O mensageiro

O mensageiro (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

Sábado pela manhã. Por volta das nove horas da manhã. O sol ainda é fraco, pois a estação é o inverno. Algumas andorinhas voam desordenadamente lingando a linha imaginária da geometria mental. Sr. Osmar, o famoso caixeiro, também letrado na arte de atendimento aos fregueses e experiente açougueiro, em traje branco, como a brancura do vestido de noiva, com a faca na mão direita e a luva de aço na outra mão, vai conduzindo os atendimentos. Tem a ajuda da “Mineirinha”, apelido dado à Adriana, funcionária da mercearia por mais de oito anos e se delicia na função de caixa, logo montado no início do estabelecimento. De cabelos longos e amarrados, os quais se envolvem dentro da touca trançada na cor branca, sentada no pequeno banco de madeira, tendo à frente o grande monitor do computador, acoplado ao teclado, ao mouse, ao leitor de código de barras e a impressora fiscal. Logo abaixo, está a gaveta eletrônica que ainda está vazia, está somente com o troco posto pelo patrão. Algumas maquininhas para passagem de cartões de débito ou de crédito. Três vasilhas de plásticos contendo alguns doces, balas e o pirulito artesanal, feito este, pela esposa de Osmar. Um pouco mais acima, perto da prateira onde estão expostos alguns maços de cigarros, isqueiros, palheiros (cigarros artesanais feitos de palha de milho e fumo de rolo), um pequeno aparelho portátil de rádio, o qual estava sintonizado na emissora de rádio local, em programa de músicas caipiras e sertanejas. O vidro de álcool em gel estava sempre cheio, pois o capricho e o asseio dentro do estabelecimento eram exigidos rigorosamente pelo proprietário.

Entrava pela porta a Dona Maria, senhora gorda, de cabelos brancos, usando a bolsa no ombro direito. Escondido o rosto nos grandes óculos pretos, vai logo cumprimentando Mineirinha. Estende o rosto e lasca dois beijinhos na face lisa e esbelta da moça. Ao Sr. Osmar, se dirige dando-lhe um bom dia. Pergunta pela família deste e se o netinho já chegou, pois a filha do caixeiro está nos dias para ganhar a criança. Imediatamente, faz o pedido de dois quilos de bife, bem macio. Carne moída, carne de porco e também o toucinho, pois o filho está chegando da Capital e já fez o pedido para o torresmo bem frito.

Pacientemente, Osmar assim dizia:

- É agora, minha senhora. O bife é de ontem, mas o toucinho chegou nesta manhã antes das seis horas.

- Vou fazer lindos cortes para que seu filho goste e a senhora faça o tempero caprichado.

Assim que Dona Maria, carregando os embrulhos vai embora, lá fora, do outro lado da calçada, estaciona uma motocicleta na cor vermelha. Quem apeia é o Paulo, policial reformado. Vestido de calça jeans, blusa branca, com a estampa de uma motocicleta dos anos setenta, talvez uma Halley, logo se aproxima. Com o caixeiro, vai logo dizendo que o time torcido pelos dois está ruim. Precisa vencer a partida deste sábado para buscar vaga para as quartas finais do campeonato.

- Osmar, meu grande amigo e nobre torcedor. Por gentileza, antes de arrumar as carnes que vou levar, vá até lá no fundo. Lembra-se daquela pinguinha trazida dos “Duleiros”?

- Não espere o tempo. Ponha dois dedos de copo. Estou com muita sede e a branquinha saciará a secura.

Já acostumado com militar reformado, pois todas as vezes que ele ia buscar as carnes, pedia desesperadamente a pinga, ele sorria e logo exclamava:

- Cuidado para não ficar tonto! Se Dona Lourdes souber, ela virá até aqui e a coisa não ficará bem!

Sorrindo, o ancião respondia:

- Deixa de temer, pois ela não virá aqui hoje. Ela está em casa de minha sogra. Estou sozinho e somente vou buscá-la na próxima quarta-feira.

Mal acabava de providenciar as carnes para o militar, repentinamente um garoto se aproxima. Entrega o bilhete para Adriana, que imediatamente o lê. Ela se desloca do precioso banco. Ajeita a máscara no rosto. Aperta a válvula do recipiente onde contém o álcool em gel. Dirige-se até o balcão de vidro e nele se encontra a embalagem escrita o nome de “Adão”. Pega-o e entrega para o garoto, dizendo:

- Fale com seu avô que o toucinho está do jeito que ele gosta. O preço é cinquenta e cinco reais. Vou anotar e ele virá na quarta-feira, como de costume e pagará.

- Não corra e ande devagar, pois a sacola poderá arrebentar e a mercadoria cair pelo chão. Ouviu?

Em tom bravo e com a cara fechada, a moça dizia ao garoto, que a fitava com os olhos bem arregalados que podia ver o espanto feito por aquela linda mulher, mas era a função dela alertar ao menino para não deixar cair o produto, pois seria desonra para o nome do comércio.

- Osmarzinho! Osmarzinho! Meu amor, meu querido, meu encanto! Adivinhe quem chegou e quer dois quilos de linguiça, um quilo de carne moída e um quilo e meio de bife, bife de alcatra!

Sorrindo, era a Dona Sofia. Mãe de dois vereadores da cidade. Com o sorriso nos olhos, ela sempre tinha o hábito de fazer brincadeiras com o caixeiro, pois eram vizinhos e as famílias combinavam bem. Ela contava piadas, dava gargalhadas, batia palmas de alegria e sempre tinha frases tão bonitas. Ela, também, era ministra da eucaristia. Aposentada e grande pedagoga, ela curtia a vida ao lado do marido, dos filhos, dos netos, das noras e ainda fazia muitos versos. Já havia publicado muitos livros e era confreira na Academia de Letras do município regional.

Osmar já sabia de que ela precisava. Rapidamente, em sacola ecológica, sua encomenda já estava dentro. Despedindo e prometendo voltar na próxima semana, ela se dirigia ao caixa e abria a bolsa. Vários eram os cartões que ali estavam. Ela escolhia algum e pedia para Adriana passar no sistema de débito.

A manhã ia passando. Várias eram as pessoas que ali passavam. Todas, de uma forma discreta, sempre deixavam alguma notícia, alguma frase, algum fato. O tratamento do caixeiro e da jovem e linda mulher era o mesmo. Sorriam, brincavam e sempre estavam de bom humor.

Por volta das dez horas e quarenta minutos, aparece o Senhor Alceu. Ele, senhor de meia idade. Tinha o hábito de se vestir todo de preto. Terno preto, sapato preto e gravata preta. Foi aposentado por acidente de trabalho e mancava de uma das pernas. Viúvo e sem filhos, passava o tempo ajudando o Mateus, o dono da funerária da cidade. Era o Senhor Alceu quem viaja para buscar os defuntos que faleciam em outros municípios. Ficava todo feliz ao ir aos hospitais e transportar os falecidos. Ele mesmo providenciava o banho, a urna mortuária, as roupas, as flores, as coroas e o sepultamento. Diziam as más línguas da cidade que ele tinha o hábito de conversar com os mortos no momento em que arrumava os corpos para os velórios.

Nesta manhã, ele estava vestido de bermuda preta, camisa preta e chinelo também na cor preta. Sobre a cabeça, com cabelos grisalhos, o boné, também na cor preta, com o emblema e o nome da funerária. Eles o apelidaram de “Urubulino”, em referência ao personagem humorístico de “Chico Anísio”, o imortal comediante. Assim, ele nem ligava. Era um indivíduo muito querido na cidade. Não fazia pouco caso de ninguém. Muito prestativo e de grande conhecimento.

Olhando para Adriana, que se mantinha atenta ao recebimento de compras do Professor Osmar, diferente do caixeiro, e de vez em quando fitando mais duas pessoas que ali estavam, em voz forte e grossa disse:

- Adriana! Jovem e mulher linda. De cabelos grandes, olhos bem bonitos e corpo monumental!

- Aproveite sua vida! Desta noite você não passa! Está tudo escrito no livro da vida...

- Kakakakakakakaka...

O riso dele era estrondoso. As ondas fortes entravam nos ouvidos dos que ali estavam presentes. Uma pequena senhora, de idade mais avançada, encolhida no canto ao lado da prateleira, olhando para o Mensageiro da Morte que ali estava, não hesitou em fazer o “Nome do Pai” várias vezes e se benzendo como se estivesse em grandes apuros. O professor Osmar pagou a conta e disse em voz baixa que estava se retirando. Neste dia não iria beber a dose de cachaça vinda do alambique novo. O clima estava pesado.

Fazendo o “Nome do Pai”, Adriana deu três toquinhos sobre a mesa e disse:

- Isola, isola mesmo. Suas palavras, Mensageiro da Morte, não me atingirão.

Ele sorrindo mais forte, como nos filmes de terror, em ondas sonoras bem graves, entre os dentes brancos, bem tratados, dizia:

- O Mateus comprou um novo extrato de madeira. Foi feito em madeira de lei. O Joel desenhou lindas imagens sagradas para colocar o caixão. Está novinho em folha. Ontem, eu mesmo fui buscá-lo. É lindo e muito bem trabalhado. Para quem quiser estreá-lo, terá desconto em dez por cento no preço final do velório...

Sorria mais forte.

Adriana, com medo, pois amava a vida, disse:

- Eu vou demorar muito tempo para passar deste mundo para o outro mundo.

- Sou jovem ainda. Pretendo casar, ter filhos e não será minha hora, na passagem desta noite.

Sorrindo mais forte ainda, Alceu assim disse: - Dona Marília disse a mesma coisa. Foi fazer uma cirurgia e não voltou mais...

- A jovem Daniela riu de mim, há dois meses. Foi passear à praia e não mais voltou. Virou tuto de tubarão...

- O Senhor Daniel me criticou e me jogou praga. Foi passar uns dias com a filha, na Capital e “Profitt”. Infartou. Eu mesmo o busquei na semana passada.

- O dentista Marcos foi viajar e se encapotou ele e o carro. Tive que apanhar os pedaços e enterrar.

- Assim, minha amiga, é a vida. Muitos criticam de mim, mas imagino que você, jovem e elegante, não passe desta noite...

Sorrindo mais forte, disse para o caixeiro, que ao canto, bem próximo do congelador, de olhos bem arregalados, segurando a faca ouviu:

- Meu amigo e bem quisto Osmar. Por favor, um quilo de linguiça, pois vou fritá-la e comê-la com pão. Vou esperar para a tarde, pois tenho que viajar pelo menos quinhentos quilômetros indo e quinhentos quilômetros voltando, pois a mãe do Doutor Alcides faleceu.

- Amanhã, minha jovem Adriana! Será o seu dia...

- Kakakakakakakaka...

Pegando o embrulho, logo ele saiu. Adriana ficou preocupada com as palavras de “Urubulino”.

Terminado o dia, Adriana foi embora. Tinha uma festa para ir. Assim que arrumou, amigos e amigas apanharam-na de carro e foram a um show na cidade vizinha. Quando retornaram, aconteceu acidente com o veículo. Adivinhe quem foi para o outro mundo?

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 02/08/2022
Código do texto: T7573706
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