O Pecúlio do Errático - CLTS 20
Por uma longa estrada, vem caminhando lentamente um andarilho. A sua volta apenas desolação, nenhum sinal de vida até onde a vista alcança. O nômade solitário que desafia esse ambiente inóspito, é apenas um velho homem. Em seu corpo carrega uma roupa muito gasta, com buracos aqui e acolá. A camisa deduzia-se um dia ter sido branca, mas pelo uso excessivo, transformou-se com o passar do tempo, em uma miríade de manchas de cores diferentes. Suas calças eram um jeans azul, em um estado tão miserável quanto a camisa, com rasgos nos joelhos e manchas por todos os lados. Era cingida por um cordão, que fazia muito precariamente as vezes de um cinto. Em seus pés uma bota marrom, de cano alto, com o solado já muito gasto, quase ao ponto de furar. Era possível notar que já havia enfrentado bravamente mais viagens do que podia suportar. A marca de um rasgo se evidenciava no cano do pé direito.
Cobrindo a cabeça, um chapéu de palha com abas longas, que iam até as extremidades de seus ombros. Por baixo, escapavam algumas mechas de seu cabelo, grosso e grisalho. Era um abrigo eficaz, contra o sol fulgente e atroz, que o acompanhava por todo o sofrimento da caminhada. Tinha a pele morena, queimada do sol, com sulcos profundos, que denunciavam um homem acostumado ao riso fácil, sua barba tão grisalha quanto seu cabelo, era rala e cobria boa parte de seu rosto, suas sobrancelhas eram grossas e os olhos tão escuros quanto o asfalto, por onde caminhava. Na boca, os lábios eram finos e rachados de um vermelho desbotado e apenas alguns poucos dentes podiam ser vistos. Caminhava a passos firmes, carregando em suas costas um saco de estopa, com seus parcos pertences.
Vinha caminhando à dias, por essa estrada poeirenta. Se submetia a esse martírio, a fim de encontrar uma cidade onde pudesse se estabelecer. Na última que foi sua morada, notará como em outras ocasiões, um certo incômodo crescente, causado por sua presença aos habitantes locais. E como de costume, antes que sofresse algum mal, juntou logo suas coisas, e saiu em peregrinação.
Apesar das lembranças amargas desses lugares que passou, enfrentava tudo com bom humor. Tinha um consolo, não obstante sua condição precária, carregava consigo, oque considerava ser um verdadeiro tesouro. Mesmo que, para alguns, não valesse sequer uma bufa.
Apesar do seu material ter um valor oscilante. Não se deixava abater, e ofertava de bom grado, a todos que lhe prestavam atenção. É sua moeda de troca, para todas as coisas, podendo ser um simples prato de comida ou um copo com água.
Este personagem aqui descrito, experimentado na vida. Já vinha caminhando há um bom tempo. Cansado e sentindo seu ânimo se esvaindo. Vê finalmente um ponto se destacando, no horizonte distante. Como uma miragem, através do ar ondulante que emana do asfalto quente, finalmente surge uma esperança. Após tantos dias nessa estrada cruel, onde os carros passavam indiferentes ao andarilho, que com seu sorriso e aceno de mãos, tinha esperança de obter uma carona. Um sorriso surgiu em seu rosto sofrido. Com a imagem do fim de sua jornada, sentiu suas forças renovarem. Ali haveria novos clientes, pensou consigo. E seu material crescerá um pouco mais durante a viagem. Quem sabe ali encontraria alguém, que nunca tivera tão precioso produto à disposição. Esses pensamentos enchiam seu interior de esperança. Após horas caminhando, finalmente chegou à entrada da Cidade, viu algumas casas simples e nelas algumas pessoas que o observavam. Avistou do outro lado da estrada uma placa com fundo azul escrito : " Bem vindo à Araguaína''. Em letras brancas.
Ficou por alguns minutos vislumbrando o local. Até Tomar coragem e adentrar nos limites da sua, talvez, nova morada. Logo que foi penetrando na cidade, saudou os moradores que havia notado antes, gesto que não foi retribuído. Passando as primeiras casas, admirou-se com a praça que encontrou. Era bem arborizada, circundada por uma rotatória. Em seu meio uma fonte, onde observou a estátua de uma mulher. Segurava um jarro e dele saía um fio finíssimo de água. Em volta da fonte, quatro bancos de madeira com encosto e depois deles um canteiro com rosas e algumas pequenas árvores. Fazia a divisa da parte externa, formada por um pequeno espaço gramado com árvores altas terminando em uma caçada de cimento onde quatro bancos de madeira idênticos aos outros se distribuem de norte, sul, leste e oeste, virados de frente para a rua.
Após essas observações, atravessou a rua e foi em direção à praça, passou a parte externa e parou de frente à fonte, deteve-se diante da estátua um minuto à admirando, depois passou a verificar os bancos em volta. Abaixou, pôs seu saco de estopa sob um deles. Assim que terminou, levantou e fez uma rápida varredura no entorno, a fim de averiguar os estabelecimentos que se encontravam ali.
Viu uma igreja, um armazém, um restaurante e algumas casas simples, como as primeiras que encontrou ao chegar. E exceto um atendente no balcão de um restaurante, nos outros lugares não havia ninguém. Procurava clientes para oferecer sua mercadoria. Sua única opção foi ir ao restaurante. Quando chegou na entrada, olhou para dentro e viu uma mesa de sinuca cercada por mesas e cadeiras de madeira distribuídas por todo o salão. Não havia notado antes que o restaurante possuía um bar. A bancada de madeira fazia a divisa entre o salão e o bar, deduziu ter um metro e cinquenta de altura por três de comprimento mais ou menos. Atrás, prateleiras repletas de bebidas variadas e sob elas, duas geladeiras vermelhas com portas de vidro abarrotadas de cerveja. De pé atrás da bancada, estava o atendente. Era um homem enorme e corpulento, a cabeça raspada, bigode grosso cobrindo a boca, sobrancelhas grossas e hirsutas, lhe conferiam uma aparência selvagem. Estava com um pano branco no ombro, vestia uma camisa regata preta, calças jeans marrom, algumas correntes no pescoço e um relógio prateado no pulso. Estava absorto em um caderninho que tinha à mão. O andarilho ficou um tempo parado, observando seu potencial cliente; notou a sua carranca, e pensou consigo : " Esse vai ser difícil, já me dei com clientes assim, vou me preparar para os xingamentos ". Suspirou e o saudou :
-Boa tarde, bom senhor. Disse de maneira afável lhe dirigindo seu melhor sorriso.
O homem levantou o rosto com aparente incômodo, o olhou de cima a baixo, e respondeu :
-Bom dia. Falou de maneira desdenhosa com a voz quase inaudível.
O cumprimento frio do atendente não o desanimou, na verdade, já esperava por isso. Continuou a falar de maneira cortês :
-Prazer, me chamo Julian, acabei de chegar a Cidade, qual a sua graça ?
O atendente suspirou, revirou os olhos, moveu a cabeça em um gesto de negativa, e tomado pela raiva falou :
-Me chamo Pedro! E não dou nada sem pagamento ! Gritou.
Pousou seus olhos nos de Julian, que permanecia inabalável com seu sorriso.
Então Julian coçou a barba, tirou seu chapéu, o segurou com as duas mãos diante do seu peito. Sua feição assumiu um ar de seriedade, nessa hora parou de sorrir e respondeu :
-Ora meu senhor, quem falou que eu vim pedir algo e não pagar ? Respondeu, sem desviar seus olhos dos dele.
Pedro foi pego de surpresa com a resposta, a mudança na atitude de Julian causou nele uma forte impressão. Se empertigou todo. Pigarreou, tentando disfarçar o desconcerto e falou :
-Como ia saber que você tinha algum trocado ? Olha sua roupa, todo largado, qualquer um pensaria como eu.
Julian ao ouvir essa justificativa sorriu novamente, pôs o chapéu de volta na cabeça e entusiasmado, iniciou as negociações :
-Tenho algo para o senhor, porém seu valor é uma incógnita, só se revela para aqueles que têm conhecimento.
Pedro arregalou os olhos com essa declaração. Parecia ter se interessado pelo que Julian teria a oferecer. Começou a acariciar o bigode, avaliando o'que ouvia.
Julian continuou :
-Eu acumulei esse material durante muito tempo, a cada experiência da vida ele cresce.
Parou, olhou Pedro, e notando seu interesse revelou o'que tinha :
-Eu ofereço sabedoria em troca de comida, água ou abrigo.
Depois de revelar oque tinha para vender, Julian esperou a reação de Pedro. O atendente explodiu em uma gargalhada, riu tanto que seus olhos lacrimejaram, após alguns minutos conseguiu se conter, enxugou suas lágrimas, tomou fôlego e falou :
-Essa foi boa, não sei se você tem sabedoria, mas gostei da piada. Eu achei que ia me mostrar alguma coisa que tinha encontrado por aí, em vez disso vem com essa de "sabedoria" por comida, conta outra seu malandro.
E se pôs a rir novamente. Julian não se abalou pela reação de Pedro e respondeu animadamente :
-Ora meu senhor, que outro bem pode te livrar tão certamente da infelicidade ? Te precaver do erro, ou de qualquer mal que possa te afligir ?
Pedro parou de rir ao ouvir as palavras de Julian. Pôs uma mão no queixo, pensou um pouco e propôs um desafio :
-Então vamos ver seu velho malandro, prova ai que tem : "sabedoria". Fala alguma coisa que vai me livrar do erro. Se você me falar algo útil de verdade, ofereço água do meu estabelecimento a vontade, enquanto ficar aqui na Cidade.
Julian, ao ouvir a oferta de Pedro, sentiu uma esperança crescente. Seus olhos brilharam com a possibilidade de conseguir tanta água quanto quisesse. Cerrou seus olhos e buscou na memória, a jóia que mataria sua sede.
Enquanto pensava com os olhos fechados. Pedro o observava, estava com um sorriso malicioso, se divertia vendo Julian se esforçando para impressioná-lo. Levantou uma sobrancelha inquisidoramente e falou :
-E aí malandro, cadê essa tal sabedoria que se gabava um minuto atrás ?
Então Julian abriu os olhos e deu um sorriso largo, mostrando a ruína que eram seus dentes. Ante esta visão, Pedro fez uma careta de repulsa. Julian começou a falar :
-Certa vez conheci um homem…
Nisto, Pedro interrompeu :
-Que é isso velho ? Você prometeu sabedoria e me vem com história ?
Julian respirou fundo, irritado pela interrupção, encarou Pedro e respondeu :
-As histórias contêm sabedoria em suas entrelinhas, preste atenção, você verá o valor do que eu carrego.
Pedro deu de ombros e fez um gesto com a mão pedindo que continuasse. Julian pigarreou, pensou um momento e deu curso ao seu relato :
-Certa vez, durante uma de minhas peregrinações, conheci um homem chamado Tiago. Era magro de dar dó, cabelo cacheado e oleoso, da barba só tinha o cavanhaque, a pele era castigada pelo sol, como é típico dos que desafiam as estradas que cortam essas planícies áridas. Quando nos encontramos, vestia apenas uma bermuda encardida, e nos pés calçava chinelos tão velhos e gastos, que estavam pela metade. Dizia ter ascendência indígena. E realmente, era possível notar em seu rosto os traços desse povo. Fomos companheiros de viagem por um tempo, e acabamos nos tornando amigos, falamos sobre nossas vidas, conhecemos as tristezas e as alegrias um do outro.
Contava meu amigo, que fora muito desprezado pelos pais na infância. O motivo de tamanha maldade, cria ser pelo fato dele ser um filho não planejado. Eram 4 irmãos contando com ele, foi o último a nascer. Sua família vivia na miséria, oque já era pouco teve que ser dividido com mais um. Era como se a pobreza da família fosse sua culpa, seus irmãos eram frios e distantes, sua mãe nunca lhe deu carinho e o pai só dava atenção quando era para castigá-lo. Cresceu nesse ambiente. Quando fez 18 anos, cansou de sua família e decidiu ganhar o mundo. Como era jovem e forte, conseguiu um trabalho de carregador, levava sacos de batata e jogava na caçamba dos caminhões o dia todo e não fazia corpo mole. Logo o dono reconheceu o seu esforço e o contratou como funcionário fixo. Durante o primeiro ano, trabalhou apenas carregando os caminhões, porém no segundo ano, perceberam sua habilidade com números e Tiago recebeu uma promoção. Foi trabalhar na administração da empresa, e por ser dedicado e honesto, ganhou a confiança de todos. Passasse anos, ele se casa e tem filhos, mas algo não ia bem em sua alma. Sentia muita mágoa do passado com seus pais e irmãos. Começou a beber e acabou descontando nos filhos e na esposa. No trabalho, seu rendimento caiu, apareceu por vezes bêbado. Seu patrão percebeu o problema, tentou remediar, deu conselho que parasse com a bebida, por consideração lhe deu diversas oportunidades para que se corrigisse, porém não tomava jeito, não deixou outra opção além de dispensá-lo. Tiago ficou desolado e acabou entregando-se de vez a bebida. A mulher não suportou a situação miserável em que o marido estava, foi embora com os filhos.Tiago se afundou cada vez mais na bebida, sem forças para trabalhar, e a fim de manter seu vício, começou a vender o'que tinha para comprar o alívio momentâneo de sua dor, até chegar ao ponto em que eu o encontrei.
No momento que Julian terminou, Pedro estava acotovelado no balcão, totalmente absorvido pela história. Quando percebeu que havia acabado, sobressaltou-se, se endireitou e falou :
-Como é seu nome mesmo ?
Julian sorriu e respondeu :
-Julian, meu senhor.
Pedro devolveu o sorriso e continuou :
-Ué, só isso, Julian ? Cadê a sabedoria… o ensinamento precioso que você prometeu ?
Julian baixou a cabeça pensativamente, suspirou e perguntou :
-Veja bem Pedro, porque que ele teve um destino tão trágico ?
Ao ouvir a pergunta, Pedro começou a acariciar o espesso bigode, considerou por um tempo a questão e disse :
-Ele não teve controle sobre a cachaça, se superasse esse problema, não teria o fim que teve.
Após essa resposta, se calou. Queria ouvir a opinião que Julian teria sobre sua observação. Então julian falou :
-Ótima observação meu caro Pedro, com certeza, ele deveria ter controlado seu vício, nisto eu concordo contigo. Porém existe algo que desencadeou esse mal e é nisto que está a sabedoria.
Pedro acotovelou-se novamente no balcão, estava curioso para entender o enigma. Julian percebendo o interesse de seu ouvinte, se alegrou e prosseguiu :
-Ele estava preso em um trauma, caro pedro, remoeu dores da sua infância e juventude. Por isso bebia tão desesperadamente, sacrificou seu presente e seu futuro por um passado que não havia superado…
Pedro, que estava anuindo com a cabeça, enquanto ouvia, interrompeu Julian :
-Realmente Julian, é verdade, não havia pensado por esse…
Julian estava eufórico, não deixou que terminasse, prosseguiu com sua conclusão :
-Desculpe, mas eu tenho que continuar. O que aprendemos com isto, caro Pedro. É que devemos superar o passado por mais duro que seja, viver o presente pois é tudo que temos e ter em mente que o futuro é consequência do que fazemos agora.
Pedro deu um murro na mesa e bradou :
-Essa foi boa Julian, isso que é sabedoria de dar gosto, com certeza um ensinamento muito útil. Não vou te dar só água, comigo terá um prato garantido, todos os dias de sua estadia aqui na minha cidade.
Enquanto falava essas coisas, dirigia a Julian um sorriso sincero. Depois deu a volta no balcão, foi até a cozinha que ficava nos fundos, voltou com talheres e um prato, pôs tudo na mesa, puxou uma cadeira convidando Julian a se sentar.
Julian vendo aquilo, pensou consigo : " graças a Deus, existe aqui um homem que sabe dar valor à sabedoria". Suspirou aliviado e falou :
-Ora Pedro, não é necessário que prepare uma mesa para mim, faça um marmitex, eu como ali na praça não quero incomodar.
Pedro com ar indignado responde :
-Como posso deixar que um sábio como o senhor coma na rua. Não, eu me recuso a permitir isso, na verdade, é um prazer que o senhor coma no meu estabelecimento.
Julian ficou tocado pelas palavras de Pedro. Decidiu atender ao seu pedido, foi em direção a cadeira e se sentou. Logo Pedro chegou com a comida e uma jarra cheia de suco, pôs um copo na mesa e serviu, Julian experimentou, estalou os beiços com o gosto maravilhoso de fruta fresca. Olhou seu prato com arroz, carne cozida, farinha e salada. Ante esta visão, precisou conter as lágrimas, fazia tempo que não tinha tanta coisa para comer. Pedro que o estava observando, achou que Julian se sentia constrangido. Resolveu deixá-lo à vontade dizendo :
-Coma o quanto quiser, meu bom sábio, a casa é sua, se precisar de alguma coisa basta me chamar, tenho outros afazeres, agora vou deixá-lo para que coma.
Julian, que estava tomado de emoção, ergueu a cabeça e agradeceu :
-Muito obrigado meu caro Pedro, tu é um homem bom.
Pedro concordou com a cabeça, e se foi. Julian mais uma vez contemplou tudo aquilo, juntou as mãos e agradeceu a Deus pela comida. Enquanto comia pensava consigo : " Por enquanto, acho que terei uma longa estadia por aqui, espero que sim, estou ficando muito velho para peregrinação ". Suspirou : " Pedro valoriza a sabedoria, já conheci outros que eram assim, porém quando algo que digo toca suas feridas, logo sou expulso e retomo a minha caminhada ". Esses pensamentos lhe causavam tristeza. Fechou seus olhos e com a voz baixa fez uma prece :
-Que eu nunca perca a esperança e o amor pelo conhecimento.
Sorriu e voltou a comer.
Fim.