Mausoléu
Os olhos cobiçosos de Furtado Júnior não saiam do suntuoso mausoléu de mármore escuro. Como se não bastasse possuir as dimensões de uma capela, o suntuoso sepulcro era rodeado por grades de ferro, altas e com pontas. Pareciam ótimas para ferir alguém. Ao visitar o cemitério da pequena cidade de Inocência, com o seu amigo Clodoaldo, que foi deixar flores nos túmulos dos familiares, Furtado quis saber quem jazia naquele jazigo.
Clodoaldo lhe explicou que ali estava sepultado o senhor Avaro Castilho Alcaíde, o homem mais rico da cidade. Carregou consigo a fama de ser mesquinho e nunca ajudar ninguém. Deixou terras, casas, gado e demais propriedades para os três filhos. Mas fez isso porque era o jeito. O seu desejo era o de levar consigo para o outro mundo toda a fortuna que construíra em vida. Conta-se que ele possuía oito dentes de ouro na boca, e se orgulhava muito deles.
Avaro morrera há dois anos, aos 91 anos de idade. O seu velório resultou em uma grande concentração de pessoas importantes, contudo, ninguém chorou.
Furtado Júnior ouviu a história em silêncio e imediatamente decidiu que os dentes de ouro seriam dele, caso alguém ainda não os tivesse roubado. Naquele mesmo dia, às 23h00, ele retornou sozinho ao cemitério. Furtado residia em uma cidade próxima, por isso não teve problemas para chegar ao cemitério na sua motocicleta. Embora trabalhasse, ou pelo menos fingisse, o homem não abria mão do dinheiro “fácil”. Já cometera vários furtos.
Por ser tarde da noite, não havia ninguém nas ruas ou calçadas da cidade. As pessoas dormiam cedo, pois acordavam de madrugada para cuidar da lavoura, principal fonte de renda da população de Inocência.
Furtado não foi visto por ninguém quando chegou à cidade e se dirigiu para o cemitério. Ele encostou a motocicleta do lado de fora e entrou na necrópole. Inocência era tão tranquila que os portões do cemitério ficavam apenas encostados.
Iluminando o seu caminho com uma lanterna, ele chegou ao mausoléu que se destacava em meio aos outros túmulos. Furtado carregava consigo uma bolsa preta. Ele a colocou no chão e tirou um grande alicate para cortar o cadeado do portão que cercava o sepulcro. Conseguiu. Em seguida entrou e foi em direção a porta de ferro do mausoléu. Também quebrou o cadeado desta, e entrou.
De dentro da bolsa tirou um frasco com ácido, que usou para aplicar nas bordas da tampa do túmulo de mármore negro. O túmulo era igualmente imponente, grande, sombrio e, independente da hora, assustador. A foto do velho Avaro estava na cabeceira, bem alta, onde todos pudessem vê-la. A imagem revelava as feições ranzinzas de Avaro, muito enrugado, branco, calvo, com um grande bigode e costeletas que desciam pela lateral da cabeça.
Furtado não se deteve olhando para a foto. Estava com água na boca se imaginando com os dentes de ouro. Ao passar o ácido ao redor da tampa e constatar que ela havia se desprendido, empurrou-a para ter acesso ao caixão.
Junto com o cheiro pútrido, veio a mão decomposta de Avaro, que segurou Furtado pelo pescoço. O aperto da mão foi tão forte que o ladrão não pôde gritar. Sem entender o que se passava, foi puxado para dentro do túmulo, onde sentiu dentadas e mais dentadas humanas na escuridão. Havia uma espécie de fera escondida ali. O jovem não racionou muito, pois logo encontrou o seu fim.
....
Pela manhã, o senhor Deodoro, zelador do cemitério, saiu de sua casa, que ficava nas imediações da necrópole. Ia comprar o leite para o dejejum. Ao passar em frente ao cemitério viu aquela moto. Como a cidade era pequena e ele conhecia todo mundo, não identificou a quem pertencia o veículo. Também se perguntou quem estaria no cemitério às 06h00. Não era comum uma visita àquela hora.
Foi averiguar para ver de quem se tratava. Entrou pelo cemitério e caminhou por entre os túmulos, até ver o mausoléu do velho Avaro. O portão estava aberto. Correu e viu que a porta do mausoléu também estava escancarada. Imediatamente, pegou o seu aparelho celular e ligou.
- Dr. Fernando, bom dia. Aqui é o Deodoro. Tô aqui no cemitério. Aconteceu de novo...
- Em questão de minutos, Deodoro escutou o som da SW4 do Dr. Fernando Castilho Alcaíde, 55 anos, filho mais velho do falecido Avaro. Sem rodeios, Fernando, que estava acompanhado por outro homem, perguntou se mais alguém tinha visto aquilo. Obtendo uma resposta negativa.
Então, ele entrou no mausoléu, pegou a bolsa e botou cadeados novos nos dois portões. Entregou bolsa para o outro homem e lhe deu uma ordem:
- Suma com aquela moto.
Sem pestanejar, o sujeito silencioso saiu.
- Colocando a mão no bolso da calça, Fernando puxou um maço grosso de dinheiro e o entregou ao coveiro, sem contar, e disse:
- Obrigado pelo seu silêncio, Deodoro.
O coveiro permaneceu quieto.
- É terceira vez que isso acontece. Nosso pai sempre dizia que ninguém lhe roubaria os dentes de ouro, mesmo depois de morto. Dessa vez, não quero nem ver como está dentro daquele túmulo – Fez uma pausa – É o templo da maldade.
Os dois saíram em silêncio do cemitério.
Dentro do túmulo, os pedaços do corpo de Furtado Júnior jaziam espalhados. Ele foi devorado esquartejado pelo morto. Junto, havia mais partes de corpos humanos de outras pessoas. Permaneceriam ali, sepultados à revelia, por muito tempo. Talvez um dia os moradores de Inocência descobrissem esse fato aterrador, mas não seria hoje.