O dilema de Utterson
O DILEMA DE UTTERSON
Miguel Carqueija
Quando terminou de ler os dois relatos — o do amigo Dr. Lanyon e o do Dr. Henry Jekyll — o advogado Utterson estava suando frio, tomado de um pavor que nunca antes sentira em sua vida.
Jamais poderia ter imaginado a verdade: que o misterioso Edward Hyde era o mesmíssimo Dr. Jekyll, num desdobramento de personalidades que incluía a mudança da aparência corporal. Portanto, se Hyde morreu, Jekyll também estava morto e o seu corpo jamais seria encontrado, pois o que restava era o corpo de Hyde.
Mas como podia ser isso? E os átomos, ou as células, a mais ou a menos?
As dificuldades científicas para acreditar naquilo tudo esbarravam, é claro, na lógica dos dois relatos, que desvendavam o mistério da relação Jekyll-Hyde. Porém, tudo isso ia para segundo plano diante do fator que se lhe afigurava mais grave daquele imbróglio. Ao se retirar, pelas dez da noite, da residência do Dr. Jekyll, o advogado prometera ao mordomo Poole que retornaria pela meia-noite, para então chamarem a polícia. Afinal, o dono da casa achava-se desaparecido e havia o cadáver de um suicida no laboratório.
O problema era justamente esse.
Em primeiro lugar a polícia é racionalista demais para acreditar que um ser humano se transforme em outra pessoa. Isso é coisa de contos de fadas, não da vida real. Por consequência os dois relatos não seriam aceitos mesmo se mostrados e examinados. Nenhum tribunal tampouco iria aceitar que Jekyll se transformasse em Hyde e vice-versa. Acreditar em coisas fantásticas é tabu.
Nem a imprensa daria crédito.
Assim, Utterson só conseguia enxergar um resultado para aquela tragédia: ele e Poole seriam responsabilizados criminalmente pelo desaparecimento e possível morte do Dr. Henry Jekyll. E poderiam ambos acabar no patíbulo.
Não adiantava fugir. O pesadelo estava apenas começando e só lhe restava erguer-se e retornar à residência de seu falecido amigo.
Cobrindo o rosto com as mãos, em desespero de causa, Utterson murmurou:
— O que eu faço agora, meu Deus?
Rio de Janeiro, 11 a 19 de agosto de 2022.
NOTA: Reli recentemente “O médico e o monstro”, ou, na tradução do original, “O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson. E uma coisa que me intriga é a maneira inconclusa com que o romance termina, apenas com as transcrições dos dois documentos — do Dr. Lanyon e do Dr. Jekyll — esclarecendo o mistério. Fica em suspenso, portanto, a atitude posterior do Dr. Utterson, pois caberia a ele informar à polícia do suicídio do Sr. Hyde e desaparecimento do Dr. Jekyll. Mas aqui ocorre um terrível impasse, omitido por Stevenson e que eu me limito a mostrar sem buscar uma solução. Como explicar à polícia algo que a polícia não iria aceitar, mesmo com provas?
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