

A onda de choque varre o cais, jogando-o contra o carregamento de café.

Um rombo se abre no casco do navio que começa a afundar.

A jovem voa a seis metros agora e sobe pouco a pouco.

- Não! A maldição! Por quê? Porque não aceitou minha oferta, ser da noite?

A última frase foi gritada em grego clássico, mas Saturno a compreendeu perfeitamente.

- Não pode existir dois na noite... – murmura.

Horas depois ele está em São Paulo. Sua Cidade. Seu ninho.

Desalinhado e imundo, depara-se com um rocker montado em uma vespa.

- Te pegaram hein japa?

Os olhos do vampiro se tingem de vermelho intenso e ele agarra o cara pela gola da camisa.

Refreando a vontade de matá-lo, nota que o carinha tem a mesma altura e tipo físico que ele.

Acerta uma cabeçada que faz o assustado rocker desmaiar na hora.

Troca de roupas com o rapaz, ajeita o cabelo armando o topete e rouba a moto dando umas voltas pela cidade silenciosa.

São Paulo. Sua cidade. Seu ninho. Seu lar.

Pensa em Himnerclesta, a menina da lua.

Teria ela morrido ao abandonar o planeta? Teria chegado ao nosso satélite natural?

Saturno nunca saberá, mas atravessando o espaço sideral a lindíssima jovem avança.

Imortal, ela queima e congela ao mesmo tempo.

O lado de seu corpo albino tocado pela luz de incontáveis sóis e estrelas se inflama a 373° e o lado que fica sob a sombra congela a - 273°.

Imortal.

Ela já implorou o perdão de Júpiter milhares de centenas de vezes.

E talvez ele o conceda quando Himnerclesta chegar ao seu destino, após percorrer um caminho quase tão longo como sua imortalidade.

Uma trilha que atravessa todos os universos e dimensões existentes, sem possibilidade de retorno.

Fim.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 01/12/2007
Código do texto: T759962
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