O espírito agourento

Eu estava louco para chegar em casa e tomar um banho quente e demorado, depois do dia terrível no trabalho, era o certo a se fazer. Então prossegui pelo calçamento em direção a grande passarela. Àquela altura da noite alguns carros ainda transitavam, céleres, na avenida, mas não havia vivalma nas calçadas ou fazendo o caminho que eu estava prestes a transpor para chegar no ponto de ônibus do outro lado. Foi com um ligeiro receio e uma pitada de medo que subir a escadaria deserta com passo ágil.

Quando cheguei no patamar mais alto senti vontade repentina de fumar e não hesitei em satisfazer este desejo. No instante em que baixei os olhos para tirar minha carteira de cigarros do bolso não havia ninguém a minha frente, mas assim que levantei a vista me deparei com algo.

Diante da visão de tamanha estranheza estremeci de corpo inteiro, soltei uma exclamação e levei a mão no peito, sem fôlego, foi tudo involuntário e rápido. Fiquei imóvel e o que vinha direção contrária também parou. Na minha frente havia uma figura curiosa, insólita, parecia algo oriundo de algum filme de terror, vestia vários faixas de trapo cinzento porcamente emendados e levava na cabeça um chapéu preto tipo cartola. Mas o que mais me atormentou, e confirmou para mim que aquilo era coisa de outro mundo, foi o fato de eu não conseguir distinguir o rosto do sujeito, onde deveria haver um rosto eu avistei apenas um borrão escuro e, mesmo a distância, eu deveria poder identificar os sinuosos traços de um rosto humano.

É com grande vergonha que admito que só não urinei nas calças porque a bexiga, para minha sorte, estava vazia naquele momento. Sumiu, de chofre, em minha mente, a passarela, o céu estrelado e até a avenida abaixo de mim. Naquele momento existiam apenas eu e aquela coisa, que eu não fazia ideia do que era.

Da profunda escuridão que formava aquele rosto funesto, se é que podemos chamar de rosto, eu extrair uma desagradável certeza: o sujeito, naquele instante, estava me sondando com aquela face lisa, talvez até, alimentando-se do meu pavor, que aquela altura se ejetava, quase sólido, de dentro de mim.

Eu não sei quantos segundos levamos naquela bizarra contemplação mútua, cada um de nós parado em uma extremidade da passarela, mas pressenti que o cenário mudaria, e realmente mudou. Quebrando aquela paralisia, o sujeito aprumou o corpo e, com horror, percebi que ele correria na minha direção. Eu seria atacado.

Tudo aconteceu muita rápido. Para mim, só houve tempo de girar nos calcanhares para tentar fazer o caminho de volta e correr, quando aquela coisa passou por mim em velocidade inumana e me jogou no chão, tamanha foi a brutalidade, cai de mãos espalmadas no piso de cimento da passarela. Eu não sei se ele esbarrou em mim ou passou através do meu corpo, só sei que parece que levou minha alma junto numa massa negra gasosa quase incorpórea que eu vi sumir antes que chegasse na porção inferior das escadas por onde eu havia subido.

Levantei-me e bati a poeira do meu uniforme, estava muito tremulo e percebi que ainda tinha o cigarro enganchado entre os dedos, o joguei fora e comecei a correr. Eu sentia que os batimentos do coração doíam no peito, mas não pensei na experiência bizarra e singular pela qual havia acabado de passar, longe disso. Fui tomado, de repente, por uma angústia geral, uma tristeza que não possuía um direcionamento específico. Foi com muito esforço, enquanto corria, que conseguir conter o impulso neurótico repentino de me jogar de cima da passarela.

Enquanto descia as escadas do outro lado me veio uma vontade de chorar, e chorei. Lembrei da morte do meu pai e o profundo pesar daquele dia terrível voltou com a mesma força e clareza. Ascendeu à memória também o dia do meu acidente de moto, no qual fraturei o fêmur, e minha pernas vacilaram, ameacei cair, mas fui acudido por um senhor idoso ao pé das escadas que me segurou pelos flancos e perguntou se estava tudo bem. Pelo olhar dele de puro medo, concluir que a minha face deveria ser uma máscara pavorosa. Respondi que estava bem, agradeci a ajuda e me desvencilhei dele e continuei rumando para o ponto de ônibus. Desnorteado, com passos estranhos.

Enquanto eu caminhava convulsivamente, todas as piores lembranças, traumas e experiências negativas pelas quais eu havia passado ao longo da vida iam se conjurando na minha mente como se tivessem vida própria e as dores dessas experiências iam me preenchendo todas de uma vez só. Senti que ia explodir, comecei a suar frio e uma leve adormecimento nos membros foi sentindo. Eu deveria estar, como disse antes, com um aspecto terrível estampado no rosto porque me deparei com uma senhora que de longe me olhava com uma cara chocada, ignorei-a e continuei o percurso.

Cheguei na parada no exato momento em que o meu ônibus estava recebendo os passageiros. Pulei dentro dele, paguei a passagem e me sentei ao fundo. Minha visão, naquele momento, vacilava e as coisas perdiam e ganhavam o foco diante de mim. Tentei me acalmar, respirar, mas nada tirava aquele pavor de dentro de mim. Tentei evocar as boas memórias, mas era como se elas não existissem. Nada de agradável me ocorreu. Era como se tudo de bom que eu já vivi tivesse esvaído por um ralo mental.

Por um momento, enquanto delirava, esqueci meu nome e enquanto tentava lembrá-lo o pavor interior aumentou e soltei uma exclamação gutural, que mais pareceu um uivo estrangulado, era como se o que eu fosse estivesse fugindo de mim. Nessa hora os outros passageiros se afastaram e eu fiquei num grande espaço vazio sozinho na parte de trás do coletivo. Todos me olhavam com muito medo, como se eu fosse atacar, e uma garotinha pequena começou a chorar e afundou o rosto molhado no ventre da mãe. Toquei o sinal e quando o ônibus parou, sibilando, desci sem ver onde e por onde. Para os outros, minha saída deve ter sido recebida com grande alívio.

(**)

O vento é bastante forte aqui em cima, talvez chova mais tarde, percebo umas nuvens cor de chumbo se formando. Não sei que prédio é esse e nem como conseguir chegar no terraço. Só sei que tem momentos que a visão escurece e a única coisa visível a minha frente é aquela face de abismo negro com o chapéu em cima me sondando, me estudando. Vejo aquele rosto, sem dentes ou boca, rir de mim enquanto se deleita com a minha loucura crescente.

Já deve ser de madrugada, acredito. Estou sem relógio. Escrevo essas palavras com a caneta e a agenda do escritório, que carrego comigo, nos raros intervalos em que minha visão não é levada para a contemplação daquela coisa. O curioso é que toda vez que volto à lucidez estou mais perto do beiral do terraço e não tenho a lembrança dos momentos em que me dirijo pra lá.

Com tudo isso que me ocorreu hoje me veio a consciência certa história que minha vó contava quando eu era menino a cerca de algo que ela classificou como espírito agourento. Segundo ela, esses espíritos são as criaturas mais deprimentes e perniciosas que existem. Ela disse também que em vida, essas coisas sofreram e perpetraram terríveis feitos, com eles mesmos e com os outros. E que quando eles morrem, suas almas ficam presas nos arredores do local de desenlace, e eles funcionam como um tipo de hospedeiro pestilento que infectam com suas desgraças tudo aquilo em que tocam, vivo ou inanimado. Eu sempre ouvia essa historia completamente embevecido, cheio de sentimentos conflitantes. Minha vó disse que na região do interior onde ela morava havia uma encosta acidentada onde tinha um espírito agourento que residia. E segundo ela, além de pessoas, dessa encosta, até animais saltavam, em agonia, direto para a morte lá embaixo. As mães proibiam os filhos de passarem pelos arredores do lugar. Lá a terra era escura, torrada, e a vegetação nunca crescia no solo, quero dizer; nada com aspecto saudável brotava dali.

Eu já estou encostado numa espécie de amurada do beiral do terraço. Quando eu voltar do próximo apagão onde será que vou estar?

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 05/08/2022
Reeditado em 17/12/2023
Código do texto: T7575308
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