Obsessão - CLTS 20

Obsessão

Karen era uma mulher jovem, vestida de calça jeans e camiseta branca decotada, cabelos longos de um castanho claro. Olhos grandes da mesma cor, tez avermelhada cheia de sardas. Era um metro e sessenta, um pouco acima do peso, de uma figura que causava ternura imediata.

Ela estava trabalhando, usava fone com microfone, sentada de frente a seu computador batendo as unhas longas, de fibra, no balcão, como se sua vida dependesse disso. Vez ou outra algum colega aparecia por cima da divisória para reclamar do barulho constante. Ela se encolhia pedindo desculpas e voltava ao hábito quase que no mesmo instante.

- Até que fim! - Karen disse, depois que o relógio que ela encarava marcou seis da tarde em ponto.

Se levantou apressada, seus colegas de trabalho cochichavam e faziam graça observando sua presa a caminho do vestiário. Karen os ignorava. Cruzou a repartição com o olhar fixo à porta no final do corredor, cabeça erguida e expressão séria. Entrou no vestiário e correu até seu armário, meteu a mão em seu bolso e pegou as chaves. Percebeu a mão um pouco trêmula, enquanto segurava o cadeado e girava o segredo. Abriu a porta e não pode conter um riso ao avistar seu aparelho celular a encarando de seu canto, desolado.

As últimas duas semanas foram bem difíceis para ela, desde quando a empresa aderiu uma nova política interna de proibir celulares no setor de trabalho. Karen não entendia o porquê dessa política se aplicar a ela, já que sua habilidade de trabalhar ao mesmo tempo que varria suas redes sociais era reconhecida por grande parte da empresa. Em seis anos de serviço, nunca seu desempenho foi afetado pelo uso do celular e mesmo assim, por erro de colegas de trabalho, a nova política foi implantada e a vitimou.

Os trinta segundos até o aparelho se inicializar completamente lhe causava tremores no corpo e formigamento nas mãos. Enfim, um sorriso tirou a tensão de seu rosto, ao ouvir o som de uma enxurrada de notificações. Pode abrir seu aplicativo de mensagens e acabara de receber uma de sua amiga mais antiga do trabalho, que estava em outro setor:

"Ka, me espera na estação…

Tenho um babado fortíssimo!!!

Só vou me trocar rapidinho."

Karen ignorou a mensagem, foi para sua rede social favorita. Mais de uma centena de pessoas curtiram sua foto pela manhã, um auto-retrato fazendo careta na estação de trem, desejando 'Bom dia'. Começou a ler os comentários quando outras funcionárias abriram a porta do vestiário conversando entre si.

- Karen, você vai participar do café na sexta? - Uma delas se aproximou perguntando.

- Ah! Sim sim. - Karen fez um esforço para desligar a tela do aparelho e dar atenção a moça. - Vou trazer … pão de forma e …

- Vocês acreditam que atendi um cara hoje que ficou vinte minutos insistindo, querendo meu contato!? - Outra colega se aproximou juntando todas ao assunto.

- Trás dois pacotes de pão e já tá bom Karen…

- Tem cada sem noção né amiga?

- Eu vou trazer o patê… - Disse outra.

- Não ponhe cebola no patê por favor… - Mais uma entrou na conversa.

- Será que esse cara não foi o mesmo de ontem, que assediou a Rute?

- Não, menina a Rute foi o Cláudio, do T.I.

- O Cláudio? Mentira…

- Quem foi assediada ontem por cliente, foi eu.

As vozes iam se sobrepondo uma à outra e todas as conversas iam se desenvolvendo paralelamente, enquanto as mulheres se ajeitavam para sair. Karen ficou encolhida em meio a roda de conversa com um risinho no rosto, sacudindo a cabeça e olhando de um lado para o outro, seguindo as vozes. Até que seu aparelho vibrou e lhe deu o empurrão que faltava.

- Licença meninas, eu tenho que ir. - Karen disse timidamente trancando seu armário e depois passando por suas colegas se despedindo, ignorando as conversas e repetindo constantemente.

- Preciso ir… preciso ir.

Assim que atravessou a porta voltou toda sua atenção para o celular, colocou o fone de ouvido e foi pelo corredor, tomou o elevador, saiu pela porta do prédio. Caminhou pelas calçadas da capital paulista por quinze minutos, atravessando ruas, cruzando milhares de pessoas, tudo de forma automática. Chegou na estação de trem e se encaixou na multidão e só se deu por si quando estava na plataforma. Olhou de um lado para o outro, reconheceu um grupo de colegas no lugar de sempre, o 'melhor lugar para embarcar' que todo usuário regular de trem tem. Karen foi na direção oposta. Esses dias tem preferido viajar os cinquenta minutos sozinha. No seu aplicativo de mensagens sua amiga questionava onde ela estava, tinha alguma coisa importante para compartilhar, Karen inventou uma enxaqueca e um mal-estar para justificar sua pressa. O trem chegou, encheu muito mais do que era possível e saiu, as pessoas iam se asardinhando até às portas, outro trem partiu e a aglomeração a sua frente diminuiu. No terceiro trem ela foi levada para dentro naturalmente pela multidão. Pequena como era, bastou estar. Era impossível cair ou sequer se mover por vontade própria, típico do horário de pico de São Paulo.

No aplicativo de mensagens, Karen avisou sua mãe que entrou no trem enquanto interagia com seus seguidores e amigos. Diversas mensagens em vários aplicativos diferentes eram trocadas. Vídeos, imagens, comentários, polêmicas, fofocas, etc. Tudo era consumido avidamente, e cada tema gerava uma postagem dela com sua opinião. A viagem passou num piscar de olhos. Karen estava tão absorta que nem percebeu que fora paquerada a viagem toda por um rapaz a sua frente que se esforçou muito para chamar sua atenção. Flexionou os músculos, aproveitou alguns balanços do trem para esbarrar nela e se desculpar. Ganhou menos que uma olhadela e um aceno de cabeça em resposta a cada tentativa. Quando abriu espaço no vagão ele ainda a direcionou até onde tinha um apoio vertical livre. Mesmo assim, Karen só perdeu sua concentração quando ouviu o nome de sua estação sair pelo sistema de som do vagão.

Ali ela tinha que ser mais cautelosa, moradora da zona leste de São Paulo, antes do trem parar ela mandou mensagem para sua mãe avisando que estava chegando na estação, enrolou o fone no aparelho e meteu no bolso interno de sua bolsa. Se pôs atrás da aglomeração e pela primeira vez percebeu o olhar esperançoso do rapaz sobre ela, que retribuiu mas, era tarde demais. O trem parou e abriu as portas, já era noite. Ela seguiu a maioria do pessoal, primeiro para fora, depois pela plataforma até às escadas, através das catracas, pela passarela até a calçada da rua tomada de vendedores. Depois das barracas o povo seguia pela avenida bem iluminada, cheia de comércio aberto e gente. Karen só pensava em chegar em casa, deitar no sofá e ficar ali com seu aparelho até pegar no sono. Com esse pensamento, resolveu ir por dentro, um caminho dez minutos menor porém, um pouco mais solitário. Alguns passos depois dela perceber um pessoal circulando pela rua, entrando e saindo das casas aqui e ali, se sentiu segura para usar seu celular novamente, colocou os fones e continuou a caminhada, absorvida pelos aplicativos. As esquinas em seu caminho eram as únicas coisas que faziam seu olhar largar a tela do aparelho.

Cada quarteirão que passava estava mais deserto que o anterior, mais escuro. Chegou na metade do caminho. Um amigo que Karen nutria segundas intenções havia acabado de mandar mensagem, iniciando uma conversa boba que a deixou empolgada. Estava no quarteirão da escola, uma calçada bem ampla e poucas casas do outro lado da rua. A música que saía de seu fone a impediu de escutar o motor de uma moto com faróis apagados se aproximando por trás dela. Karen vinha perto da sarjeta, com a alça da bolsa sobre o ombro e as duas mãos no celular digitando animadamente.

- Perdeu! Perdeu! Perdeu! - Um homem disse montado na moto puxando a bolsa de seu ombro com violência

Karen tomou um susto enorme, quase caiu no chão com o puxão. Ficou atônita olhando para sua bolsa na mão do carona que lhe dirigia a palavra apontando uma arma em sua direção, olhando os arredores freneticamente. O bandido passou a alça por cima da cabeça e apontou a mão livre para seu celular. Eram dois adolescentes, usavam capacetes abertos, um com a viseira quebrada jogada totalmente para trás, outro com a viseira toda aberta.

- Vai, vai me passa essa merda! - O ladrão repetiu irritado.

- O que…? - Karen balbuciou desnorteada.

- Vamo, vamo é cena rápida! - O piloto disse apressando o comparça.

O carona desembarcou com a arma em punho e avançou até a vítima. Karen arregalou os olhos, deu alguns passos para trás assimilando a situação. A mão do meliante estirada pedindo seu telefone ficava cada vez mais próxima. Seu coração disparou, seus pensamentos se perderam, ela mexia os lábios sem emitir som e começou a balançar a cabeça numa negativa. O ladrão vinha com uma expressão intimidadora, era muito mais alto que ela. Deu um bote em sua mão e derrubou o aparelho no chão, arrancando os fones de seu ouvido.

- Você quer morrer!? - Disse encostando o cano da arma em seu rosto.

Karen tremia, seu olhar ia dos olhos do ladrão para o aparelho no chão. O rapaz percebeu que ela estava em pânico e deu um riso engatilhando a arma.

- Vaza! - Disse a empurrando. - Vai caralho! - Esticou o braço da arma e achou graça da vítima soltando um gemido e se encolhendo.

Ela não se afastou. Ergueu as mãos tremendo discretamente, um misto de sentimentos ia lhe tomando e lágrimas escapavam de seus olhos. O ladrão se afastou a encarando, indo em direção ao celular.

- Meu… celular… - Karen gemeu. - Por favor moço… - Um choro carregado afagou suas palavras.

O jovem se abaixou e pegou o celular. Depois de uma avaliação rápida fez uma careta de satisfação. Meteu no bolso da calça e foi até a moto. Karen deu um passo à frente e finalmente conseguiu falar:

- Meu celular não moço. - Suplicou esticando as mãos. - Por favor moço.

- Bora, bora, bora. - O piloto, que manteve o veículo ligado, disse acelerando em ponto morto.

Karen viu a rua deserta, o ladrão virando de costas a dois passos para subir na moto, o piloto tenso, engatando a marcha, pronto para arrancar.

- Meu celular! - Karen gritou histericamente

O ladrão se apressou a subir na moto e sair dali. Karen gritou novamente até sentir suas cordas vocais machucarem. O desespero superou a razão. Ela correu para cima dos ladrões, o garupa estava se ajeitando na moto e apontou a arma em sua direção dando ordem para ela parar. O piloto se assustou e tentou sair de qualquer jeito e deixou a moto morrer. Karen não parou. Mesmo depois de ouvir o disparo em sua direção, ela se jogou sobre os dois, derrubando a moto. Karen não ouviu o segundo disparo, não se importou com uma mão que lhe estrangulava ou com os socos e cotoveladas que recebia na cabeça, enquanto os três lutavam no chão. Ela gritava, se pôs sobre o garupa e enterrou seus polegares nos olhos do ladrão, que deu um urro de agonia. A arma lhe escapou no meio da confusão. Karen batia a cabeça do rapaz, com capacete, no chão ainda com os dedos dentro de seus olhos. O piloto se pôs de pé atrás dela e agarrou uma grande mecha de seu cabelo e puxou com toda sua força enquanto chutava suas costelas. Depois de muito esforço ela foi arrastada para trás, o homem a puxava desferindo chutes. Estava assustado vendo seu comparsa tremendo violentamente no chão, com dois buracos transbordando sangue, onde tinha os olhos. Karen não conseguia se por de pé e seus braços não alcançavam o agressor. Até que conseguiu agarrar a perna que a chutava, o homem caiu e ela se arrastou sobre ele recebendo socos. Ele lutava sentado, segurando-a pelos cabelos e se desvencilhando de suas mãos e dando socos com a mão livre. Com muito esforço, Karen superou a força do braço de seu agressor e conseguiu baixar a cabeça até suas pernas e enterrou seus dentes da parte de dentro da coxa do homem que deu um grito de dor. Ele passou a usar as duas mãos para agredi-la, ela esticou um braço até o peito do homem e agarrou sua camisa e com a outra mão se protegia da melhor maneira possível. Ao sentir sua boca encher de sangue ela soltou a mordida e mordeu novamente na altura da barriga. O homem desesperado, se debatia tentando tirá-la de cima de si em vão. Desistiu da luta para retirar o capacete e quando foi usá-lo contra ela, Karen cravou as unhas em sua cabeça e os dentes em seu pescoço. E ficou assim. Grunhido, cega, respirando pesadamente, sentindo o sangue jorrando dentro de sua boca, até o homem perder a pulsação, até ela perder a consciência. Nessa altura a rua já estava tomada, as pessoas tentavam entender a cena macabra.

Vários dias depois, no hospital público da região, dentro de um quarto de observação. Estava Laura, mãe de Karen. Estava de joelhos diante de uma imagem e uma vela acesa, agradecendo pela vida da filha com um terço nas mãos, os olhos inchados de tanto chorar e a garganta ressecada de tanto repetir suas orações. Karen passou por várias cirurgias. Levou dois tiros no abdômen, teve o estômago e um pulmão perfurados, costelas quebradas, afundamento craniano e facial, perda de vários dentes, hemorragias internas e mesmo assim, depois de muito trabalho médico e orações, ela estava fora de perigo. Um verdadeiro milagre. Seu caso foi amplamente noticiado, usado em programas de TV para debater sobre segurança pública e se devemos ou não reagir a assaltos. Especialistas discutiram sobre tudo, armas, vias escuras, menores infratores, motos roubadas, desigualdade social, o caminho dos itens roubados, etc. Porém, ninguem falou sobre a sua obsessão.

- Ma… mãe!? - Karen disse com muito esforço, ao despertar pela primeira vez.

Laura não conseguiu responder, tomada pela emoção. Olhava sua filha cheia curativos, com diversos aparelhos a monitorando, lembrava das palavras do médico, sobre a vontade de vida que ela tinha. Não existiam palavras para aquele momento. Ela tocou em seu braço.

- Mãe!? - Karen abriu os olhos, estavam totalmente vermelhos. Me… meu… Celular, mãe! Cadê… meu celular mãe? - disse caindo no choro. - Por favor mãe… meu celular.

Tema: Objetos amaldiçoados.

Marlon A A Souza
Enviado por Marlon A A Souza em 28/08/2022
Código do texto: T7592794
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