O vulto.

BLEM! BLEM!BLEM! Suely acordou com as badaladas do relógio da relojoaria que ficava do outro lado da rua em frente à sua casa. BLEM!BLEM!BLEM! Abriu os olhos castanhos e contemplou assustada o lugar aonde se encontrava. BLEM!BLEM!BLEM! Olhou em volta no escuro e suspirou aliviada.BLEM!BLEM!BLEM! Era a sala de sua casa e o relógio lá do outro lado da rua acabara de bater as doze badaladas, anunciando a meia noite.

Estava quase na hora de seu marido chegar, por isso ela achou mais prudente sentar-se no sofá para evitar adormecer novamente. Sabia que Rogério, seu marido, não gostaria que ela não estivesse acordada quando ele chegasse. Ele nunca gostava. Havia muitos hematomas em seu corpo para lembrá-la de que ela precisava estar acordada para esquentar a comida entre outras coisas.

Então, de repente, uma coisa estranha aconteceu. A sala encheu-se do cheiro de cigarro de palha. Na sala escura os olhos de Suely demoraram a perceber o vulto sentado na poltrona do marido, de frente para ela, olhando-a. Suely encolheu-se, assustada, contra o encosto do sofá. Mas foi só por um momento. Depois uma estranha paz a invadiu.

BLAM! - Suely ouviu o portão da rua bater. Isso distraiu-a por um segundo, e quando olhou para o vulto misterioso este havia desaparecido, como se nunca tivesse estado ali. Até mesmo o cheiro do cigarro de palha se fora.

Então, os passos de Rogério na calçada ao lado da casa. Um, dois, três, quatro, cinco passos. Depois a chave sendo girada na fechadura. A porta abriu, deixando entrar o ar frio da madrugada. E o medo daquele estranho deu lugar ao medo que ela sentia do marido. Mas mesmo sentindo esse medo, ela aproximou-se - porquê era sempre melhor fazer isso - ficou nas pontas dos pés e beijou-lhe a boca, sentindo-lhe o hálito de cachaça. Isso não evitou o tapa que a fez cair, com os olhos cheios de lágrimas e o rosto ardendo sobre o sofá.

Suely tentou defender-se dos socos que sabia que viriam enquanto o marido colocava o joelho esquerdo sobre seu peito, deixando-a sem conseguir respirar. "Vagabunda" - berrava ele.

Em sua bebedeira, Rogério levantou a enorme mão direita e, com raiva e desprezo preparou o murro contra o rosto da única criatura que ele sabia que nunca iria revidar.

"Que foi que eu fiz?" - perguntou ela soluçando enquanto esperava a surra.

Mas a surra não veio. O que ela sentiu foi novamente o cheiro do cigarro de palha que invadiu a sala, e então o peso esmagador de seu marido foi arrancado violentamente de cima dela.

Sueli não viu bem o que aconteceu por causa da luz apagada, mas pode ouvir o barulho do marido sendo arrastado pela sala e depois seus gritos de dor vindos da cozinha e o som de algo se partindo como se fosse um graveto seco se quebrando, e durante todo o tempo o cheiro do cigarro de palha que dominava toda a sala. O cheiro do cigarro. Por algum motivo ele lhe trazia paz e segurança. Paz e segurança. Então veio o silêncio.

Sueli não se assustou quando o vulto se materializou na escuridão à sua frente. Grande, e estranhamente familiar. Também não se assustou quando o vulto ergueu os braços e a abraçou. " Adeus América. Te amo". E então desvaneceu-se na escuridão, deixando-a cair de joelhos no chão e com os olhos cheios de lágrimas. Foi quando o telefone tocou.

"OI mãe, tudo bem? " - perguntou Sueli ao reconhecer a voz do outro lado da linha.

" Não Sueli. Vem pra casa por favor. Seu pai acabou de morrer. "

S J Malheiros
Enviado por S J Malheiros em 09/07/2022
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