O garoto que Tuane teve o desprazer de conhecer - CLTS 20
Temas: Paixão platônica e…
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Foi durante um jogo de vôlei de praia que tive o desprazer de conhecer o garoto que seria o meu amor platônico de verão.
Ele se destacava entre os outros jogadores por causa da altura. Era um pouco mais baixo que os outros, talvez por isso ele tivesse o apelido de Nanico. Era o apelido que estava escrito atrás da camisa de time dele. Nos dias seguintes voltei à praia para o ver jogar novamente e meu interesse só aumentava.
Após um dos jogos, tomei coragem, tentei me aproximar dele e puxar assunto, mas fui recebida com frieza e ele praticamente me expulsou de perto dele. Mas não iria desistir. Sabia que podia tentar mais algumas vezes. Devia ter desistido nesse momento.
Fui até o banheiro da praia e me olhei no espelho, tentando entender o que tinha de errado comigo para ele mal ter olhado para mim. Comecei a pensar que não estava bonita o suficiente ou talvez o problema fosse a altura. Ele parecia ter dezesseis anos assim como eu e talvez o fato dele ver uma garota de idade igual mais alta que ele tenha motivado a frieza. Cheguei a conclusão que era isso e que podia consertar e tentar novamente.
Se eu quisesse poderia literalmente virar outra pessoa. Tinha a habilidade de virar outras pessoas, alterar cabelo, altura, idade entre outras coisas. Até mesmo a aparência das minhas roupas podia mudar, pois podia alterar a aparência de qualquer coisa que entrasse em contato com o meu corpo. Foi por causa dessa habilidade diferente que minha mãe tinha se mudado comigo para uma cidade pequena. Tinha prometido para ela que sempre tentaria ser eu mesma, mas naquele momento o desejo de impressionar o Nanico me fez esquecer a promessa. Isso e o fato de já ter usado minhas habilidades outras vezes sem chamar a atenção de ninguém.
Ainda me encarando no espelho fiz o meu cabelo ficar mais longo e minha altura menor, minha pele ficou mais bronzeada. Quando sai do banheiro era outra pessoa. A praia estava tão cheia que ninguém reparava em quem entrava ou saía do banheiro.
Muito mais confiante me aproximei do Nanico e pensei: "Agora vai". Não foi.
A segunda aproximação foi pior que a primeira. Mas não foram piores do que a terceira e quarta tentativas. Fui muito insistente porque queria entender o que tinha de errado comigo e porque não importava se eu fosse loira, ruiva ou morena, o resultado era sempre o mesmo: frieza.
Quando mais ele me afastava, ou melhor afastava minhas outras versões, mas eu o idealizava na minha mente. Queria voltar à vida que tinha antes de o conhecer, queria passar mais tempo com minhas amigas, queria simplesmente o esquecer, mas não conseguia. E o fato de não saber o porquê dele me afastar tornava tudo pior. Se tornou um tipo de obsessão entender o que estava por trás disso. Tinha me prendido a ele com algemas invisíveis.
Minha mãe parecia ter notado que tinha algo de errado comigo, pois perguntou um dia, antes de minha ida para a praia:
-Porque você está indo tanto para a praia?
Acabei confessando para ela que estava gostando de alguém, mas preferi esconder a parte em que usava a minha habilidade para virar outras pessoas.
-E esse menino tem nome?- me perguntou enquanto arrumava os equipamentos de fotografia dela. Ela era fotógrafa. Tinha o costume de trabalhar em festinhas das escolas da cidade.
-Não sei o nome dele. Só sei o apelido que tá na camisa dele: Nanico.
Minha mãe me olhou por um momento e foi como se o tempo parasse. Depois ela começou a rir do nada. Naquele momento não entendi o porquê das risadas. Agora que sei o motivo, lembrar do som das risadas dela me causa calafrios.
-Acho que conheço a peça. Ele se mudou recentemente para morar com o tio delegado que sempre o chama por esse apelido também. Os dois se dão muito bem principalmente por terem interesses parecidos.
-Porque a senhora riu?
-Por nada, Tuane. Só acho que devia procurar outro interesse romântico. Você não faz o tipo dele.
Durante todo o caminho para a praia ficava me perguntando o que minha mãe quis dizer com aquilo. A curiosidade foi tanta que depois de poucas horas voltei para casa, porém quando abri a porta notei que minha mãe tinha saído. Pensei que talvez ela tivesse ido fotografar algo em algum lugar.
Enquanto via a casa vazia lembrei do que a minha mãe tinha dito, de que o Nanico era sobrinho do delegado. Até aquele momento nunca tinha me passado pela cabeça procurar saber onde ele morava ou outras informações dele. Porque era como se ele existisse em uma dimensão idealizada em que existiam somente nós dois e a praia, sendo que as únicas aproximações tinham que ser nesse ambiente. Admito que durante esse tempo eu estava meio desequilibrada por causa dessa paixão platônico, mas não demoraria muito para descobrir que na cidade tinham pessoas muito mais desequilibradas do que eu.
Resolvi ir até a casa do tio dele, para descobrir porque ele não se interessava por mim. Planejava entrar na casa para saber mais sobre ele. Sabia que era uma coisa meio invasiva, mas estava obstinada a ir até o fim, sem saber que essa ida a casa do tio dele iria estilhaçar todo o meu mundo.
A casa do delegado era muito afastada das outras, ficava depois de uma pequena estrada. Estava com preguiça de andar então virei um passarinho para chegar mais rápido, como fazia as vezes quando estava muito atrasada para a escola e não tinha ninguém por perto.
Ainda em forma de passarinho entrei por uma janela que estava aberta. Invadi mesmo. Logo que entrei senti que tinha algo de errado. A casa estava a princípio silenciosa, mesmo que do lado de fora alguns carros estivessem estacionados. Os únicos sons vinham de uma sala mais afastada, como se todos na casa estivessem lá. Voando fui para lá e parecia que quanto mais me aproximava mais os sons ficavam altos. Parecia ser uma reunião.Eles estavam tão distraídos que nem notaram o passarinho entrando no local. Mesmo assim, fiquei em um lugar que não me vissem.
Parecia uma reunião normal à distância. Só parecia. Porque logo ao entrar confirmei minha suspeita que tinha algo de errado. Nanico estava lá, junto com o tio e também outros dois homens que não conhecia. Eles tomavam refrigerante enquanto assistiam a um filme infantil protagonizado por crianças. Era um filme comum que deviam ter locado na locadora, mas a forma como eles olhavam para os atores infantis na tela da televisão era doentia. Era como se desejassem aquelas crianças. Naquele momento entendi porque Nanico nunca se interessou por mim ou por qualquer outra versão minha.
-Achei essa chupeta na praia.Alguma criança deve ter deixado cair. - disse Nanico mostrando uma chupeta para os amigos e o tio.
Um dos homens tentou pegar a chupeta da mão dele de brincadeira, mas isso fez Nanico agir de forma violenta demais para a situação. O empurrão que ele deu no outro parecia passar a mensagem que ele não queria dividir seu novo brinquedo. Um pouco depois do empurrão Nanico colocou a chupeta na boca e ficou com ela por um tempo, quando a tirou comentou:
- Ainda tem o gostinho da boquinha da criança.
Isso arrancou risadas dos outros, mesmo do que foi empurrado. Tudo isso quase me fez cair de vez no chão. Estava com enjoos, mesmo na forma de passarinho.Ver quem realmente era o meu amor platônico me atingiu em cheio. A lembrança das vezes em que tentei me aproximar dele ou que ficava o admirando de longe pioravam a sensação. Como se fosse em um filme do qual não faço parte, acompanhei o tio de Nanico se levantar e ir até a porta da frente onde alguém parecia bater. Os outros continuaram falando.
Nada do que acontecia parecia realmente chegar até mim. Me sentia no fundo do poço. Mas quando a porta abriu descobri que o fundo do poço sempre tem mais um degrau.
Senti congelar no ar ao ver a minha mãe entrar pela porta junto com o tio de Nanico. Ela carregava um envelope na mão. Não queria acreditar no que estava vendo. Antes mesmo dela abrir o envelope já suspeitava o que tinha dentro. Eram fotos das crianças que ela batia nas escolas.
Pelo que entendi minha mãe batia as fotos, revelava uma parte delas e dava para a escola como o combinado e a outra parte vendia para aquele grupo de pessoas doentes. Os pais das crianças ficavam felizes ao receberem as fotos do final do ano letivo dos filhos sem saber que haviam outras fotografias nas mãos daquelas pessoas doentes.
Aquilo foi demais para mim. Senti que perdia altura até que o chão se projetou de vez a minha frente. O choque foi tanto que sem que eu controlasse mudei da forma de pássaro para a forma humana enquanto ainda estava no ar.
-Tuane!- ouvi a voz chocada da minha mãe gritando o meu nome. Um silêncio se formou no local.
O mundo parecia girar. Para o meu alívio continuava com a mesma roupa que estava antes de virar passarinho. Detestaria que a transformação tivesse sido tão abrupta que as roupas tivessem se perdido no meio do caminho.
-Tuane, o que faz aqui?- minha mãe perguntou gaguejando ainda sem entender nada. Aproveitei que ela ainda estava em choque e me levantei de vez do chão. Antes que ele reagisse, puxei o envelope das mãos dela e rasguei as fotos. Não ia deixar aquelas pessoas colocarem as mãos naquelas fotos.
Conforme os pedaços das fotos iam caindo no chão notei que o choque ia dando lugar a raiva. Tinha destruído algo que era muito precioso para aqueles doentes. O tempo pareceu parar por um momento. Até que de repente senti minha bochecha arder com um forte tapa que levei no rosto.
-Eu sinto muito. Perdi a cabeça. - disse minha mãe após me dar o tapa - Mas você foi longe demais.
-Eu fui longe demais?! - disse indignada com tudo.
-Se acalme, Tuane. Podemos explicar tudo.
-Vou chamar a polícia!-gritei no calor do momento.
-Já estou aqui. - disse o delegado rindo e isso pareceu quebrar o clima de choque e raiva que estava no ambiente.
-A Tuane virou de passarinho para garota. Ela poderia virar uma criança?- Nanico perguntou atraindo a atenção de todos para si. Aparentemente ele era o mais doente de todos, por ter uma ideia dessas.
Durante semanas fiz de tudo para que ele olhasse para mim, mas naquele momento não suportava a forma como ele me olhava. A expectativa silenciosa dele me dava arrepios. Ele olhava para mim e imaginava a criança que eu poderia virar.
-Pago o triplo do que pagaria pelas fotos se a sua filha virasse uma garotinha. - disse o delegado se levantando e puxando um bolo de dinheiro do bolso. Os outros ficaram animados também porque viram que podiam ter mais do que as fotos. Naquele momento minha mente pensava somente em como fugir daquela situação.
-Ela é minha filha. - minha mãe começou dizendo. Me permitir ter esperança por um momento. Lembrei de como ela parecia gostar de mim e tinha se mudado para aquela cidade para me manter segura ao saber das minhas habilidades. Mas ao mesmo tempo lembrei que ela tinha um lado que eu não conhecia e de como ela tinha rido ao fazer menção ao segredo do Nanico.
Naquele momento percebi que não sabia quem ela realmente era, mas mesmo assim me permiti ter esperanças. Esse sentimento morreu quando ela disse:
-Por ela ser minha filha quero quatro vezes mais.
-Mãe..
-Podemos ganhar muito dinheiro, Tuane. Eles não vão tocar em você. Vão só olhar.- disse ela olhando para mim como se tivesse achado uma mina de ouro que sempre esteve no quintal da sua casa.
As paredes da casa pareciam se fechar ao meu redor. Devido ao meu estado emocional não conseguia virar pássaro ou qualquer outra coisa que fosse. Foi muito doloroso descobrir a verdade sobre a minha mãe e sobre o meu antigo amor platônico na mesma noite. Foram dois baques fortes em sequência.
Sentia que ia desmaiar a qualquer momento, mas não queria desmaiar naquele ambiente cheio de gente desequilibrada. Me segurei na parede.
-A Tuane precisa de um tempinho para melhorar . - minha mãe disse enquanto com uma voz doce tentava me acalmar enquanto falava sobre o dinheiro que poderíamos ganhar. Ela teve a coragem de dizer que essa era a chance que eu tinha de atrair a atenção do Nanico para mim.
As palavras dela não pareciam chegar realmente até mim. Somente queria ir embora daquele lugar, mas sentia que a única forma de fazer isso era fazer o que eles queriam. Mas eu não queria fazer o que eles queriam.
Enquanto estava lutando com os meus pensamentos notei que Nanico tinha saído do local. Ele voltou um pouco depois da cozinha carrega uma bandeja e dizendo:
-Fiz um lanche para a gente comer enquanto a gente espera a Tuane melhorar.
Aqueles doentes pegaram um sanduíche cada e ficaram comendo e olhando em expectativa silenciosa para mim. Eram como pessoas que ficavam comendo pipoca no cinema, na expectativa pelo filme.
-Me esqueci do seu, pode ficar com o meu.- disse Nanico oferecendo o seu sanduíche para a minha mãe. Ela prontamente aceitou, talvez só para não contrariar o sobrinho de quem ia pagar ela.
O som da mastigação irritante deles foi a gota d'água que faltava para que eu cedesse. Apenas queria ir embora dali.
-Ok, vou virar uma criança. -disse me transformando em uma garotinha de uns doze anos. Modifiquei minhas roupas para que elas virassem uma blusa de manga comprida e uma calça ainda mais longa do que a que eu usava. Quanto menos de mim eles vissem melhor .
Eles me olharam com aquele olhar estranho.
-Não pode ser mais nova?- perguntou Nanico para o meu espanto. Naquele momento apenas conseguia me perguntar como tinha me apaixonado por essa coisa.
-Ela está ótima, mais que ótima. Posso tocar no cabelo dela?- perguntou o delegado se aproximando em expectativa. Era óbvio que ele não ia querer só olhar.
Recuei, mas nem precisava ter recuado, pois ele caiu no chão quando faltava apenas alguns passos para chegar até mim. Ele parecia zonzo. Olhei ao redor e notei que os outros dois amigos dele também pareciam estar passando mal, um deles arranhava a garganta de leve. Minha mãe também não parecia bem. O único que estava bem era Nanico. Naquele momento entendi.
-O que você fez?- perguntei recuando mais assustada que nunca. Quando achava que já tinha conhecido a pior versão dele, ele vinha e fazia algo pior.
-Eles só vão dormir um pouco e depois vão ficar bem…Talvez. - disse dando de ombros e rindo, meio que confirmando que tinha colocado alguma coisa nos sanduíches.
Depois de alguns minutos todos caíram, aparentemente desmaiados no chão. No silêncio que ficou conseguia ouvir o meu coração batendo acelerado.
-Parece que ficamos só nós dois. Nunca gostei de dividir. - disse Nanico me encarando e completando - E acho que você pode ficar um pouquinho mais nova que isso.
Naquele momento estava tentando com todas as forças me transformar em passarinho ou em qualquer outra coisa que me deixasse em vantagem, mas não conseguia. Quando vi que não tinha jeito, tentei correr para a porta o mais rápido que consegui. Nanico começou a correr atrás de mim. Ele parecia estar se divertindo com o meu desespero. Quando ele mandou a mão para agarrar no meu braço, consegui finalmente me transformar em passarinho e voei em direção da janela.
Sabia que tinha algo de errado com minhas habilidades e que podia voltar a ser humana a qualquer momento, mas tinha alguma esperança de que eu podia chegar pelo menos até metade da estrada. Esse sentimento caiu por terra quase na mesma velocidade que eu, porque nem bem saí da casa voltei a ser humana e cair com tudo no asfalto. Dessa vez me machuquei.
Sentia dor no meu braço direito e notei com horror que talvez ele estivesse quebrado e devido a isso não tinha como me transformar em passarinho de novo. Ia ter que literalmente ir correndo até encontrar alguém que me ajudasse naquela estrada. Mas ainda ia piorar, pois nem bem me recuperava da queda notei que Nanico se aproximava com uma lanterna. Esquecendo a dor me levantei e comecei a correr com todas as minhas forças.
Enquanto fugia pensava que daria tudo para que ele voltasse a me ignorar como naquela época em que eu o via jogar vôlei na praia. Mas diferente daquela ocasião, agora ele estava com a atenção totalmente focada em mim. Naquele momento pensei que o problema sempre esteve nele e não em mim.
Não demorou para notar que ele estava propositalmente me deixando ficar uns passos à frente dele, era como se fosse um tipo de jogo para ele e como se ele quisesse algum tipo de desafio.
-Gostei do pega -pega , crianças gostam de pega-pega, mas porque a gente não volta para casa e brinca de outra coisa no quarto?- ele disse me agarrando pelo ombro, sem nenhuma dificuldade. O que mostrou que era tudo um jogo para ele, porque sabia que não tinha como eu fugir dele.
Naquela estrada escura não via muita esperança e estava aceitando que não tinha como fugir. Mas de repente surgiu uma luz no final do túnel na forma de um farol que vinha a toda velocidade na nossa direção. Estávamos tão distraídos ou fugindo ou tentando pegar o outro que não notamos que estávamos literalmente no meio da estrada. Não deu outra, o carro bateu com tudo na gente. Foi um baque e tanto, mas em comparação com os outros baques da noite, foi o que menos doeu.
Após o atropelamento, fiquei em um estado meio dormindo e meio acordada. Depois de um tempo que não soube precisar ouvir uma voz ao longe, provavelmente de um socorrista:
-Acho muito difícil que o rapaz sobreviva a essa noite, ele pegou quase todo o impacto. A garota está bem menos grave que ele.
Não sabia o que sentir sobre aquela informação. Assim como não sabia como me sentir em relação a minha mãe. Apesar de ter sentido meu mundo se estilhaçar depois de descobrir sobre as fotos e depois dela literalmente ter tentado me vender, me peguei pensando se ela teria sobrevivido ao envenenamento e se o Nanico não estava brincando quando disse que ela poderia talvez acordar. Pensando nisso adormeci e acordei na ambulância.
Encarando o teto da ambulância que me levaria para algum hospital, tentava entender como o que tinha começado em uma praia como um amor de verão tinha se transformado em uma perseguição em uma estrada noturna e tinha terminado com um atropelamento. Ainda tentando entender, comecei a revisitar em minha memória a história que tinha começado no dia em que tive o desprazer de conhecer o garoto que seria o meu amor platônico de verão.
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