Tormenta

Um raio escarlate refletia intensamente no capacete a vácuo. O tubo de oxigênio embutido não pesava, incomodava, no entanto. A indumentária característica dos exploradores do espaço era inconfundível. Raios rubros e vivos começaram a ofuscar a visão do tenente brasileiro Souza. Tratava-se de uma missão suicida: reconectar dois cabos do propulsor da nave e tentar retornar para a base em Júpiter. Como poderia ter parado lá? O objetivo inicial era apenas uma navegação exploratória até o satélite Europa. “Jupiter II”, diria Velasquez, seu companheiro de viagem . O oxigênio disponível para a empreitada poderia não ser suficiente porém, como único tripulante apto, tinha que executar a tarefa.

Dada a rara participação do Brasil na exploração espacial, a nave Esperança representava nominalmente todo o anseio do povo tupi guarani. Era uma tripulação pequena. Quatro homens e três mulheres. Todos tinham formação militar devido ao perfil psicológico exigido. Sargento Moura, um cinquentão falante que vivia dos tempos de glória da Terceira Guerra Mundial; Cabo Rodrigues, um jovem de trinta anos que ainda morava com a mãe e sonhava com as estrelas; Cabo Bastos, uma veterana de guerra assim como o cinquentão Moura, porém com modos tácitos; Soldada Silva, a mais bela e provavelmente mais nova do grupo; Tenente Velasquez, amigo nas armas de Souza e segundo encarregado da missão e, para completar; Cabo Heinz, um “galego sisudo” que falava tanto quanto a Cabo Bastos.

Apesar de tantas características peculiares, Souza os escolheu dedo a dedo com base em um único critério: capacidade de seguir ordens e executá-las sem hesitar. Pensara em requerer a última unidade de androides porém, mesmo com a IA avançada, o experiente tenente precisava contar com a criatividade não protocolar. Por tratar-se de uma viagem exploratória com vistas a um destino incerto, o hiperssono não pôde ser ativado durante o trajeto. A natureza do trabalho consistia em todos ficarem alerta total. Boa parte dos comandos de navegação era manual a fim de preservar o trabalho “artesanal” de exploração.

Pouco antes de chegarem à estação de Jupiter, a nave exploratória “Esperança”, sofreu um atrito com meteoritos além da força gravitacional do “Tormenta”, o famigerado buraco negro próximo ao primeiro satélite natural “Io”, de Jupiter.

Souza vislumbrou um dos cabos do primeiro propulsor e o acoplou à base da nave. Não tinha muito tempo. A tripulação dependia dele. Quanto mais demorasse, menos oxigênio haveria para todos. Como responsável legal pela missão exploratória, o tenente adotou a medida mais extrema para preservação da tripulação: quebrou o protocolo básico e ativou manualmente o hiperssono. Obviamente, tratava-se de uma ação desesperada com vistas à preservação de todos sob sua responsabilidade. Sendo o único passageiro acordado, consumiria muito menos oxigênio até lograr sua volta para estação de Júpiter.

O segundo cabo, não muito longe, pairava na mesma direção do sol. Com muito esforço, conseguiu ajustá-lo e retornar à nave. Restaram-lhe pouco mais de cinco minutos de oxigênio. Necessitaria apenas de três. Tempo suficiente para adentrar a nave e proceder de volta para a estação.

Ao cumprir todo o procedimento das câmaras e antecâmaras a vácuo, Souza notou que as luzes oscilavam. “Força magnética?”, perguntou-se o tenente programando todos os comandos possíveis e testando os jatos de propulsão.

Escuridão. Silêncio profundo. Iminência do desconhecido.

Um ponto escarlate crescente iluminou o painel de comando e revelou uma figura assustadora atrás dela. A intensa luz escarlate revelava as cicatrizes e deformidades do ser desconhecido. De súbito, um turbilhão de memórias inundou o consciente do capitão. Reviveu as últimas horas tão vívidas quanto o horror que sentia naquele momento...

Logo chegariam à estação de Jupíter. Um sinal de alerta tingiu os painéis digitais com um tom avermelhado. “O Tormenta” estava próximo, portanto a nave necessitaria fazer um desvio de rota devido à força gravitacional do buraco negro.

A jovem militar mirava atentamente os dados espalhados pelo painel principal. Como se esperasse um olhar de aprovação do capitão, manteve-se em alerta sem efetuar qualquer ação. “Propulsores em velocidade máxima e a 90 graus!”, bradou o copiloto veterano de guerra. A cicatriz que lhe saltava do rosto dava-lhe um ar de superioridade incontestável. Sem hesitar, a bela vestida de farda atendeu ao comando prontamente.

Apesar de todo o ritual de manobra, a embarcação espacial não obedeceu ao comando. O capitão, até então austero e inflexível, levantou-se de sua poltrona e ordenou secamente “segurem-se!”. Mal tiveram tempo para acatar a última ordem antes de adentrarem o Tormenta.

Ao cessar a sofrível passagem pelo devorador de estrelas, a nave ressurgia ilesa. É o que todos achavam. O painel central, antes rubro, agora inoperante assim como os propulsores. O transformador de combustível excedente em oxigênio, essencial para a sobrevivência da tripulação, também estava inoperante. Precisariam voltar o quanto antes para a estação de Júpiter.

Todos desacordados. Todos exceto o capitão que, em pé, contemplava confuso o gigante vermelho diante da nave. Não haviam adentrado o Tormenta. Deveria ter sido apenas uma turbulência causada pelos detritos ou poeira cósmica. Ao lado do capitão, seu braço direito ainda não havia acordado. Por um breve instante, sentiu raiva em estar ao lado de pessoas tão frágeis. Naquele momento, eram imprestáveis.

Passado um tempo, o restante da tripulação, já desperto, ficou estupefato ao encarar o gigante vermelho mesmo alguns tendo a certeza que haviam passado pelo Tormenta. “Precisamos reparar o propulsor e ativar a energia reserva manualmente”, concluiu o braço direito do capitão, agora acordado e operante. A bela jovem já se preparava para se direcionar à sala de máquinas quando foi surpreendida pelo próprio capitão. “Iremos juntos”, afirmou como se fosse uma ordem.

O copiloto, confuso pelo desvio de função do próprio capitão, mirou o vice capitão com ar interrogativo ao que este nada respondeu. Nunca desviavam função. Era uma das regras de protocolo mais sagradas.

Após alguns minutos, o painel de controle voltou a operar. Os três responsáveis pelo comando inferior avaliavam os possíveis danos não visíveis até então. O vice capitão, incomodado pela demora de dois integrantes, passou o comando para o veterano da cicatriz e foi à procura da dupla. “Avaliem quanto tempo irá levar para reparar os propulsores”, ordenou o novo comandante. Ajeitou-se na poltrona e, seguindo sua intuição, ativou as câmeras das seções da nave. Todas funcionando corretamente, com exceção da sala de máquinas...

A avaliação feita pelos três integrantes do painel de controle foi interrompida por um estrondo. Nenhum dado digital apontava para uma possível avaria na embarcação. Aquilo foi oriundo da própria nave. O jovem militar, até então disperso, levantou-se e, com uma continência ao vice capitão, dirigiu-se para o depósito de armas. A veterana, na outra extremidade, assumiu o painel central substituindo o austero copiloto que despertara a tripulação após a turbulência. De semelhante modo, o sisudo militar prestou continência para o vice capitão e também se direcionou para a sala de armas.

A sala de comando estava totalmente desfalcada. Após tanta quebra de protocolo, o vice capitão procurava encontrar uma forma de controlar aquela situação. Já havia enviado, pelo interfone da nave, várias mensagens padronizadas. Nenhum retorno. Estava perdendo as funções principais de sua navegação. Onde, afinal, estariam todos? “Não importa o que aconteça, proteja-se!”, ordenou para a veterana que se encolhia no painel central com uma expressão confusa. O veterano de guerra, e agora capitão interino, empunhou uma pistola portátil a laser e debandou para o interior da nave.

Nada daquilo fazia sentido. O que haveria acontecido? Porque ninguém voltava para o centro de operações da nave? “Que raios é isso tudo?”, indagou-se a veterana remanescente. Suas mãos tremiam de ansiedade. Era muito estranho. Lembrou-se das câmeras em infravermelho. Todas estavam ativas e operantes. Buscou movimentação em cada uma delas. Para sua surpresa, sem indício ou rastro algum. Alternou os ângulos das câmeras móveis e ficou curiosa com o que viu: a sala de hiperssono estava ativa. Como não havia infravermelho para esta sala, precisaria vê-la de perto. Respirou fundo e, considerando suas alternativas, deduziu que a melhor seria compreender aquilo tudo.

Cada seção da nave estava intacta. Mesmo não havendo droides de limpeza e higienização, até o refeitório estava limpo. Após dobrar à direita e descer pelas escadas rumo à sala de hiperssono, a veterana notou rastros de um líquido escuro. Não se parecia com óleo. O fluido era semelhante ao combustível excedente utilizado para transformação de oxigênio. O cheiro, no entanto, apontava para algo que conhecia muito bem. Algo que vira durante a Terceira Guerra Mundial. O fluido da vida. O fluido sem vida. Aquilo era sangue.

Com uma faca de elétrons ativos, a militar tencionou os ombros e focou todos os seus esforços nos sentidos básicos: visão e audição. A sala de hiperssono se aproximava de sua visão. Repentinamente a escuridão inundou o corredor. A luz vermelha característica do gerador pouco iluminou seu destino. A cinquentona mal teve tempo de reação quando foi derrubada pela investida do desconhecido. Mesmo reagindo, a militar de meia idade foi imobilizada e, antes de perder a consciência, sentiu que estava sendo arrastada. A escuridão tomou conta de seu ser. A desolação tomou conta da nave.

As luzes retornaram e revelaram que o desconhecido havia aniquilado toda a tripulação. Como se fosse um vírus, segregou os cadáveres à criogenia para o devido extermínio. Com o contágio controlado, poderia prosseguir com sua missão. Retornaria ao seu destino original.

Dirigiu-se à sala de comando e programou a abertura das câmaras e antecâmaras a vácuo. Assustou-se quando, de repente, viu um estranho vestido numa farda manchada o encarando. Um estrondo acompanhado de um raio vermelho ofuscou sua visão e devolveu sua consciência para o tempo real. Após seus olhos se acostumarem com o matiz reestabelecido, mirou-se no painel projetado à sua frente e com um movimento brusco e puramente por reflexo, o capitão Souza retirou sua arma e disparou contra o intruso. O painel se estilhaçou parcialmente. A imagem do intruso se distorceu. Mirou suas mãos sob o reflexo escarlate e sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo...

Frio. Imobilidade. Consciência plena retida em um corpo imóvel. A bela jovem Silva despertou. Mal conseguia abrir suas pupilas. Com um grito de dor abafado pela câmara criogênica, conseguiu movimentar seu tronco. Deu-se conta de onde estava e a adrenalina inundou seus membros inferiores. Uma dor lancinante latejava em sua perna esquerda. A escuridão da câmara dificultou o acesso ao dispositivo que poderia abri-la. Com a visão ainda turva, percebeu que uma luz vermelha percorria a sala de criogenia. O modo alternado e irregular demonstrava que não se tratava de um alerta ou sinal de emergência. Vinha de fora da nave. Após tentativas infrutíferas, suas mãos alcançaram o dispositivo de abertura.

A sala, imersa em escuridão negra-escarlate, tinha um odor acentuado. Silva quase vomitou quando notou que estava em um necrotério improvisado. O que era tudo aquilo? Lembrava-se apenas de haver descido à sala de máquinas juntamente com o capitão antes de cair em sono profundo. Tateando a parede paralela à câmara, encontrou o interruptor. Acionou-o e uma luz verde ofuscou sua visão. Pensou que já havia acordado, mas o que viu a deixou em dúvida se realmente não estaria tendo um pesadelo: os rostos de seus companheiros de tripulação estampados naqueles corpos trouxeram-lhe desilusão. Haviam sido mutilados e esquartejados. Que animal poderia ter feito aquilo tudo? A ânsia de vômito voltou. Desta vez, mais forte.

Sem compreender nada daquilo, Souza verificou o sistema de energia que voltara a ficar inoperante. Reiniciou-o por meio dos geradores. As luzes voltaram e o painel, parcialmente danificado, exibia um diagnóstico preliminar. Testou os propulsores e concluiu que sua empreitada suicida havia tido êxito. Como um procedimento padrão em casos de pane no sistema, o capitão acessou as gravações das câmeras nas últimas quatro horas. O que o tenente viu perturbou-o.

As luzes voltaram. A jovem Silva, ainda mancando por causa da contusão na perna esquerda, seguia o rastro de sangue rumo ao painel principal. Seu breve treinamento foi suficiente para dotá-la de um instinto de sobrevivência. Estava equipada com uma pistola portátil e com um cutelo biônico. O capitão poderia estar em perigo. Ainda tinha esperança de que seu superior mediato não tivesse tido o mesmo destino de seus companheiros.

Souza estava perplexo com o que vira nas gravações. Deduziu seu estado deplorável e, olhando a fixamente para sua arma na mão direita respirou fundo. Posicionou-a ao lado de sua fonte direita e, tremendo de remorso, flexionou seu polegar lentamente...

- Alto! – gritou a bela jovem para o estranho ensanguentado de costas.

- Abaixe esta arma Silva. É uma ordem direta – sentenciou o capitão.

Silva reconheceu imediatamente aquela tonalidade de voz. A rouquidão vinda daquele homem porém, não condizia com o capitão que conhecia.

- O que é tudo isto? O que você fez?...

Houve silêncio.

Breve vazio.

A luz escarlate inundou a cabine de comando e a nave tremeu.

Sem tempo para reagir, o capitão se jogou no chão e, virando-se de forma sobrenatural, atingiu o ombro da jovem com um disparo certeiro.

Silva agonizava.

O capitão se aproximou da jovem que se retorcia no chão. Era mais outro lixo contagioso que deveria aniquilar.

- Sua missão foi cumprida com êxito Cabo Silva.

Não foi possível ouvir o disparo. A escuridão ensurdecia toda a embarcação espacial. Não havia mais tenente Souza. Não havia mais tripulação Esperança. Somente o “Tormenta” prevalecia. O anseio exploratório brasileiro vagaria a um rumo incerto. Ao longe, o buraco negro consumia a vermelhidão do satélite. O sangue da tripulação vagaria pela órbita de Júpiter IV. O pequeno astro estava mais escarlate.

Alexandre Mazarin
Enviado por Alexandre Mazarin em 29/07/2022
Código do texto: T7570343
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