PASSO A PASSO - CLTS 20
“As fronteiras que dividem a vida da morte são, na melhor das hipóteses, sombrias e vagas. Quem dirá onde termina um, e começa o outro?” Edgar Allan Poe
Abril de 1999
Não via o tempo passar, a estrada de terra era o único caminho, tanto para chegar quanto para sair. As laterais barrentas, úmidas, esburacadas e cobertas por troncos podres e caídos formavam uma barreira de contenção. A passos lentos e em direção a um rumo certo, Léo marchava. Seus fantasmas internos lhe mantinham em pé e mesmo depois de algumas horas, ainda seguia. As bolhas nos dedos e o chinelo velho apenas no pé direito o fazia mancar. O sangue em suas mãos e o grande corte nas costas aliado a dor angustiante na cabeça o faziam desenvolver espasmos bruscos que levavam as mãos à cabeça e no meio das costas. A dor era inevitável.
O aviso havia sido dado, uma vez na terra, sempre na terra. Ofereceram-lhe a mortalidade e também o caminho a seguir, somente esqueceram de contar que seria um caminho sem paradas. Faria o que quisesse, veria o que lhe importasse, mas caminharia sem parar até seus últimos dias.
Podemos chamar de magia, espiritismo, trauma ou até mentira, o fato é que de observador, passou a ser observado, e não podendo parar, exterminou o que passava à sua frente. Sofreu alguns contragolpes de seres ditos corajosos, mas sua força até então divina, não lhe deixava cair, mantendo a estrada como um tapete vermelho digno de óscar.
Não distinguia humanos de animais, a cada despropositado que parasse a sua frente, seriam litros de sangue jorrados pelo caminho. Lembra de ter contado dezoito humanos e sete animais, das mais variadas espécies e tamanhos. A polícia lhe perseguia, mas não com muita ênfase, pois, seu mancar evidenciava uma possível parada para limpar as feridas que, cobertas de moscas varejeiras, possivelmente ardiam. Aguardaram tal ação, sem sucesso.
Um dos policiais que passava pela estrada com sua viatura alertou o restante da corporação para o que estava acontecendo, desceu do carro, tentando ser o herói, tentou pará-lo com spray de pimenta, mas apenas uma lágrima vermelha diluída no sangue escorreu no rosto de Léo, que coberto pelo capuz do casaco não mostrava suas feições de angústia e satisfação.
As condições que lhe foram dadas para descer era carnificina e sofrimento sem piedade e, principalmente, sem direito de parar e necessariamente, passar por cima de quem o tentasse impedir.
Seu coração, antes puro e dócil, e seu cérebro pensante e organizado passaram a ser comandados pelo lado quente da eternidade.
O anjo caído, ou simplesmente, Léo, desistiu de ser bom depois de muito tempo, e essa parte não está na história contada por mães ou pais zelosos, esse capítulo real não é divulgado. O foco de Léo era desfrutar seus últimos momentos antes de desaparecer por completo, nunca pensara em perecer e agora sabia que sua estada teria data de validade... ou não.
Continuando sua caminhada, avistou a grande escola a sua frente, um novo alvo. Sua feição sangrenta foi tomando forma de júbilo e prazer. Via a sua frente várias idades, várias opções, vários potenciais cadáveres. Ser predador fazia parte e as presas se jogariam em sua frente, morreriam apenas quem deveria morrer. Não desviava o seu caminho, eles é que se jogavam em sua frente e caíam, outros ao redor choravam e se escondiam como cães acuados. O massacre foi chamado de “Chacina dos anjos-demônios".
Havia apenas um anjo naquela escola, e era Léo. Entrou na porta principal e continuou derrubando quem quer que fosse. Quem o incentivou, o que o levou a assassinar crianças indefesas?
Não precisa de empurrão, desceu para esse objetivo.
As pessoas que o seguiam pela estrada até a escola, estavam sem ação, seus músculos não agiam mais, apenas caminhavam e se culpavam por não terem o derrubado antes, por não o ter impedido de chegar até o estágio final do terror. Suas vidas insignificantes estavam claras em suas feições. Choravam sorrindo sabendo que ainda viviam por estar atrás do anjo.
Poucos minutos depois de Léo entrar na escola, carros da polícia chegaram e foram se organizando. Os pontos estratégicos foram definidos, não atiraram, seus músculos não respondiam à mensagem enviada pelo cérebro e o dedo paralisava em frente ao gatilho. Léo permanecia caminhando. Ele não os matava, certo? Eles que nasceram para morrer pelas mãos de um anjo. Procuravam tal consequência, os indignos se atiravam à sua frente, eles eram os culpados.
O ilustre anjo que deixara seus pais e irmãos mortos em casa, perdera a consciência, fora forçado a executar o serviço que era a meta para seu resto de vida. O certo é que anjos sempre serão anjos, alguns não sabem em que lado estão.
O lado sombrio de Léo prevaleceu em sua jornada, tornou-se vilão de sua própria história. Não havia médicos, psiquiatras ou, tampouco, pais que pudessem entender como um anjo transforma-se em demônio, não haveria forma de explicar as cenas deixadas a cada passo dado por ele, não caberia em uma sessão só de um jornal qualquer tese concreta. Por que escolheu aquele caminho? Por que não se saciou diante das primeiras mortes na estrada? Por que ninguém conseguiu pará-lo? Por que ele não parou?
São perguntas sem resposta, pois a veracidade foi comprovada.
As salas de aula ficaram vermelhas como se fossem açougues clandestinos e sujos, o barulho não parecia ter momento para cessar e os gritos agudos e infantis retumbavam pelo vestíbulo da escola.
A polícia isolou todo o perímetro e espalhou atiradores ao redor do prédio. Teriam que entrar para proteger as crianças; entretanto, uma entrada espalhafatosa poderia piorar o que já parecia terrível.
O redor da escola ficou lotado de curiosos, repórteres, familiares e amigos. Os gritos suplicantes dos pais à beira do cordão de isolamento, formava uma melodia fúnebre, que superava o som das sirenes, tiros, explosões e helicópteros. O dia que começou trágico, terminaria como uma das maiores chacinas de todos os tempos.
O delegado Adolfo Feijó, trinta anos na corporação, fora designado para a ação na escola. Chamado às pressas para organizar a frente de ataque ou contensão, acordou com o telefone tocando. Era seu dia de folga. Levantou-se de sua cama com a mesma dor nas costas que sente desde os trinta anos. Agora, vinte anos passados, precisa dormir sentado, para diminuir o desconforto no meio da coluna. Na tela do celular, a chamada da delegacia, quase o fez voltar a dormir, mas sua consciência, mesmo exausta daquele trabalho que já não trazia mais felicidade e inundada pela vida solitária, o fez reagir e atender.
– Alô, tô de folga! – Atendeu querendo desligar.
Ouviu a descrição dos fatos, arregalando os olhos como se não acreditasse no que ouvia.
– Está certo, vou direto para lá. – Desligou.
Rapidamente vestiu a calça jeans e a primeira camisa branca que avistou na guarda da cadeira que ficava ao lado de sua cama e jogou o sobretudo azul-marinho surrado no ombro. Abriu o portão da garagem e, percebendo o calor que fazia, dispensou o casaco. Saiu rápido, colocando a sirene no capô e ligando as luzes e o som de advertência. Morava a menos de dez quilômetros e sabia que não havia tempo a perder.
Já na chegada, foi recepcionado por repórteres, mas nada disse do pouco que sabia. Direcionou sua atenção para a porta da escola, percebendo que seus policiais estavam prontos para agir.
– Quem organizou os homens? – Falou quase gritando para superar as vozes das pessoas desesperadas atrás do isolamento.
– Fui eu, senhor. – Respondeu o tenente Spencer.
– Certo, tenente, parece estar organizado. Deixe-me ver a distribuição.
O tenente lhe entregou a planta externa do complexo, mostrou os pontos onde os atiradores de elite estavam e disse que o esquadrão antibombas estava a postos junto aos bombeiros.
– Ok, assumo daqui.
O delegado Feijó acendeu um cigarro, deu duas tragadas e o jogou no chão, coçou a longa barba grisalha, virou sua atenção para a situação, pegou o rádio e anunciou estar no comando.
– Homens! Concentrem-se e não mexam um músculo sequer sem a minha ordem.
Era um homem experiente em situações estressantes, no entanto, aqueles ombros caídos e desleixados evidenciavam seu descontentamento por ali estar. Se perguntava como que tantas pessoas morreram no caminho sem que ninguém contivesse o tal assassino.
Tirou um chiclete do bolso da calça, desembrulho e colocou na boca, tentando demonstrar tranquilidade em meio ao caos. O tenente veio ao seu encontro e lhe entregou um envelope.
– Delegado, uma senhora pediu para lhe entregar. – Disse.
– Não temos tempo para isso. – Respondeu o delegado, enraivecido.
– Ela disse ser importante. – Concluiu o policial.
– Quem é ela? – Questionou o delegado
O tenente apontou para a direção de uma árvore, virou seus olhos como se não a enxergasse mais e voltou a esticar o bilhete para o delegado.
Sem paciência, o delegado puxou o papel da mão do policial, abriu o que parecia ser uma carta, esticou utilizando a perna e pôs-se a ler. Logo notou ser do responsável pelo que acontecia naquele exato instante na escola Columbinos School. Seus olhos ficaram vidrados nas palavras descritas, entrando quase num profundo transe, onde os gritos e choros em sua volta sumiam ao sabor do vento daquela manhã ensolarada.
“São apenas traços obscuros que percorrem minha mente, mas no interior de teu pensar e lendo o que escrevi, deve estar se indagando de onde vem tanto horror.
Respondo sem pensar: da vida que a vida me deu. Simples assim. O submundo emerge por minha garganta sem deixar que eu fale, mostrando não haver o que comemorar. Não há positividade para um desesperado. O sangue frio vigia meu corpo, porque se livre estiver, não haverá veias a percorrer. Não é e nunca foi um conto de fadas e, se depender apenas de mim, todos carregarão tantos cacos de insucessos quanto eu.
Ainda não sei o período de minha trajetória, isso é uma decisão particular. A sua permanência é calculada ou tens a convicção que anjos caídos ou diabos alados lhe aprontam pegadinhas bobas?
Não seja ignorante a ponto de ler e julgar que está acima do bem e do mal. Há muito mais malignidade do que benfeitorias no percurso do planeta, seja ele plano ou redondo. Ajude um cego a atravessar a rua e pense que seus créditos aumentaram perante seu Deus? Até poderia ser uma boa justificativa, no entanto, quem o fez cego? Ele é onipotente, onisciente, onipresente? Me dê suas respostas crentes e tente não mostrar as dilacerações que corroem seu interior fracassado. Se ele existe, ele fez tudo, e se ele fez tudo, ele fez o cego.
Nascemos iguais, choramos parecido, mas percorremos caminhos que com certeza te fazem chorar mais do que eu. Espero do fundo do meu âmago que as lágrimas tolas, secas e infinitas, tais quais suas ideias sobre mim, escorram como ácido em seu rosto. Estou aqui para te mostrar o que é exatamente o horror e o temor de manter minha aparição.
Chore mais agora, pois te avisei. Não há outro caminho a percorrer, aceite a perda, aceite meu pequeno triunfo que é maior do que tu poderias imaginar a si mesmo. Pobre solitário, acredita no que mamãe te falou, e mesmo sabendo ser um conto de fadas maldito sonha com os vários copos de whisky despejados em seu corpo junto à fumaça do cigarro ainda aceso que queima a ponta de seus dedos.
Seus dentes tortos e podres evidenciam o caminho pela estrada inóspita que lhe foi concedida a ponto de imaginar a ponte da salvação. Garanto que não atravessará. Verás que ninguém é significante diante de um mundo desinteressado e ridículo. Essa estrada te põe à prova de regras e facilita o teu pensar inútil, revelando que as trevas o dominarão como bolinhas de gude que erram o alvo. Seu lugar de destino não será glorioso. Não será sereno. Nunca.
Será tenebroso como nunca suspeitou que seria. Será pecaminoso como foram os tiros na guerra, será sem cor como os sapatinhos das crianças que por lá passaram, será vitimizado como os cães que morrem congelados puxando seus donos na neve. O trem está lotado de famintos e sedentos que não sobreviverão, você é e sempre será um deles. A fome do seu amigo o torna predador e, mesmo aquele ao seu lado que um dia chamou de irmão, te fará sofrer com o ferrenho canibalismo e tratará seu coração como picanha mal passada e sangrenta. És a presa, na verdade, sempre foi. Seus dentes que em outrora eram podres e desprezados, nesse momento vampirizam veias carameladas como deveria ser a maça do Éden. A realidade é que Eva tornou-se um nada nas mãos de Adão, que sem a costela favorita desequilibra e cai sobre a cobra que passa despercebida no cordel criado por poetas perturbados e assombrados pela realidade mórbida que esse mundo se tornou.
Tudo é dor, tudo gera dor, independe do esforço para não ser. Estamos aqui para causar mágoa. Diga que não, mas se está aqui, pensa do mesmo jeito. A razão de estar com essas páginas em suas mãos e lendo o que escrevo é a necessidade da dor, seja ela real ou inventada.
Seus passos são iguais aos meus, não me julgue por hoje ser seu semelhante, sendo que era superior, não queira minha desgraça, você sabe o que é. Atravesse para o outro lado da rua ao me ver, não tenha vergonha e suplique perdão, mesmo que saiba que não mereça.
As feridas abertas não cicatrizam fácil e as marcas da sutura liberam o aroma podre da infecção generalizada causada pelo passo dado em falso que como um joelho ou tornozelo inchado, o coração também sente a lesão.
Minha história será sempre lembrada. Com asas abertas ou cortadas. Nessa vida, posso ser rival, aliado ou os dois, isto é, se meu caminhar for ao teu encontro e você não cair. Fui Querubim, agora meu nome é Léo.”
O delegado ergueu os ombros, amassou aquele papel e colocou no bolso, sua audição voltava lentamente e sua aura tranquilizou-se como se todo o nervosismo de um ataque sangrento virasse pó e sumisse no ar daquela manhã brilhante, junto com o desconforto na coluna que sumiu instantaneamente.
Os parentes e amigos que esperavam respostas, questionavam os policiais que imediatamente repassavam as questões ao delegado, que via o desespero estampado nos rostos daquelas pessoas, enquanto seu semblante permanecia plácido, como se o seu entorno fosse um parque de diversões.
– Onde estão nossos filhos? – Questionava uma mãe.
– Peço que tenham calma. – Dizia o delegado, parecendo voltar a si.
– Como o senhor pode pedir calma? – Perguntou outra senhora, que pela aparência deveria ser avó.
– Estamos checando os fatos. – Concluiu o delegado, virando as costas.
– Por que não entraram ainda? Meu filho tem apenas oito anos. – Gritou um pai, desesperado.
– A minha filhinha completa dez anos hoje. – Disse uma das mães.
– Vocês não estão escutando os tiros e os gritos. – Gritou um senhor de meia-idade.
Os gritos cessaram e aquele silêncio ensurdecedor pairou sobre a comunidade. O delegado orientou a investida da tropa de choque. Entraram.
Dois dos policiais voltaram imediatamente assim que presenciaram as primeiras cenas, agacharam-se com os olhos vermelhos e vomitaram. O delegado foi até eles.
– Não pode ser. – Disse um deles.
– Desculpe delegado, mas a imagem é muito impactante. – Disse o outro.
O treinamento na academia não prepara o psicológico dos policiais, na verdade, ninguém está preparado para esse momento. O delegado, entrou. De imediato, quase escorregou no sangue que desenhava a continuação da estrada de Léo. Era o caminho da morte, corpos espalhados, mantendo sempre um caminho central.
– Já o localizaram? – Questionou o delegado, aos outros policiais.
– Ainda não, o que temos de concreto é que são muitos corpos. – Respondeu.
O delegado percorreu os ambientes desde a creche até o ginásio esportivo, seguindo o rastro de sangue até seu final e as cenas apenas pioravam, restavam poucas crianças vivas.
Duas meninas que se esconderam na cantina, disseram que o que os atacou estava com o rosto coberto, o corpo ensanguentado e envolto a uma luz prateada. Ninguém o reconhecera, todos os poucos sobreviventes falaram a mesma coisa, o que se tornou mais misterioso para polícia.
Dois tiros foram ouvidos, o delegado correu em direção ao som dos disparos, chegando à biblioteca, presenciou dois jovens com toucas e roupas pretas deitados e mortos um ao lado do outro numa cena clara de suicídio. Cercaram a grande sala e procuraram em volta das prateleiras, mas não havia mais ninguém. Chegaram à conclusão de que haviam encontrado os assassinos.
Passados cinco anos do incidente, aquela chacina acabou com a alegria da cidade. Muitos ainda questionavam a demora da polícia em entrar na escola e a culpava pelo acontecido. Principalmente o delegado Adolfo Feijó. Os policiais diziam que precisavam aguardar o delegado dar a ordem e ele garantia que o seu receio era uma entrada catastrófica, que poderia ter gerado mais vítimas, caso o assassino se sentisse acossado.
O certo é que se havia um terceiro homem, nunca fora encontrado e a estrada continuou lá. Tornou-se a “estrada de sangue”. Os mais fiéis a utilizaram como caminho para romarias e homenagens aos mortos. Velas eram acesas e pétalas de rosas eram jogadas na terra enquanto as músicas eram cantadas e os nomes dos mortos gritados pelos pais e amigos que carregavam as fotos de seus entes mortos. Não superaram, nem irão superar a desgraça ocorrida em suas vidas.
O delegado manteve seu cargo, apenas mudando o seu cotidiano, tornou-se mais caseiro e mais solitário, não aguentava mais os olhos da cidade o fuzilando a todo momento. Obedecia às horas de seus turnos e voltava para casa.
Além disso, criar um anjo sem asas aprisionado em seu porão não era nada fácil. O que o deixava mais satisfeito era chegar em sua casa no final do expediente e ser iluminado pela luz prateada que cobria todos os cômodos e principalmente, não sentia mais dores nas costas.
O anjo não falava uma palavra sequer, apenas caminhava em círculos no pequeno espaço dado a ele. Os ossos dos pés estavam expostos, mas não parecia sentir qualquer dor, e seus olhos miravam os olhos do delegado enviando mensagens silenciosas.
– Acalme-se meu jovem anjo, quando suas asas voltarem, terá ótimos passeios.
Léo enviou um olhar de insatisfação, mas entendeu que enquanto estivesse vivo, haveria gritos suplicantes, dor, medo, corpos e todas estradas que passasse seriam de sangue. E assim é.
Tema: Baseado em fatos reais e estrada.